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A diversidade na Igreja

"A casa do meu Pai tem muitas moradas", diz-nos Jesus no evangelho.

A unidade na diversidade não é sempre aparente na Igreja enquanto povo de Deus, mas é uma realidade em Deus e uma presença na fé cristã desde a sua origem. A Palavra de Deus não é partidária, elitista e exclusiva. O Reino de Deus é como uma árvore que estende os ramos para dar abrigo a todos os pássaros do céu. Cristo não morreu na cruz para salvar uma mão cheia de cristãos. Até o Deus Uno encerra em si o mistério de uma Trindade.

A Palavra de Deus é inequívoca e só pode levar à desinstalação, à abertura ao outro, e a recebê-lo e amá-lo enquanto irmão ou irmã. Ninguém fica de fora, nem mesmo - se tivessemos - os inimigos.

Muitos cristãos crêem nesta Igreja, nesta casa do Pai, corpo de Cristo, templo do Espírito Santo. Mas como esquecer que muitos se sentem "de fora" por se verem rejeitados, amputados e anulados, e afastam-se por ninguém lhes ter mostrado que há um lugar para cada um, com a totalidade do seu ser?

Um blogue para cristãos homossexuais que não desistiram de ser Igreja

Porquê este blogue?

Este blogue é a partilha de uma vida de fé e é uma porta aberta para quem nela quiser entrar. É um convite para que não desistas: há homossexuais cristãos que não querem recusar nem a sua fé nem a sua sexualidade. É uma confirmação, por experiência vivida, que há um lugar para ti na Igreja. Aceita o desafio de o encontrares!

Este blogue também é teu, e de quem conheças que possa viver na carne sentimentos contraditórios de questões ligadas à fé e à orientação sexual. És benvindo se, mesmo não sendo o teu caso, conheces alguém que viva esta situação ou és um cristão que deseja uma Igreja mais acolhedora onde caiba a reflexão sobre esta e outras realidades.

Partilha, pergunta, propõe: este blogue existe para dar voz a quem normalmente está invisível ou mudo na Igreja, para quem se sente só, diferente e excluído. Este blogue não pretende mudar as mentalidades e as tradições com grande aparato, mas já não seria pouco se pudesse revelar um pouco do insondável Amor de Deus ou se ajudasse alguém a reconciliar-se consigo em Deus.
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domingo, 18 de março de 2018

Polémica dos divorciados e da abstinência sexual

Divorciados, abstinência sexual e Igreja. 8 perguntas para perceber a polémica

por João Francisco Gomes a 8 de fevereiro de 2018 no Observador

Como começou a polémica sobre os divorciados recasados?

Em 2016, depois do Sínodo da Família, o Papa Francisco publicou a exortação apostólica Amoris laetitia, dedicada às questões da família. Neste extenso documento, o pontífice recorda a doutrina da Igreja Católica sobre a família — designadamente sobre a indissolubilidade do matrimónio –, mas sublinha, a dada altura, que “um pastor não pode sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais àqueles que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas”.

“Por causa dos condicionalismos ou dos factores atenuantes, é possível que uma pessoa, no meio de uma situação objetiva de pecado — mas subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja”, continua Francisco. O Papa refere-se aqui, entre outros, às situações dos católicos casados pela Igreja que, tendo-se divorciado, tornaram a casar sem que lhes tenha sido declarado nulo o matrimónio.

Nesta frase, Francisco coloca uma nota de rodapé que está no centro de toda a discussão que se originou a partir dali: “Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos“. Francisco acrescenta mais, lembrando as suas próprias declarações na exortação apostólica Evangelii gaudium, de 2013: “Aos sacerdotes, lembro que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor” e a Eucaristia “não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”.

A expressão “ajuda dos sacramentos” marcou o debate em torno daquele documento, que é já o mais citado do Papa. Para os setores mais progressistas, era um sinal de que o pontífice mostrava uma inédita abertura para admitir os divorciados recasados aos sacramentos. Para os mais tradicionalistas, uma afronta aos valores milenares dos sacramentos, sobretudo à comunhão.
Teólogos conservadores acusam papa Francisco de espalhar a heresia

Nunca como por causa deste documento — e daquele capítulo em concreto — o Papa tinha sido tão criticado. Primeiro, quatro importantes cardeais (incluindo o norte-americano Raymond Burke, um dos principais críticos do Papa) assinaram uma carta a exigir esclarecimentos. Depois, teólogos e padres de todo o mundo entraram em rota de colisão com Francisco, publicando um documento a acusar Francisco de “propagar heresias” com aquelas afirmações.

Desde então, a discussão em torno dos divorciados que voltam a casar tem dominado a maioria das discussões públicas em torno do pontificado de Francisco, sendo atualmente o ponto de maior discórdia entre os setores mais progressistas e os mais tradicionalistas da Igreja Católica.

Afinal, o que defende o Papa Francisco que seja feito nestes casos?
A exortação apostólica Amoris Laetitia não indica ações concretassobre como levar a cabo esta integração dos divorciados recasados. Como explica ao Observador o padre Rui Pedro Carvalho, diretor do serviço de pastoral familiar do patriarcado de Lisboa, “o Papa Francisco tem sublinhado a importância de colocar o ónus no confessor, no padre, que conhece bem os casos concretos”.

Uma coisa, contudo, ficou clara naquela exortação apostólica: para o Papa, era necessário acabar com a ideia de que a Igreja está de costas voltadas para os divorciados recasados. “Por pensar que tudo seja branco ou preto, às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento e desencorajamos percursos de santificação que dão glória a Deus”, escreveu Francisco.

