No Natal, e apesar de "conhecer mal" os vizinhos, distribui postais pelas caixas de correio do prédio, no centro de Lisboa. Diz que é o único bispo "a morar num andar" e tranca-se a sete chaves em casa, mesmo de dia. "Fui assaltado, sabe? Mas só me levaram uma máquina fotográfica digital", conta, antes de nos fechar à chave dentro do apartamento. O bispo das Forças Armadas e de Segurança, D. Januário Torgal Ferreira, é assim: nunca faz cerimónias e recusa-se a fazer fretes. Vive em Lisboa há 22 anos, mas jura que ainda tem o Porto no coração. Na sala, há um quadro gigantesco com um poema de Eugénio de Andrade e várias fotografias da mãe - "uma das primeiras mulheres a formar-se em Portugal". No escritório tem pilhas de livros até ao tecto. Devem ser uma dor de cabeça para a empregada que lhe limpa a casa duas vezes por semana. D. Januário reformou-se o ano passado da vida militar e deixou de ter gabinete no Ministério da Defesa, mas ainda faltam mais de três anos para acabar o "mandato" de bispo. Provavelmente, continuará a ser inconveniente e polémico até ao fim. Defende Saramago e os homossexuais, elogia as manifestações da CGTP, critica o mediatismo da sociedade. Mas depois fala do amor e do mundo com a ingenuidade e a emoção de uma criança. O bispo das Forças Armadas vai à praia de calções e diz que se irrita com "críticas gratuitas". Aos 72 anos, confessa que odeia autobiografias: "São detestáveis. Ontem já não era eu."
Costuma googlar o seu nome?
Uma ou outra vez. A primeira foi há mais de dez anos, no estrangeiro, por sugestão de um padre meu amigo. Na altura tinha seis páginas de resultados, fiquei muito admirado. Hoje devem ser mais de 30! É uma ferramenta interessante, porque permite medir as animosidades e as simpatias que vamos suscitando. De vez em quando, lá vou ver o que se escreveu de novo. E a informação nunca se perde, eterniza-se. Por exemplo, agora com a morte do Saramago, lembrei-me das críticas que recebi na altura em que ele recebeu o Nobel...
Por causa de o ter defendido?
Sim. Quando comecei a lê-lo tive dificuldade em entrar no estilo. Não foi daquelas pessoas com quem simpatizasse muito, no início, do ponto de vista literário. Mas acabei por ir descobrindo e compreendendo a sua obra que, de facto, é genial. E isto escandalizou muitas pessoas.
Não ficou chocado quando leu o "Evangelho segundo Jesus Cristo"?
Não. A mim o que me chocou foi perceber que muita gente o atacava só por ser comunista e por não ser católico. Isso não tem nada a ver com a qualidade da sua produção literária. Nessa altura, falava-se de como ele era demoníaco por ter escrito uma obra sobre Jesus Cristo, desumanizando-o e humanizando-o ao ponto de tudo aquilo ser uma ficção, uma mentira. Era uma negação, um Cristo grotesco. Eu pensei muitas vezes: "Este homem diz-se ateu e tem expressões terríveis sobre Deus, mas ao mesmo tempo tem conceitos extremamente humanizadores quanto à figura de Cristo." Saramago não era de Deus, mas passava a vida a falar de Deus. Ele, no fundo, tinha interesse por Deus! E deve merecer respeito pelo seu ponto de vista. A única coisa que me entristece e me distancia de certas leituras é a agressão gratuita, a calúnia, o banditismo mental, a inquisição ao contrário.
Na semana passada, o "Osservatore Romano" chamava Saramago de "populista e extremista". Revê-se nisto?
[Olha para o exemplar do jornal do Vaticano que tem em cima da mesa] Eu não! Eu pensei que esse extremismo já tivesse passado, esse radicalismo. Não ficava mal mostrar alguma sensatez - mantendo a verdade - diante de uma pessoa que já cá não está para se defender. É claro que discordo de muitas interpretações de Saramago e tenho pena que ele tenha demonstrado um conjunto de desconhecimentos em relação às estruturas bíblicas, mas dou-lhe o mérito de se ter interessado por Deus. Talvez ele não gostasse que eu dissesse isto, mas não sei se esse interesse não esconderia uma grande inquietação dele, uma grande procura de Deus. Só que o procurava ao contrário. Uma coisa é a interpretação estético-literária. Outra coisa é a interpretação exegética ou espiritual. Não separar as duas vertentes mostra uma crise de cultura.
