Pequeno Tratado da Oração Silenciosa
«O silêncio e a interioridade não são apanágio exclusivo das tradições religiosas do Oriente, como comumente se pensa, pois existe também uma forma cristã muito simples de orar em silêncio. Na longa história da prática orante dos cristãos, desde os seus primórdios, é usada a repetição continuada do Nome de Deus, como forma de se recentrar a atenção na presença divina.»
É desta constatação que parte o novo livro "Pequeno tratado da oração silenciosa", de Jean-Marie Gueullette, OP, que a Paulinas Editora acaba de publicar, realçando aquele método de oração «que, no Ocidente, passou por períodos de difusão e de esquecimento».
«No entanto, a aproximação recente às tradições ortodoxas, onde se manteve sempre viva e particularmente incentivada pelas comunidades monásticas, está a reavivar, agora, de forma progressiva essa edificante prática entre nós», refere o texto de apresentação do volume, de que apresentamos um excerto.
Uma oração simples
In "Pequeno tratado da oração silenciosa"de Jean-Marie Gueullette
O gosto pela complexidade
A maneira de rezar de que falamos é extremamente simples, e muitas vezes, por essa mesma razão, pode parecer difícil. Nós temos uma vida complicada, incessantemente confrontada com dificuldades de todo o tipo. A simplicidade não nos é natural, nem sequer na vida espiritual. Aquele para quem a oração parece uma realidade ausente da própria vida terá tendência para pensar que é por falta de tempo e de competência. «Se eu não rezo, é certamente porque isso toma muito tempo, mas, de qualquer forma, eu não sei como hei de rezar.»
Na Bíblia, há uma história que nos permite refletir sobre essa necessidade que sentimos de olhar para a relação com Deus como uma coisa complicada, sendo preferível renunciar a ela: 2Reis 5. O sírio Naaman era leproso e veio visitar o profeta Eliseu na esperança de obter dele a sua própria cura. Este recomenda-lhe que faça uma coisa muito simples: que se lave sete vezes seguidas no rio. Naaman sente-se despeitado. Esperava que o profeta fizesse gestos muito estranhos, pronunciando palavras misteriosas; ele, pelo contrário, manda-o lavar-se. Começa a matutar dizendo que na sua terra também se poderia lavar e que não havia necessidade de fazer uma viagem daquelas para ouvir uma prescrição terapêutica daquele tipo. O seu servo, cheio de sabedoria, diz-lhe: «Se o profeta te tivesse mandado fazer alguma coisa extraordinária, tu não a terias feito?» Também hoje, constatamos um interesse crescente por métodos terapêuticos estranhos, recorrendo a substâncias exóticas ou a exercícios complicados; muitos apaixonam-se por conceções antropológicas complexas, persuadidos de que têm três ou quatro corpos, dos quais um é luminoso, etc. Frente a semelhante arsenal, pode parecer muito pobre dizer que, para rezar, devemos assumir a posição conveniente e colocar-nos na presença de Deus com todo o nosso ser. Contudo, esse é um ensinamento muitíssimo presente na tradição cristã. Muitíssimo presente e, no entanto, ignorado, talvez por ser demasiado simples.
Quando contrapomos conhecimento e amor, é porque, com frequência, colocamos uma distância excessiva no ato do conhecimento – como no caso do conhecimento científico –, ou porque colocamos demasiado sentimento no amor, bem como na experiência amorosa. No entanto, é possível articular os dois movimentos interiores
Entregar-se, pura e simplesmente, a Deus
A tradição cristã atribuiu um lugar importante à inteligência humana na vida espiritual: colocando no âmago da sua fé o acolhimento da Palavra de Deus, suscita um movimento em que a palavra e a relação com o texto são essenciais. Escutar uma palavra, ler um texto, requer não só que se procure entender, mas também que se aspire a conhecer aquele que é o seu autor. Assim, estamos habituados a utilizar a nossa inteligência para tentar conhecer Deus, compreender a sua Palavra e conhecermo-nos a nós mesmos. Nós estamos bem cientes de que uma busca assim nunca está terminada, mas, pelo menos, temos a impressão de saber como empreendê-la. Há que ler vários textos, que refletir e, eventualmente, que falar deles com outras pessoas.