O problema residia precisamente no facto de não haver normas concretas, orientações relativas à ação dos padres nestes casos. Não tardaram a surgir interpretações de bispos de todo o mundo: uns achavam que o documento lhes dava abertura para emitir normas para a admissão dos divorciados aos sacramentos, outros não tinham a certeza do que deviam fazer.
Cinco mensagens do Papa sobre a família

Foi então que os bispos da região pastoral de Buenos Aires escreveram uma carta aos padres da sua diocese, intitulado “Critérios básicos para a aplicação do capítulo VIII de Amoris laetitia“. Na carta, os bispos esclarecem, em 10 pontos, qual deve ser a ação dos padres no acompanhamento dos casais nesta situação.

Os bispos argentinos sublinham que não se trata de uma “autorização” para aceder aos sacramentos, mas “sim de um processo de discernimento acompanhado por um pastor”. Até porque, notam os prelados, “este caminho não acaba necessariamente nos sacramentos, mas pode orientar-se para outras formas de se integrar mais na vida da Igreja”.

A mesma carta sublinha que a exortação apostólica do Papa Francisco “abre a possibilidade de acesso aos sacramentos da Reconciliação e da Eucaristia”, nos casos “mais complexos” em que não é possível obter uma declaração de nulidade do matrimónio. “Mas há que evitar entender esta possibilidade como um acesso irrestrito aos sacramentos, ou como se qualquer situação o justificasse“, avisam. Tudo depende do “caminho de integração” acompanhado por um pastor.

Esta carta, que à primeira vista apenas contém normas destinadas aos padres argentinos, reveste-se de singular importância, porque no dia em que foi escrita — 5 de setembro de 2016 — foi enviada também ao Papa Francisco, que respondeu no próprio dia. Na resposta, o pontífice felicita os bispos “pelo trabalho que tiveram”, considerado “um verdadeiro exemplo de acompanhamento aos sacerdotes”.
Divorciados recasados: Afinal, um debate tão antigo como a Igreja

Francisco foi ainda mais longe, ao afirmar: “O escrito é muito bom e explicita cabalmente o sentido do capítulo VIII de Amoris laetitia. Não há outras interpretações. Estou seguro de que fará muito muito bem. Que o Senhor lhes retribua esta esforço de caridade pastoral”.

“Não há outras interpretações.” A expressão deu, de súbito, relevância mundial àquela carta dos bispos argentinos. De todas as interpretações que já tinham surgido, aquela aparecia agora como a única a merecer aprovação papal.

A aprovação formalizou-se já no final de 2017, quando o Papa declarou que aquela carta passava a fazer parte do Magistério da Igreja. Ou seja, a explicação dos bispos de Buenos Aires foi adotada pelo Vaticano e publicada oficialmente nos escritos legais da Santa Sé. A partir desse momento, a posição oficial do Vaticano sobre o assunto passou a ser aquela: em certos casos, dependendo do discernimento de cada cristão em conjunto com o pastor, é mesmo possível para os divorciados recasados terem acesso aos sacramentos.

Em que casos é que a Igreja admite o acesso aos sacramentos?

O próprio Papa Francisco reconhece que os divorciados recasados “podem encontrar-se em situações muito diferentes, que não devem ser catalogadas ou encerradas em afirmações demasiado rígidas“.

“Uma coisa é uma segunda união consolidada no tempo, com novos filhos, com fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas”, escreve Francisco. Nestes casos, há “motivos sérios” que justificam que a nova união não seja quebrada, admite a Igreja.

Noutros casos, continua o Papa, há aqueles “que fizeram grandes esforços para salvar o primeiro matrimónio e sofreram um abandono injusto“, e também os que, como lembrava João Paulo II, “contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjetivamente certos em consciência de que o precedente matrimónio, irremediavelmente destruído, nunca tinha sido válido”.
Papa Francisco. “Os divorciados não estão excomungados, são sempre parte da Igreja”

No entanto, o Papa sublinha que há outro tipo de situações, como “uma nova união que vem de um divórcio recente, com todas as consequências de sofrimento e confusão que afetam os filhos e famílias inteiras, ou a situação de alguém que faltou repetidamente aos seus compromissos familiares“.

O padre Rui Pedro Carvalho, diretor do serviço de pastoral familiar do Patriarcado de Lisboa, diz que “é difícil tipificar”, uma vez que “há uma realidade composta por muitos casos diferentes“, mas lembra que a questão da culpa é um critério importante para definir que pessoas estão em causa neste esforço de integração.

“É muito diferente a parte que favorece a quebra do casamento da parte que é abandonada”, explica o sacerdote, sublinhando que, quer o documento do Papa Francisco, quer o documento mais recente, publicado por D. Manuel Clemente, são muito claros “ao falar da especificidade de cada caso”.

Em todos os casos, trata-se de pessoas que contraíram matrimónio na Igreja Católica, se divorciaram e tornaram a casar civilmente, mantendo a união inicial aos olhos da Igreja. Por isso, explica Rui Pedro Carvalho, “o Tribunal Eclesiástico pode ser uma ajuda, uma vez que alguns destes casamentos podem ser declarados nulos”. Mas esta situação só se verifica em alguns casos. Noutros, é necessário “encontrar outros caminhos de integração“.

O que faz a Igreja para facilitar as declarações de nulidade do matrimónio?