Normalmente a Igreja é um pouco inflexível nestas matérias...
O que eu acho, então, é que há uma soma de pessoas, e digo-o com respeito, que ficaram perfeitamente analfabetas, cheias de complexos, de maldade, de sensualidade, quase castradas. Quem conhece o mundo e o adora, olha-o de forma límpida e feliz. Eu dou graças à vida e aos educadores que tive, por olhar para o mundo de forma descomplexada e desinibida. É como quando me dizem: "Ah... você vai para a praia e para a piscina de calções." E então? Qual é o problema? Sou um cidadão como outro qualquer!
Mas já lhe disseram isso?
Directamente, não. Mas as pessoas encontram-me na praia. Vamos imaginar a seguinte situação: "Então você estava ali deitado, ao lado de uma rapariga a fazer topless?" E então? Que mal teria? Só um tarado é que vai para a praia pensar nessas coisas. Por vezes, a maldade está na forma como se pensa o mundo. E veja lá onde a conversa já foi parar... [risos]
Então vamos voltar ao Google. Sabe que os primeiros resultados que aparecem são coisas pouco simpáticas a seu respeito?
Não sei... hum...
Criticam-no por ser de esquerda, por exemplo...
Isso para mim até é muito simpático. Se as pessoas entenderem que ser de esquerda é falar dos problemas sociais, defender gente desempregada, demonstrar diante de sistemas governamentais a sua inutilidade, desvarios e erros... Tenho-me batido por isto e até dada altura parecia estar sozinho na luta. Fiquei contente quando ouvi, recentemente, o grande bispo do Porto, D. Manuel Clemente, falar sobre as Scut. É importante um bispo alertar para as condições sociais das populações. Foi o grito de um cidadão bom, inteligente, educado, que lança um alerta. Acho que o governo lhe devia agradecer.
Também se diz que é comunista...
Pronto. Ora aí está... As pessoas partidarizam tudo. Eu digo, realmente, que foi o Partido Comunista que devolveu a voz ao Alentejo...
Mas é?
Não. Toda a gente sabe que não tenho nenhum enquadramento partidário. Mas escolho, naturalmente, o meu voto no dia em que há eleições e sei em quem tenho votado. Ora mais à direita, ora mais à esquerda.
E ultimamente?
Nos últimos longos anos, mais à esquerda do que à direita. Mas já votei à direita. Eu não devo é entrar, publicamente, enquanto bispo, em atitudes partidárias. Já as tive, mas não como bispo. Toda a gente sabe que estive muito ligado, em tempos, a determinados aspectos da social-democracia. Dei-me muito bem com o Sá Carneiro. Mas, para mim, o espectro político não acaba aí. Desde que vim para Lisboa, comecei a ver e a descobrir os interesses, as podridões, as lutas pelo poder. Não entro em questões partidárias. Mas ponho uma tónica na doutrina social da Igreja. E hoje, mais do que nunca, fala-se do desemprego, do défice, das dificuldades e das desigualdades sociais.
Também existem essas lutas pelo poder dentro da Igreja?
Não, embora não diga que não haja diferenças dentro da Igreja. No entanto, eu às vezes até acho que somos demasiado afinados. Eu não quero a anarquia, mas...
Discute-se pouco, é isso?
Eu gostaria de ouvir outras vozes.
Recordo-me que há tempos, quando Obama esteve na China e falou dos direitos humanos, disse que um líder não pode ter medo. Considera que Cavaco Silva teve medo quando decidiu promulgar o casamento entre homossexuais?
Não o quero interpretar. Só posso interpretar o texto que ele publicou. A mim o que me impressionou negativamente nem foi o facto de ter promulgado o casamento, apesar de ser um casamento com o qual eu não concordo e que entendo como união. Fiquei, sim, muito admirado com a produção cultural insuficiente da argumentação usada: dizer que não veta por causa da situação crítica que estamos a atravessar? Mas há aqui alguma relação de causa e efeito? Vetar daria origem a manifestações gigantescas, descontentamento? Se ainda há dias houve uma manifestação espectacular, como todas as da CGTP, e Lisboa foi invadida por pessoas de todo o país, que quiseram protestar por estarem em causa o pão, os salários... Assumiram a defesa dos seus direitos... E houve alguma escaramuça? Qual mal-estar? Felizmente já demos vários passos na democracia!