Amar a Deus, porém, como poderemos chegar a fazê-lo? Como amar Aquele que não vemos? Fala-se muito de amor no cristianismo, mas será que o amor de Deus tem alguma coisa de comparável com as várias formas do amor humano? Ao colocarmos estas interrogações, retomamos novamente e reflexão, e deste modo, portanto, deixamos de estar no amor.
A proposta que fazemos aqui é a de que se tomem as coisas de outra forma. Com efeito, não é muito fecundo distinguir de forma demasiado radical conhecer e amar, como se o esforço para conhecer Deus fosse um obstáculo à relação com Ele; ou como se o amor que o crente nutre por Ele não tivesse nada a ver com aquela inteligência que é própria do ser humano. Quando contrapomos conhecimento e amor, é porque, com frequência, colocamos uma distância excessiva no ato do conhecimento – como no caso do conhecimento científico –, ou porque colocamos demasiado sentimento no amor, bem como na experiência amorosa. No entanto, é possível articular os dois movimentos interiores, de modo a que aquilo que conhecemos de Deus alimente o amor que temos por Ele, e que esse amor nos aproxime dele de uma forma que ajude a descobri-lo por aquilo que Ele é.
Limitemo-nos, portanto, a fazer atos de amor a Deus, com todo o nosso coração. Voltemo-nos para Ele com todo o nosso ser, incluindo a inteligência, num movimento que implica, ao mesmo tempo, adoração, veneração, confiança, afeto filial, amizade, esperança, todo o tipo de harmonia, diferente, consoante as pessoas e os momentos. O essencial é entregarmo-nos completamente a Ele. Porquê? Porque essa é a única maneira de entrarmos em relação com Ele em modo de igualdade. Ele dá-se completamente àquele que está disposto a acolhê-lo. Ele está presente, de forma incondicional, ao lado daqueles que criou e que considera seus filhos. Tudo o que nós podemos fazer, é fazer como Ele: dar-mo-nos completamente, mantermo-nos presentes. Sabendo apenas que a sua autodoação precederá sempre a nossa.
O ser humano tem a característica de não poder manter-se por muito tempo no mesmo ato interior. Muito depressa, as preocupações devidas ao trabalho e às preocupações quotidianas invadem o espírito e desviam-no do seu movimento para Deus. A meditação contemplativa repousa, pura e simplesmente, sobre a divisão do tempo em pequenas unidades: nós não somos capazes de amar a Deus, de nos entregarmos a Ele durante muito tempo, de maneira uniforme, mas podemos fazê-lo numa sucessão de momentos muito breves. Em cada um desses momentos é possível querer amar a Deus; querermos manter-nos na sua presença com tudo aquilo que somos.
Regressar, mediante uma palavra, à presença de Deus
Esta maneira de rezar é muito simples, consistindo em dizer interiormente uma palavra, enquanto nos mantemos calmamente sentados.
A oração do Nome
Nesta etapa, a oração apoiar-se-á numa única palavra. O ideal é utilizar o nome pelo qual, na oração, nos dirigimos es pontaneamente a Deus: Pai, Abba, Jesus, Senhor, Deus, Kyrie eleison, Adonai... Não é necessário interrogarmo-nos muito sobre a escolha dessa palavra. Como é óbvio, não existe uma palavra melhor nem mais eficaz do que outra. Basta tomar o nome que se atribui, natural e espontaneamente a Deus. Todavia, é importante que seja um nome de Deus, e não uma ideia sobre Deus nem um qualificativo de Deus, como «amor» ou «bondade».
Aquele que reza assim empenha todo o seu ser num movimento de fé e de amor para com Deus, enquanto profere interiormente o Nome. Depois, recomeça. Não é mais complicado do que isso. O sentido da palavra não tem muita importância, visto que não a devemos meditar intelectualmente. Não se deve tentar saborear todos os seus significados, todas as suas harmonias. O essencial é voltarmo-nos para Deus através desse nome, apoiando-nos nesse nome, como diz o Catecismo da Igreja Católica a propósito da oração baseada no nome de Jesus: «Muitas vezes repetida por um coração humildemente atento, a invocação do santo Nome de Jesus é o caminho mais simples da oração contínua » (CIC, n. 2668).