Para fazer face às enormes dificuldades em declarar a nulidade de um matrimónio, o Papa Francisco escreveu, em 2015, uma carta apostólica em que alterou as regras do processo, tornando-o mais célere. Se até então era necessário que fossem proferidas sentenças em duas instâncias para que o casamento fosse declarado nulo, passou a bastar uma. E os bispos passaram a poder recorrer ao processo breve, em casos em que os motivos para a nulidade sejam facilmente comprováveis.

O processo passou a ser gratuito (à exceção dos custos administrativos) e passou a ter um prazo máximo de 45 dias no caso de se tratar do processo breve.

“Tanta gente espera anos por uma sentença, que confirmem ‘sim, é verdade, o teu matrimónio é inválido’ ou que diga ‘não, o teu matrimónio é válido’. Alguns procedimentos são tão demorados e tão densos que alguns acabam mesmo por abandonar os processos”, lamentava, na altura, o Papa.
Nulidade do casamento católico. Saiba o que mudou

O padre Rui Pedro Carvalho confirma, sublinhando que os processos se tornaram mais céleres no Patriarcado de Lisboa. “Um ou dois anos“, para os processos normais, explica o sacerdote, lembrando que antes desta alteração das regras os processos tinham de ir para a arquidiocese de Évora, para serem julgados em segunda instância.

O sacerdote lembra, porém, que a nulidade do matrimónio não é decretada em todos os casos de divórcio. “O que se faz no processo é muito simples: olha-se para o momento do vínculo para perceber se naquele ‘sim’ estavam reunidos todos os elementos necessários ao casamento católico. Em alguns casos, o casamento foi mesmo válido, não pode ser declarado nulo“, explica. É nesses casos que se devem procurar os tais “caminhos de integração” alternativos de que Francisco fala na exortação apostólica, que podem passar pelo acesso aos sacramentos.

Ainda assim, no final de 2016, um ano depois da entrada em vigor das novas regras, o número de pedidos de nulidade aumentou: em 2015, foram registados 129 processos, número que em 2016 subiu para 196.

Porque é que o cardeal-patriarca escreveu agora este documento?

Precisamente na sequência da publicação da exortação apostólica Amoris Laetitia e da declaração da carta dos bispos argentinos como parte do Magistério da Igreja, bispos de todo o mundo começaram a publicar orientações, normas ou conselhos para os padres das suas dioceses, tendo em conta as realidades diferentes nas várias regiões do mundo.

Portugal não foi exceção, e já algumas dioceses, como Braga e Aveiro, publicaram documentos de orientação sobre como aplicar nos seus territórios as orientações dadas pelo Papa Francisco no que toca ao acompanhamento dos divorciados recasados.

Esta semana, foi D. Manuel Clemente, patriarca de Lisboa, quem publicou as orientações destinadas aos padres da diocese de Lisboa.

E o que diz o documento?
O cardeal-patriarca começa por sublinhar que o Papa Francisco “não esquece as situações de fragilidade, especialmente as assim chamadas ‘irregulares’, em que ao matrimónio sucedeu a rutura e um casamento civil” e que os padres devem agir segundo as orientações do seu bispo. D. Manuel Clemente pega em três documentos: a exortação Amoris Laetitia, as cartas entre Francisco e os bispos argentinos, e ainda as indicações dadas aos sacerdotes da diocese de Roma pelo Papa, em jeito de exemplo aos restantes bispos.

Num primeiro de cinco pontos, D. Manuel Clemente contextualiza o problema, sublinhando a questão da ausência de culpabilidade, fator que pode ser uma atenuante para a “situação objetiva de pecado” que os divorciados vivem aos olhos da Igreja Católica, e chamando a atenção para a célebre nota de rodapé que abre a porta à admissão aos sacramentos das pessoas em situação “irregular”.

O bispo prossegue, recordando os vários pontos elencados pelos bispos argentinos: o facto de não se tratar de “autorizações” para aceder aos sacramentos, a proposta a fazer ao casal em causa na segunda união de que viva “em continência” — ou seja, “segundo o ensinamento de S. João Paulo II“, abstendo-se de relações sexuais –, e ainda que, em casos mais complexos que possam originar situações conflituosas, o acesso aos sacramentos seja feito “de modo reservado”.
Católicos recasados são aconselhados a abster-se de ter relações sexuais

O que significa “de modo reservado”? O padre Rui Pedro Carvalho explica que depende de cada caso, mas lembra que há situações em que “pessoas externas ao casal ou à família conhecem partes da história e podem considerar que aquelas pessoas não têm condições para comungar”. Segundo o sacerdote, nesses casos “normalmente o confessor tem elementos que a maior parte das pessoas não tem” e pode autorizar o acesso ao sacramento. Contudo, pode sugerir que tal aconteça, por exemplo, numa outra comunidade onde o casal não seja conhecido, ou numa celebração de menor dimensão.

“Insistindo no acolhimento cordial e respeitoso de todas as pessoas, especialmente nos casos referidos, o Papa Francisco pretende sobretudo ressaltar o valor do matrimónio cristão e a necessidade de o preparar e acompanhar”, escreve ainda o cardeal-patriarca, deixando no final seis “alíneas operativas” retiradas da documentação referida, que os padres de Lisboa devem ter em consideração no acompanhamento dos divorciados que manifestem intenção de se reaproximar da Igreja:
“Acompanhar e integrar as pessoas na vida comunitária, na sequência das exortações apostólicas pós-sinodais”;
“Verificar atentamente a especificidade de cada caso”;
“Não omitir a apresentação ao tribunal diocesano, quando haja dúvida sobre a validade do matrimónio”;
“Quando a validade se confirma, não deixar de propor a vida em continência na nova situação”;
“Atender às circunstâncias excepcionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados”;
“Continuar o discernimento, adequando sempre mais a prática ao ideal matrimonial cristão e à maior coerência sacramental”.