O que é certo é que mesmo sendo vetada, a lei voltaria ao Parlamento e...
[Interrompe] Por isso mesmo! Ele sabia que o próprio ciclo da legalidade seria suficientemente rápido e teria um determinado efeito. Por isso, para que é que vem com uma explicação que é perfeitamente inadequada, inconveniente, injustificada e incoerente? A sério que não vejo como é que uma situação crítica do ponto de vista económico-financeiro pode ser agravada com a legalização de um homem casar com um homem ou de uma mulher com uma mulher.
Portanto, o que o aborreceu não foi a aprovação do casamento, mas sim a fraca argumentação de Cavaco Silva?
Há coisas que não se podem misturar e que eu não quero misturar. Cavaco Silva não precisava de invocar a sua posição católica a primeira vez, nem justificar se agora tem uma posição diversa, ou não. Eu faço uma análise independente das minhas convicções católicas. Não me parece que pegue, vindo de uma pessoa minimamente apetrechada do ponto de vista cultural, a explicação do senhor Presidente da República. Mas não me compete julgar. Nem analisar ou comentar.
Mas o assunto caiu mal na igreja. O cardeal-patriarca foi muito explícito nas críticas e a Igreja até estará à procura de um candidato alternativo...
Caiu mal, sim. Mas não acredito nisso de se procurarem candidatos. As pessoas sabem que, eventualmente, podendo haver um candidato à direita de Cavaco Silva... será difícil encontrar alguém capaz de o vencer. Mas isto são assuntos da política. A crítica a Cavaco Silva tem o seu fundamento. Para mim, independentemente do conteúdo - eu não concordo com a noção de casamento -, concordo e aceito um homem que viva com um homem e uma mulher que viva com uma mulher.
Isso não o choca?
É evidente que não. A atitude que tenho de ter é a respeitabilidade.
E há mesmo um guião de homilias contra Cavaco Silva?
É uma grande novidade, em absoluto, que me está a dar. Ignoro isso em absoluto.
Vai votar nele?
Vou votar naquele em que achar que devo votar.
Mas uma vez que o desiludiu...
O facto de ele ter dado uma má lição ou ter feito uma má redacção não quer dizer que eu não possa votar nele.
Como encara o movimento de gays católicos?
São pessoas que põem problemas. Eu acho que o drama de cada pessoa deve ser entendido. Nós julgamos e jogamos com generalidades. Eu despertei para este problema já há muitos, muitos anos, quando conheci um casal que já não era jovem e que me confessou, amargurado, que o filho era homossexual. E eles sofriam e diziam: "Não discriminamos o nosso filho, achamos que não é um crime." Nós podemos não aceitar nem entender que os nossos filhos sejam homossexuais, mas temos de os amar, não os podemos afugentar. E a Igreja só pode ter uma atitude: acolher, ouvir, tentar entender. Eu às vezes pergunto a colegas: "Você já alguma vez falou com um homossexual?" É que eu já e sabe o que é que vi? Uma pessoa que sofria loucamente, porque não era entendida, porque tinha uma orientação sexual que não é aceite socialmente. Alguém que se sentia só, escorraçado. Alguém que se escondia.
A Igreja acolhe os homossexuais, na verdade. Desde que não pratiquem a sua homossexualidade...
Com certeza que um casal homossexual não é um teórico, não é? E os afectos traduzem-se por essa prática, por essa fusão psíquico-afectiva da unidade misteriosa que é o ser humano.
A Igreja tem de entender isso?
Entender, sim. Sacralizar é que não - porque o amor, para a Igreja, é um sacramento, o matrimónio. Esta é uma matéria muito complexa, que tem de ser muito bem compreendida. E nenhuma instituição pode dizer se aceita ou não aceita. Cada caso é um caso.
Que opinião tem dos novos movimentos? Em Portugal, o Papa disse que são a nova Primavera da Igreja, mas depois recomendou algum cuidado aos bispos. Em que é que ficamos?
As duas coisas são compatíveis. Eu gosto dos novos movimentos. Há um ou outro mais exagerado, mas não vou mandar recados através do jornal. Na minha diocese não tenho esse problema. Mas se tivesse, chamá-los-ia e dialogaria. Há particularidades que podem chocar dentro da Igreja, por isso o mais importante deve ser criar um espírito de comunhão. E são uma Primavera, de facto. Admiro, por exemplo, os neocatecumenais, apesar das críticas, porque entregam, a partir de determinada altura, 10% do que ganham. Qual de nós é capaz de dar uma pequena parte do seu salário para os pobres e para uma obra de bem comum? Só que, de uma maneira geral, há muito o espírito de tribo e o que o Papa pediu foi que os bispos estejam atentos, no sentido de promoverem uma maior abertura.