Se não sabemos que palavra devemos escolher, podemos rezar ao Espírito Santo, que reza em nós e que murmura no nosso coração «Abba, Pai», como diz São Paulo (Rm 8,15-26). Não é complicado, basta voltarmos a nossa atenção para Deus e deixar brotar do nosso coração um nome pelo qual o invocamos. Por vezes começa por escolher-se, de forma um pouco intelectual, uma palavra que parece acertada e cheia de sentido, mas depois, rapidamente, passado pouco tempo de oração, outra palavra se impõe, substituindo a primeira. Não se deve fazer isso com demasiada frequência, mas, por vezes, ao princípio, há um pequeno período de adaptação.
Depois de se ter começado a rezar repetindo esse nome, continua-se a repercutir sempre o mesmo, não só durante o tempo da oração, mas durante vários anos. Há aqui uma diferença notável em relação a outra forma de contemplação repetitiva próxima, de que já falava João Cassiano no século V, que consiste em repetir, ao longo do dia, um versículo ou uma expressão extraídos da leitura da Bíblia ou da oração do Saltério. Essa meditação é uma forma de prolongar, de maneira quase física, a leitura, de continuarmos a alimentar-nos de um texto no meio das nossas atividades. Como se trata de uma meditação – o que significa, aqui, que se saboreia o sentido ou os sentidos dessa palavra escolhida –, é normal que esta mude em cada dia, visto que essa prática é uma forma de ressonância da oração à leitura. Aqui, porém, o nome de Deus não está presente para alimentar a reflexão, para fazer descer ao fundo do coração determinado aspeto do mistério contemplado na palavra. A sua função é ser um ponto de apoio para permanecermos tranquilos na presença de Deus, para nos voltarmos para Ele. Quando se tem dificuldade em caminhar, não se muda de bengala em cada caminhada; neste caso, não se muda de nome.
Ao longo da vida, a oração silenciosa apoiar-se-á nesse nome, sempre o mesmo. Isso tem um efeito simplificador: mal pronunciamos o Nome interiormente, entramos em oração, sem termos de nos interrogar sobre a forma como fazê-lo hoje. Mais misteriosamente ainda, esse Nome torna-se no caminho da interioridade, permitindo manter-nos no fundo, eliminar toda a agitação em que estamos superficialmente mergulhados. É difícil de explicar, mas todos aqueles que fazem essa experiência confirmam esta ideia: o Nome permite-nos ter mais rapidamente acesso àquele lugar de silêncio, àquele lugar santo que trazemos em nós, santuário onde Deus reside. Como se, através do Nome, conhecêssemos o caminho desse santuário.
O nome de Deus
Se cada um tiver sempre a liberdade de usar a palavra que lhe for mais natural, só podemos recomendar a oração apoiada numa palavra que seja um nome de Deus. Dizer o nome de alguém é, ao mesmo tempo, designá-lo a ele, e não a outra pessoa, fazer referência àquilo que ele é, mas sem por isso o definir. Quando falamos de alguém, ou a alguém, utilizando um diminutivo, um título ou uma qualidade psicológica ou profissional, apoderamo-nos muito mais daquele a quem designamos, delimitando o ponto de vista a partir do qual o vemos, e que nos interessa. Se eu vou «ao médico», a vida afetiva deste ou o seu gosto pela pintura não me interessam, só espero dele que seja médico, e um bom médico. Se designamos alguém por um diminutivo, como «o Luisinho», isso torna muito difícil termos sempre presente que o Luís é grande sob outros aspetos da sua pessoa, mesmo que seja baixinho.
Quando falamos de Deus como «o Salvador» ou «o Criador», aquilo que dizemos é verdade, mas limita, de igual modo, a nossa perceção de Deus. Nós escolhemos um aspeto do mistério que nos toca ou que nos interessa, correndo sempre o risco de pensar que esse aspeto revela o Mistério, revela Deus na sua globalidade. Pelo contrário, se dizemos «Deus» ou «Jesus», não os abordamos por aquilo que Eles fazem por nós, mas por aquilo que Eles são, e que nos escapa. Quando dizemos o nome de alguém, colocamo-nos em relação com ele e, ao mesmo tempo, não dizemos nada dele, não temos a ilusão de o definir.