O cardeal-patriarca aconselha os divorciados recasados a não terem relações sexuais?

A “vida em continência” é referida em duas passagens desta nota. A primeira cita a carta dos bispos de Buenos Aires, um documento que assumidamente surge como inspirador desta missiva: «… pode-se propor o compromisso em viver em continência. A Amoris laetitia não ignora as dificuldades desta opção (cf. nota 329) e deixa aberta a possibilidade de aceder ao sacramento da Reconciliação, quando se falhe nesse propósito (cf. nota 364, segundo o ensinamento de S. João Paulo II ao Cardeal W. Baum, de 22/03/1996)». A seguir expõe as circunstâncias em que não sendo possível a continência se pode mesmo assim ter acesso a alguns Sacramentos.

A segunda referência é mais adiante, numa das “alíneas operativas” deixadas no final do texto, quando D. Manuel Clemente diz aos padres da sua diocese que não devem “deixar de propor a vida em continência” aos casais que estão unidos em segundo casamento que não tenham tido o seu matrimónio católico declarado nulo. Isto sem deixar de “atender às circunstâncias excecionais e à possibilidade sacramental, em conformidade com a exortação apostólica e os documentos acima citados”.

A proposta, porém, não é nova. A doutrina da Igreja é bem conhecida no que toca à sexualidade e esta questão concreta está escrita nos documentos da Igreja desde 1981, altura em que o Papa João Paulo II escreveu na exortação apostólica Familiaris Consortio que, “quando o homem e a mulher [divorciados e casados de novo], por motivos sérios — quais, por exemplo, a educação dos filhos — não se podem separar, assumem a obrigação de viver em plena continência, isto é, de abster-se dos actos próprios dos cônjuges“.

Isto leva o diretor do serviço de pastoral familiar do patriarcado de Lisboa, padre Rui Pedro Carvalho, a dizer que “não é D. Manuel quem aconselha, é o Papa João Paulo II”, e que é “redutor” afirmar que o patriarca se lembrou agora de fazer esta proposta.

“Imaginemos um casal, uma segunda união, em que ambas as pessoas são fiéis e querem aproximar-se novamente da Igreja, mas apercebem-se de que há um primeiro casamento que não foi dissolvido. Aquilo que se propõe é que para viver nesta comunhão total vivam como irmãos, que vivam em continência“, explica o sacerdote.
Abstinência sexual. “Não é D. Manuel Clemente quem aconselha, é o Papa João Paulo II”

Mas, afinal, porque é que a Igreja pede isto aos divorciados? É preciso compreender, em primeiro lugar, o que é que a doutrina da Igreja diz sobre a sexualidade para todos. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, documento que compreende toda a doutrina da Igreja, é na sexualidade — que tem como fundamental propósito a geração dos filhos — que “se exprime a pertença do homem ao mundo corporal e biológico”, sendo os atos sexuais “honestos e dignos”.

A doutrina católica não diz, porém, que os atos sexuais sirvam apenas para a procriação. “A continência periódica, os métodos de regulação da natalidade baseados na auto-observação e no recurso aos períodos infecundos estão de acordo com os critérios objetivos da moralidade“, esclarece o Catecismo, sublinhando que apenas os métodos contracetivos — os que se propõem, “como fim ou como meio, tornar impossível a procriação” são considerados maus.

Para a Igreja Católica, os atos sexuais são “próprios e exclusivos dos esposos”, não sendo algo “puramente biológico”, mas que “diz respeito ao núcleo íntimo da pessoa humana como tal”. “Ela só se realiza de maneira verdadeiramente humana se for parte integral do amor com o qual homem e mulher se empenham totalmente um para com o outro até à morte”, lê-se no Catecismo. Esta dimensão da doutrina determina que a sexualidade deve estar confinada ao casamento, pelo que qualquer ato sexual fora do casamento é entendido como pecado.

Ora, se um casal se divorciar e as pessoas em causa voltarem a casar civilmente, mas o seu matrimónio não for declarado nulo, aos olhos da Igreja continuam casados com o primeiro cônjuge. Isso significa que, do ponto de vista da Igreja, qualquer ato sexual com o novo parceiro é considerado como “fora do casamento” — portanto, pecado. Por isso, a Igreja considera que se um casal de divorciados (ou em que um dos elementos é divorciado) quiser estar em comunhão com a Igreja, deve viver “como irmãos”, ou seja, em abstinência sexual.

Que outras dioceses portuguesas estão a aplicar estas novas orientações? E de que forma?

A iniciativa de D. Manuel Clemente não é inédita em Portugal. Pelo menos duas dioceses, Aveiro e Braga, já publicaram documentos ou cartas pastorais sobre a forma como pretendem levar a cabo este acompanhamento dos divorciados nos seus territórios.

O primeiro a ser conhecido foi o da arquidiocese de Braga, cujo arcebispo, D. Jorge Ortiga, publicou no final do ano passado a carta pastoral “Construir a casa sobre a rocha” (na página 25 são expostos os critérios de orientação pastoral para a aplicação do capítulo VIII da Amoris Laetitia).

A grande novidade naquela diocese é a criação de um grupo específico — composto por leigos e sacerdotes — para se dedicar a acompanhar os cristãos que se divorciaram e voltaram a casar. “Para além de informar e aconselhar sobre processos de declaração de nulidade do matrimónio, a equipa irá acompanhar cada caso, para que, após um processo de discernimento pessoal, seja reavaliado o acesso aos sacramentos e a possibilidade de virem a ser padrinhos/madrinhas“, explicou na altura a diocese.

