Filme do Desassossego: A inquietude de Pessoa e de Botelho
A bordo do heterónimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares, a primeira descoberta: que o seu sofrimento, à vista do do poeta, nada tinha de comparável. Desde então João Botelho embarcou à descoberta do poeta e da sua relação profunda com a cidade e com o mundo, o que conheceu desde Lisboa.
Inspirado na obra quase homónima, “O Livro do Desassossego”, é o primeiro regresso de João Botelho ao comando cinematográfico, depois de “Corrupção”, que abandonou por divergências maiores com o produtor. Entre ambos os filmes há um salto claro, dissidente, segundo o próprio, das obrigações comerciais para o compromisso pessoal, da mera ilustração para a introspeção, do ruído para o silêncio. De alguma forma, Botelho está mais perto dos seus primeiros trabalhos.
Arriscando-se, tenta um filme aberto, numa Lisboa intemporal, que nos seduza e comova pela abdicação expressa, a comoção, o insaciável questionar da vida e da morte, da felicidade e da tristeza, da abastança e da pobreza... multiplicando personagens – com um belíssimo Cláudio Silva a protagonista -, sequências em jogos de associação de ideias, com e sem espelhos, tudo o que, já quase fora de si, incomodou as personas de Pessoa. Tudo o que nos possa fazer pensar.
Adaptação livre do original literário, ritmo e forma narrativos, alguns diálogos mais hirtos, uma ou outra aproximação ao postal poderão não atrair toda a sorte de espetadores.
Não se diminua por isso o mérito de tentar honestamente dar à obra vantagem estética por imagem e movimento e fazê-la percorrer o país de lés a lés, com direito a debate, num circuito paralelo de escolas e cine teatros, à margem dos índices de bilheteira e suas obrigações, do consumo a eito de ideias – tantas vezes tão poucas e tão frágeis – entre a vertigem de imagens gratuitas, sem tempo nem motivo de reflexão.
Margarida Ataíde
© SNPC a 13.10.10
http://www.snpcultura.org/vol_filme_do_desassossego.html
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