As grandes figuras da Bíblia
Ler a Bíblia é um desafio para qualquer pessoa, letrada ou não letrada, crente ou descrente. (...)
É verdade que a Bíblia, sobretudo o Antigo Testamento (AT), contém textos difíceis e, muitas vezes, aparentemente imorais e escandalosos. Por causa disto é que Filão de Alexandria (do tempo de Jesus), judeu de grande cultura, que convivia paredes meias com judeus e gregos na cidade da cultura daquele tempo - Alexandria - apresentou as escrituras hebraicas a judeus e gregos através da alegoria. Com este método, o leitor não deve deixar-se prender à literalidade historicista do texto, mas à performatividade de uma outra leitura dentro do próprio texto. Os pensadores cristãos dos primeiros séculos, também chamados Padres da Igreja (séculos II-VI), bispos, teólogos e leigos, sobressaindo o grande Orígenes, usaram este método, sobretudo para a compreensão do AT, como profecia alegórica do NT (Novo Testamento). Desta forma, desapareciam todos os equívocos, contradições e escândalos do AT. (...)
Nunca é demais repetir que o mundo da Bíblia não é tarefa fácil. Foi escrito em hebraico, aramaico e grego, e em tempos culturais muito diferentes dos nossos. Até ao século XVII ninguém, no Ocidente, duvidava da Bíblia. As dúvidas e as apreciações negativas começaram com o Século das Luzes, quando se começou a ler a Bíblia como código literário ao lado das literaturas clássicas gregas e latinas e das literaturas pré-clássicas da Mesopotâmia e Egipto. Foi então que se descobriu que muito antes dos mitos da criação da Bíblia já se tinham escrito os mesmos mitos — de maneiras diferentes — em óstracos e pergaminhos na Suméria, Assíria e Egipto. Outro tanto se diga do dilúvio e de Noé, da torre de Babel, de profetas, de doutrinas sapienciais e de cânticos com salmos e com poesia, e, especialmente, de narrativas de guerra entre famílias, tribos e nações.
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Nesta obra, procurámos escrever em escrita corrida, sem descer a muitos pormenores filológicos, culturais e históricos. A intenção é apresentar um livro que todos os leitores possam entender. Deixámos de lado as argúcias exegéticas dos grandes comentadores da Bíblia, que enchem bibliotecas e revistas da especialidade.
É facto que os católicos, ao contrário dos protestantes, lêem pouco a Bíblia, porque, na tradição da Igreja Católica, a Bíblia não é uma entidade «divina» de per se, mas um meio — o maior e absolutamente necessário entre outros — para chegarmos a Deus, à fé cristã e à compreensão da Igreja. Foi a Igreja do AT (comunidades hebraicas dirigidas por responsáveis religiosos) e do NT (comunidades cristãs, a começar por São Paulo) que escreveu a Bíblia. Nesse processo de escrita, os «escribas» judeus e cristãos refletem a tradição oral e catequética do passado (séculos no AT e três ou quatro gerações no NT, exceptuando as sete cartas autênticas de Paulo). A Igreja escreve a Bíblia e a Bíblia escreve-se nela.
(Da introdução, assinada pelo autor.)
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Apesar da tradição católica predominante no nosso país, a verdade é que se colocarmos diante dos olhos dos nossos concidadãos um Gn 30,45 ou Jo 23,11 haverá mais gente a pensar que é a matrícula de um automóvel do que aqueles que reconhecerão uma citação bíblica.
Isso não quer dizer que a Bíblia não desempenhe um papel fundamental. Ela foi e é determinante para a construção da modernidade; ela está presente mesmo de forma implícita nas várias expressões da nossa cultura (veja-se, por exemplo, o título do último romance de Lobo Antunes: “Sôbolos rios que vão”) e vai ganhando inclusive novos leitorados para lá das fronteiras tradicionais.
Mas há muito a fazer para dar à Bíblia o espaço e a importância que ela tem, como livro de Fé para os crentes e como código de cultura. Desconhecer a Bíblia é uma forma de iliteracia. É desconhecer-se a si mesmo.
E eis-nos com esta nova obra do Professor Carreira das Neves: “As grandes figuras da Bíblia”. São 14 figuras selecionadas, a começar por Deus (a Bíblia é o teatro de Deus, a cena da Sua revelação, a Sua teodramática) e culmina em Jesus. Deus ocupa 25 páginas, Adão e Eva 9 págs; Moisés 21 págs, David 26, Isaías 34…e Jesus 117 páginas, isto é, mais de um terço do livro.
Há um livro de Paul Beauchamp, Cinquante Portraits Bibliques, Seuil Paris, 2000 que é referido na obra de Carreira das Neves e funciona aqui como paradigma. Mas a arte do retrato (que Beauchamp sabiamente pratica) é colher a personagem num determinado instante e buscar nessa imagem a iluminação da globalidade. Neste volume de Carreira das Neves opta-se por um caminho diferente: uma maior concentração de personagens e um tratamento poliédrico (usando com uma grande mestria as ferramentas metodológicas: desde o método histórico-crítico ao narrativo, desde as religiões comparadas aos métodos contextuais que dão uma atenção enorme à cultura, à história das mentalidade, à geografia). E sempre com uma preocupação de diálogo com o presente.
(José Tolentino Mendonça, da apresentação.)
In As grandes figuras da Bíblia, Pe. Carreira das Neves, ed. Presença
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