Reforçando que, tal como explicaram os bispos argentinos, não pretende dar autorizações gerais para aceder aos sacramentos, o documento sublinha que se trata “de um processo de discernimento pessoal, no foro interno, acompanhado por um pastor com encontros regulares, que ajuda a distinguir adequadamente cada caso singular à luz do ensinamento da Igreja”.
Arquidiocese de Braga “abre” sacramentos a divorciados recasados

Já em Aveiro, o bispo D. António Manuel Moiteiro Ramos publicou o documento “Acompanhar, discernir, integrar“, com um guia completo a ser usado naquela diocese para o acompanhamento dos casais divorciados e recasados.

No documento, em tudo semelhante ao publicado recentemente em Lisboa, são referidos os pontos apresentados pelos bispos argentinos e é feita a mesma proposta que agora causou celeuma em Lisboa:

“Quando as circunstâncias concretas de um casal o tornem factível, especialmente quando ambos sejam cristãos com um caminho sólido de fé, pode-se examinar a possibilidade do compromisso de viverem em continência conjugal“, lê-se no documento.

Nas próximas semanas ou meses, todas as dioceses portuguesas deverão elaborar e publicar documentos semelhantes, muitos deles replicados dos já conhecidos, disse ao Observador fonte eclesiástica.

No que diz respeito ao patriarcado de Lisboa, não se prevê para já a criação de um grupo específico para o acompanhamento destas situações, segundo o padre Rui Pedro Carvalho. “Aqui, a indicação é a de que cada padre faça esse trabalho. Claro que temos as estruturas da diocese, como a pastoral familiar e o tribunal, para ajudar e aconselhar, mas é o padre de cada comunidade que conhece bem os casos“, explica o sacerdote.

Entrevista ao novo bispo do Porto: uma lufada de ar fresco?

Bispo do Porto está convencido de que um casal em abstinência sexual não é bem família 

Por João Francisco Gomes, 17 de Março de 2018, no Observador

Em entrevista ao Observador no dia da nomeação, o novo bispo do Porto, D. Manuel Linda, diz-se fã do papa Francisco a "200%" e admite que dará o seu contributo para a discussão sobre os divorciados.


O novo bispo do Porto, D. Manuel Linda, ainda está a fazer as malas para se mudar da casa patriarcal de Lisboa — onde reside, como diz, por “amabilidade do senhor patriarca D. Manuel Clemente”, uma vez que a diocese das Forças Armadas, que liderava até hoje, não tem um território físico. Porém, diz-se decidido a dar, mesmo que não seja para já, o seu contributo para uma das discussões mais atuais da Igreja Católica: a situação dos divorciados que voltaram a casar.

A diocese do Porto está sem bispo desde a morte de D. António Francisco dos Santos, em setembro do ano passado, vítima de um ataque cardíaco fulminante, que deixou a Igreja Católica portuguesa em choque. Por isso, ainda não foram publicadas orientações locais para a aplicação da exortação apostólica Amoris Laetitia, do papa Francisco, sobre a família — como se fez, por exemplo na arquidiocese de Braga (num documento muito elogiado pela abertura que demonstrava) e no patriarcado de Lisboa (num documento que colocou o patriarca D. Manuel Clemente sob fogo por propor a abstinência sexual aos divorciados que casaram novamente).

Em entrevista ao Observador no dia em que foi tornada pública a sua nomeação como bispo do Porto, D. Manuel Linda, 61 anos, que se diz fã do papa Francisco a “200%”, garante que conhece vários casais de divorciados recasados que, “por motivos de fé e da sua convicção interior”, vivem em abstinência sexual. “Mas temos de nos perguntar: isso é mesmo família? Estou convencido de que não é bem família“, considera o novo bispo do Porto.

Na entrevista, D. Manuel Linda conta também como percebeu que o papa Francisco estava “interessado de forma pessoal” no seu nome para a diocese do Porto; garante que apesar de ser “absolutamente contra” o aborto e a eutanásia, não vai passar o seu tempo “na praça pública” a denunciar propostas que choquem com a doutrina da Igreja, preferindo propor a doutrina “a quem a queira ouvir”. E ainda critica a “verdadeira exploração” de muitas freiras ao serviço do clero.

Na mensagem que deixou aos membros das Forças Armadas diz que o pedido do Papa para ir para o Porto era “irrecusável”. Só porque não se pode recusar nada ao Papa, ou o pedido foi especial?
Fundamentalmente por esse motivo, mas depois porque há uma série de indícios em que noto que o Papa estava muito interessado, de forma pessoal, personalizada, no meu nome. Quando assim acontece, a um amigo não se pode dizer que não.

Que indícios eram esses?Uma série de circunstâncias desde outubro até agora (risos). Algumas coisas lidas retrospetivamente, telefonemas que me fizeram de Roma… Eu tinha pedido determinados trabalhos aqui na nossa peregrinação militar a Fátima e foram adiando. Eu não entendia porquê e agora entendo que era uma forma indireta de me dizer “nessa altura podes já estar comprometido com outro assunto”.

Como foi feito o convite?O convite foi feito de forma normal. O embaixador da Santa Sé, que é o núncio apostólico, telefonou-me. Eu estava no estrangeiro com uma peregrinação militar, curiosamente. Ele telefonou-me exatamente a dizer: “O Santo Padre escolheu-o, agora você tem de refletir se aceita ou não aceita”. Quando vim, fui à Nunciatura, depois de muito refletir, dizer que aceitava.