De movimento para movimento, os ritos são muito diversificados. A longo prazo, isso não poderá pôr problemas à Igreja e causar rupturas?
Tem razão. Por isso mesmo é que o Papa pede diálogo, acompanhamento e proximidade. A convicção que tenho é que muitos movimentos estão em roda livre e alguns correm o perigo de serem uma igreja dentro da Igreja.
Tem criticado o centralismo do Vaticano. Porquê?
Julgo que deveríamos estar muito mais próximos - nós, Conferências Episcopais - e que o Vaticano nos deveria atender mais. Acho, por exemplo, que o presidente da Conferência Episcopal deveria ser uma espécie de núncio, o nosso representante muito próximo da Santa Sé.
Mas já temos um núncio...
Mas há muita gente que defende que os núncios deviam desaparecer e a ligação com Roma passar a ser feita de uma maneira muito mais próxima, através do presidente das Conferências Episcopais. Não sei se isto faz sentido ou não, mas que há centralismo, há. Roma fica longe. Devíamos estar mais perto e as nossas decisões deveriam ser mais ouvidas no Vaticano.
E existir maior liberdade para decidir?
Há um dirigismo muito grande. Por exemplo, decretou-se, no ano passado, o ano sacerdotal e decidiu-se que se iria falar sobre sacerdotes. Não poderíamos, dentro da Igreja em Portugal, decidir outra temática para cada diocese trabalhar? Às vezes, parece que vem tudo feito de Roma. Digo isto no sentido construtivo, claro. E no sentido de se aumentar a comunhão profunda com Roma.
É conhecido por dizer sempre tudo o que pensa. Diz mesmo?
Sim, sempre. Quer dizer... Agora estou a ir para velho e chega-se à conclusão de que não vale a pena gastar certas munições.
Então mas porquê? Já teve más experiências?
Não, não tive. Normalmente, digo o que penso.
Mas de certeza que já recebeu puxões de orelhas por falar de mais ou dizer coisas que não devia...
Já. De pessoas que discordam das minhas ideias. Recebo tantas cartas antipáticas! Um dia, hei-de publicá-las a todas! Não me importo, naturalmente, que existam posições diversas das minhas. Só me chateia que as pessoas deturpem o que defendo ou partam para o insulto e para a agressão gratuita.
E de dentro da Igreja?
Chamaram-me a atenção uma ou duas vezes.
A propósito de quê?
Planeamento familiar, por exemplo. Só que eu continuo a pensar o mesmo que pensava e a dizer o que dizia. O que vem provar que, da minha parte, não há a mínima hostilidade. Há uma grande comunhão e amor à Igreja e estou convicto, pela minha experiência pastoral, que aquilo que defendo será muito em breve uma realidade. Eu não aceito o dogmatismo dos métodos naturais. Por vezes, as pessoas não querem ser realistas. Mas o mais importante é que se continue sempre em grande diálogo, porque a verdade nunca se possui plenamente.
Teve um percurso académico longo, foi professor universitário, esteve muito ligado à filosofia e estudou muito. Nunca se sentiu tentado a pôr em causa alguns dogmas da Igreja?
Nunca. Pelo contrário. Quanto mais estudei, mais aumentei a minha fé e mais encontrei explicações racionais para a minha fé. Sabe qual é o grande mal no que toca à religião? Ninguém estuda nada, nem o primário. Mas toda a gente tem opiniões.
A fé cabe, então, no domínio da razão?
Fui sempre buscar à cultura filosófica razões e motivos para tornar mais lúcida a minha visão dos grandes problemas da fé. Há uma frase de Pasteur de que gosto muito: "Porque eu estudei muito, tenho a fé de um bretão. Mas se eu tivesse estudado mais, teria tido a fé de uma mulher da Bretanha" - porque a mulher é mais piedosa. Esta frase tem sido um dos grandes guias da minha vida.
tenho muito orgulho neste bispo que me crismou. É um homem fiel à Igreja mas que pensa pela sua cabeça e não se deixa guiar por ideias pré-concebidas.
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