Quanto tempo refletiu?Quase uma semana, de segunda a sexta, creio.

Durante essa reflexão, que fatores pesaram a favor e contra?O grande fator é a vontade do Papa e é também o facto de eu estar habituado a dizer “sim”. Eu não sou militar, mas de alguma maneira a cultura militar passou para mim e quando nos apresentam uma guia de marcha nós não olhamos para trás. Temos de seguir para onde nos mandam.

Havia uma lista que saiu para a imprensa com três nomes. O senhor era um deles, havia o bispo de Coimbra…E também o auxiliar do Porto, D. António Augusto.

O que pesou nessa escolha final? A sua proximidade direta do Papa, de que falava?Aí não me posso pronunciar, só o Santo Padre e quem esteve mais diretamente ligado ao processo é que podia dizer. De qualquer maneira, todos os bispos de Portugal que estão no ativo, todos sem qualquer exceção, podiam ser bispos do Porto. Agora, por exemplo, para ser o meu colega de Coimbra, ao tapar o furo do Porto abria um em Coimbra. O meu colega que vai trabalhar comigo, que é o D. António Augusto, seria um ótimo bispo para o Porto. Mas ele é muito novo. É um jovem, próximo de 50 anos, só tinha um contra: como depois não iria passar de uma diocese importante para outra menos importante, teria de lá ficar 20 ou 25 anos, o que é muito. De resto, insisto nesta tónica: todos os bispos de Portugal, esses dois de que me falou e todos os outros, podiam ser ótimos bispos do Porto.

Passou pela arquidiocese de Braga como auxiliar e depois pelas Forças Armadas, ou seja, esta vai ser a sua primeira experiência à frente de uma diocese, digamos, tradicional. Com um território. Vai ser mais desafiante?A esse nível sim, é mais desafiante, na medida em que aquele âmbito que eu conhecia aqui no Ordinariato era mais de um contacto com as pessoas adultas. Por exemplo, nós praticamente não temos crianças, não temos catequese, não temos formação da juventude, não temos trabalho com adolescentes, não temos lares da terceira idade, não temos colégios. A realidade é outra. A diocese das Forças Armadas só por analogia se pode considerar uma diocese. O trabalho da realidade do dia a dia, de lidar com as mais diversas pessoas, desde o bebé até ao velhinho, entre aspas, aqui nas Forças Armadas não encontrava. Tentarei adaptar-me.

Porque é que as Forças Armadas têm um bispo?Têm em praticamente todas as nações da NATO. Curiosamente os Ordinariatos — chamam-se assim as dioceses militares — nem sequer surgiram na Europa, surgiram na América Latina. O primeiro do mundo foi o Peru. Porquê? Por todos os motivos e mais alguns. Há um conjunto de capelães que prestam assistência às Forças Armadas e às forças de segurança que têm necessidade de uma espécie de referência. Chamemos-lhe, em linguagem simples, um bispo que os coordene. Depois, há também muitos sacramentos que são típicos dos bispos, por exemplo o batismo dos adultos e os crismas. Na própria Inglaterra, que é um país maioritariamente Anglicano, há um Ordinariato Católico para acompanhar os católicos que estão nas Forças Armadas. Portanto, é uma estrutura habitual, que não existe a não ser para militares — em qualquer parte do mundo não há outros Ordinariatos –, e que a Igreja historicamente criou para acompanhar estes homens e mulheres que são portadores de muita mobilidade. Têm missões no exterior e é preciso que haja quem lhes proporcione os sacramentos e quem coordene os capelães.

Em Portugal há muitos militares a procurar esse apoio ou trabalhava com uma minoria dos militares?Trabalho com todos. Mesmo aqueles que porventura não se revejam nos valores católicos são portadores de imensa simpatia. Quando se fala em fé não é passar todo o dia com as mãos erguidas a rezar Pai-Nossos e Avé-Marias. Há dimensões prévias, como a simpatia, o convívio. Também o ouvir e o desabafar, um trabalho tão frequente, o maior trabalho dos capelães e da parte do bispo inclusivamente. Tudo isso, que são relações humanas, são de alguma maneira já enquadradas na assistência religiosa que nós prestamos. Portanto, quando me pergunta se é uma minoria… Se for aos sacramentos, pode ser só o grupo dos que precisam, dos que os procuram. Mas no trabalhar, trabalhamos com todos, incluindo com gente de outras confissões religiosas.

Já estudou os problemas e os desafios da diocese do Porto?Não (risos)! Se calhar lá não há problemas e é tudo muito simples!

Mas então que desafios acha que vai ter?Os grandes desafios são exatamente criar uma cultura de simplicidade, uma cultura do que nós chamamos a corresponsabilidade, todos nos entusiasmarmos pelo mesmo projeto. Enfim, não é na dimensão pastoral, uma técnica nova que vai movimentar todas as pessoas. Não é nada disso, isso não interessa absolutamente nada. O que nos interessa é que falemos todos a mesma linguagem, a linguagem da simplicidade, da abertura ao mundo, de estarmos voltados para os grandes problemas e darmos o nosso contributo para conseguirmos resolver alguns deles.

Já que fala de simplicidade, na primeira mensagem aos católicos do Porto fala muitas vezes em ideias que o papa Francisco repete frequentemente. A proximidade aos mais pobres, às periferias, aos doentes, esta ideia do regresso à simplicidade do Evangelho… É um fã assumido do estilo do papa Francisco?A 200%! Completamente, completamente.

Porquê?Por isso mesmo. A pastoral da Igreja, o anúncio que temos de fazer, não é uma técnica, não é uma sabedoria, não é uma capacidade como os televangelistas — sem desprimor para eles — que usam um discurso eloquente convencidos de que assim cativam muitas pessoas, e porventura cativarão. Não. A nossa pastoral é a presença, uma presença fermentadora. Não há outra chave para abrir o coração humano que não seja a simpatia, a cordialidade, a afetividade, o estarmos ao mesmo nível. Se nos colocamos num patamar diferente, a nossa voz não é ouvida nem os outros querem escutá-la.

É essa a novidade que o papa Francisco trouxe?Fundamentalmente passa por aí, por essa capacidade de nos voltarmos para aqueles a que ele chama os excluídos, os da periferia. Ao fim ao cabo, com um critério de misericórdia, e a misericórdia é um dado muito global e neste sentido muito concreto, que reflete precisamente esta proximidade afetiva, este coração que se aproxima de outro coração, como uma espécie de bluetooth, deixe-me usar uma expressão da tecnologia (risos).

Em 2015, num artigo de opinião da Ecclesia falava da questão do aborto. Na altura, criticou o Parlamento pela forma como discutiu uma petição relativamente à alteração da legislação do aborto e disse que os deputados simplesmente tinham reafirmado os pressupostos ideológicos por trás daquela legislação. Acha que agora, enquanto bispo do Porto, que tem uma visibilidade maior na sociedade, vai ter uma capacidade de intervenção maior nestes assuntos? Por exemplo, agora discute-se a questão da eutanásia.Porventura terei de o fazer, até porque a Igreja e a sociedade esperarão de quem tem uma maior visibilidade uma tomada de posição. Durante muitos anos, eu fui professor de ética social, de moral social, na Faculdade de Teologia, e dizia aos meus alunos uma expressão e permita-me que a repita. A denúncia do mal é uma espécie de carta de condução por pontos. Se nós passamos a vida a denunciar tudo, a dizer mal de tudo, vamos perdendo os pontos e já não temos credibilidade. Portanto, não se espere de mim que passe a vida a dizer mal da sociedade, das propostas que os partidos ou outros setores da cultura ou da sociedade façam e que, porventura, choquem contra os meus pressupostos doutrinais. Não se espere que venha para a praça pública com uma espada da mão e com um elmo noutra mão a desafiar todos. A nossa missão não é tanto de estar a fazer desafios, de denunciar, é propor. Claro que na proposta da doutrina serei irrecusável. Aquela doutrina que é a minha procurarei propô-la aos cristãos e a outras pessoas que a queiram ouvir. Mas uma coisa é propor, outra coisa é passar a vida a denunciar.

Ou seja, em questões como o aborto ou a eutanásia, é absolutamente contra.Absolutamente contra. Disse bem.

Há um assunto que tem estado na ordem do dia que é a forma como as dioceses têm aplicado a exortação Amoris Laetitia, do papa Francisco. O patriarca de Lisboa foi muito criticado pelo documento que fez por ter proposto a abstinência sexual, ao passo que, por exemplo, o arcebispo de Braga fez um documento que foi muito elogiado. O D. Manuel prevê fazer um documento para o Porto que toque neste ponto da abstinência sexual?É verdade que essa é uma problemática, que é mais um processo do que uma tomada de decisão pessoal. É das coisas que não se resolvem fazendo um decreto e pondo lá a minha assinatura. É um processo de consulta, de diálogo, das estruturas de participação da diocese, que tem vários conselhos — o conselho pastoral, o conselho presbiteral, o conselho de consultores. Tudo isso tem de ser implicado. O documento do senhor D. Jorge, de Braga, é exatamente o resultado disso tudo. Também o documento dos bispos do centro de Portugal é resultado disso tudo. Claro que, evidentemente, eu também não ficarei para trás, mas isso é com o tempo. Não se espere que seja daqui a oito dias que vá tomar uma posição. Aqui no Ordinariato nunca a tomei em função de outros âmbitos. Primeiro que tudo, nós não temos o casamento canónico nas nossas capelanias. Há a transcrição do registo civil e são as paróquias territoriais que se encarregam de mandar o processo e de o organizar na relação da Igreja com o Estado. Nós não temos isso, portanto essa problemática dos recasados — já que nós não temos também Tribunal Eclesiástico — diz mais respeito às dioceses territoriais do que propriamente a esta estrutura onde eu estava até este momento.

Vai passar a dizer-lhe mais agora.Agora no Porto vai ter de me dizer mais, evidentemente. Começa a haver caminho feito, caminho que é um processo, que aliás é muito típico deste Papa. Este Papa desencadeia processos e põe toda a Igreja a refletir. Claro que, quando é toda a Igreja na sua diversidade, uns podem seguir mais por uma linha direita, esquerda, de frente, de trás, de um lado e de outro. Mas é depois de tudo isto acalmar, daqui a alguns anos, que poderemos ter uma ideia mais perfeita, mais global. Também darei o meu contributo.

Diz que há várias linhas. A sua linha coincide com a de D. Manuel Clemente?A linha de D. Manuel Clemente é a linha oficial da Igreja, como todas as outras. A forma como ele se expressou a respeito da abstinência sexual é que pode ser mais mal interpretada. E também, se me permite, eu estou convencido de que quem divulgou o documento leu apenas esse bocadinho e não prestou atenção ao contexto. Portanto, não tenho nada contra o documento do senhor D. Manuel Clemente, nem de longe nem de perto. Mas, de facto, para ser sincero, sei que há alguns casais recasados, que já tinham vivido em matrimónio canónico e que depois refizeram a sua vida e estão noutro casamento já não canónico, que por motivos de fé e da sua convicção interior e de consciência, de facto vivem em abstinência sexual. Mas temos de nos perguntar: isso é mesmo família? Estou convencido de que não é bem família. Uma coisa é uma convivência como eu tenho aqui na casa com outras pessoas, mas não somos família. Outra coisa é ser família. Portanto, não insistiria muito neste tema da abstinência sexual, de facto.

Recentemente foi publicado na revista do Osservatore Romano uma reportagem sobre a exploração de freiras por parte de membros do clero. Vai procurar, na diocese do Porto, tentar perceber se isto existe e tentar combater esta realidade?É verdade. Os religiosos [n.d.r. membros consagrados de institutos religiosos, como freiras e frades, mas não padres do clero secular] têm o voto de pobreza. Não querem dinheiro por opção própria. Ninguém lhes impôs, são eles que assim desejam, querem viver à maneira de São Francisco, de São Bento ou de São Domingos, na pobreza, na obediência e na castidade. Como os religiosos, teoricamente, serão mais próximos do pessoal dirigente, dos bispos, dos cardeais de Roma, às vezes algum bispo diz assim: “Ó minha irmã, você não tem aí duas ou três irmãs que queiram, por exemplo, na minha casa, fazer o almoço?”. E depois aquelas pessoas acabam por receber, de facto, uma quantia muito pequenina. Em termos do que nós chamamos o mercado de trabalho, seria uma verdadeira exploração. Verdadeira exploração. Entretanto, não nos podemos esquecer que são pessoas que, por opção, querem viver na pobreza. Estou convencido de que nessas circunstâncias, quando as pessoas trabalham para alguma estrutura da Igreja, devem ganhar o justo. Depois, farão com aquele dinheiro o que muito bem entenderem. O grande entendimento será o de dá-lo aos pobres. Se as pessoas querem viver na pobreza, ótimo. Mas então, aquilo que ganham fruto legítimo do seu trabalho que seja reencaminhado para um fim bom, como serão as carências humanas.

Um problema que esta reportagem levanta é também a desigualdade entre homens e mulheres na Igreja. A maioria, para não dizer a totalidade, dos que faziam aqueles serviços domésticos eram religiosas e não religiosos. A Igreja discrimina as mulheres?Quer dizer, não discrimina as mulheres. O grande teor do âmbito mental de quem escreveu, aquilo a que se referia, era fundamentalmente aos trabalhos domésticos. Ora, por motivo da nossa cultura ocidental, quem faz habitualmente os trabalhos domésticos é a parte feminina, portanto referia-se mais à parte feminina do que aos religiosos masculinos.

Essa ideia de que quem faz os trabalhos domésticos são só as mulheres não está a mudar?Evidente que sim.

E a Igreja não tem de acompanhar essa mudança?Tem, evidentemente. Às vezes nesse campo até cometeu exageros. Por exemplo, antigamente nos seminários os funcionários eram praticamente só homens. Depois, passou exatamente para o contrário, só senhoras. Temos de perder os nossos complexos, se é que os temos, e viver uma naturalidade como ela é na vida e na cultura de hoje.

Suceder a um bispo como D. António Francisco dos Santos, considerado um grande bispo, aumenta a responsabilidade?É óbvio. Não tenhamos ilusão, qualquer pessoa reconhecerá. Só um cego é que é capaz de não o ver. O D. António Francisco não se impôs por um discurso eloquente, embora tivesse essa capacidade. Não foi por gestos mirabolantes. Era por aquela simpatia que cativa e isso deixa marcas. Um pensamento extingue-se facilmente. Uma técnica especial que uma pessoa possua também acaba por, direta ou indiretamente, se desfazer. Mas quando se cativam os corações, eles ficam lá com esta marca muito viva. O D. António Francisco está muito vivo no coração dos diocesanos do Porto. Logicamente, não tenho ilusão, vou ser confrontado com ele. Vai haver quem diga: “O D. António Francisco era assim e o senhor é desta maneira”. Não tenho ilusão, isso vai acontecer de certeza absoluta. Procurarei honrar a sua memória, que muito admiro, exatamente com um comportamento e uma ação muito semelhante à dele.

Porque estou aqui

Sinto-me privilegiado por ter encontrado na Igreja um lugar vazio, feito à minha medida. É certo que tê-lo encontrado (ou encontrá-lo renovadamente, pois não é dado adquirido) foi também mérito da minha sede, do meu empenho, de não baixar os braços e achar, passivamente, que não seria possível. Passo a contextualizar: a comunidade onde vou à missa é pequena e acolhedora, e podia bem não o ser. Ao mesmo tempo, sentia um desejo grande de reflexão de vida cristã e encontrei um casal (heterosexual) que tinha a mesma vontade. Começámo-nos a reunir semanalmente numa pequena comunidade de oração e reflexão que, apesar de crítica, nos tem ajudado a sermos Igreja e a nela nos revermos. Paralelamente, face ao contínuo desencanto em relação a algumas posturas e pontos de vista de uma Igreja mais institucional e hierárquica, tive a graça de encontrar um grupo de cristãos homossexuais, que se reuniam com um padre regularmente, sem terem de se esconder ou de ocultar parte de si.

Sei que muitos cristãos homossexuais nunca pensaram sequer na eventualidade de existirem grupos cristãos em que se pudessem apresentar inteiros, quanto mais pensarem poder tomar parte e pôr em comum fé, questões, procuras, afectos e vidas.

Por tudo isto me sinto grato a Deus e me sinto responsável para tentar chegar a quem não teve, até agora, uma experiência tão feliz como a minha.

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