O conhecimento que nós temos de Deus não é da ordem da definição, da descrição. Um monge ortodoxo do fim da Idade Média escrevia: «Com efeito, desde que o pensamento não cesse de proferir o nome do Senhor, e que a inteligência esteja claramente atenta à invocação do nome divino, a luz do conhecimento de Deus cobre com a sua sombra toda a alma como uma nuvem resplandecente. A recordação exata de Deus gera o amor e a alegria».
Encontramos com frequência textos espirituais que designam Jesus Cristo como «meu Esposo», ou «meu Irmão», ou «o Bom Pastor»; tudo isso é possível, tem a sua parte de verdade, mas corre-se o risco de encerrar a relação com Cristo num registo simbólico, esquecendo-se de que Aquele de quem se fala se situa para lá de todas essas fórmulas. Nenhuma delas é adequada para dizer plenamente quem Ele é. Para não o encerrarmos numa maneira de dizer que é verdadeira, mas limitada, tentaremos enunciar todas as palavras possíveis, como se pode fazer nas litanias, ou limitar-nos-emos a uma palavra que contém todas as outras, porque não designa uma qualidade, um ato ou uma função, mas Alguém. Dizer o nome de Deus significa colocarmo-nos na presença daquele que é santo, para lá de toda a medida humana, como São Pedro Crisólogo ensinava, no século V, a propósito do Pai-nosso: «Nós [...] pedimos para merecermos ter nos nossos costumes tanta santidade, quanto é santo o nome de Deus».
Invocar o nome do Senhor: eis uma definição muito antiga da oração, segundo o versículo do profeta Joel, retomado por São Paulo: «Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo» (Jl 3,5; Rm 10,13). Invocar o nome do Senhor é voltarmo-nos para Ele, abandonarmo-nos a Ele, sem lhe apresentarmos qualquer pedido particular. Se a salvação está ligada a essa invocação, não será porque o ser humano se coloca por ela no seu justo estatuto de criatura, incapaz de se salvar por si mesmo?
Num dia 1 de janeiro, Francisco de Sales enviou uma peque na carta a Joana de Chantal, antes de esta ter fundado a Visitação. À laia de desejos de bom ano, animou-a a proferir o nome de Jesus interiormente, com amor, a fim de que a sua presença marcasse toda a sua vida e todo o seu ser:
«Minha filha, a minha pressa é tanta, que só tenho para vos escrever a grande palavra da nossa salvação: Jesus. Sim, minha filha, que nós possamos, pelo menos uma vez, pronunciar esse nome sagrado do fundo do coração. Ó, que bálsamo ele espalharia sobre todas as potências do nosso espírito! Como ficaríamos felizes, minha filha, se tivéssemos apenas Jesus no entendimento, Jesus na memória, Jesus na vontade, Jesus na imaginação! Jesus estaria em toda a parte em nós, e nós em toda a parte nele. Treinemo-nos nisso, minha queridíssima filha, pronunciemo-lo, muitas vezes só o conseguiremos balbuciar, no fim, porém, conseguiremos pronunciá-lo bem. Mas que significa pronunciar bem esse nome sagrado? De facto, pedis-me que eu vos fale claramente. Infelizmente, minha filha, não sei; sei apenas que, para pronunciá-lo bem, há que ter uma língua toda de fogo, ou seja, devemos pronunciá-lo só por amor divino que, sem mais, exprime Jesus na nossa vida, gravando-o no fundo do nosso coração. Coragem, porém, minha filha, sem dúvida amaremos a Deus, porque Ele nos ama. Pensai nisto com alegria e não permitais que a vossa alma se perturbe com coisa alguma».
Deixar aquilo que não é Deus
Proferindo interiormente esta simples palavra, o espírito volta-se para Deus, da forma mais radical possível. É-nos difícil, ou até impossível, estarmos completamente voltados para Deus sem nos distrairmos durante meia hora ou uma hora, mas será que não nos conseguimos empenhar o mais completamente possível apenas o tempo necessário para dizer uma palavra? Em seguida, só teremos de recomeçar. Esse movimento para Deus requer duas coisas: que deixemos tudo o que nos ocupa e que mobilizemos a nossa atenção, voltando-nos para Deus com fé. Escrevia Dom Chapman, monge inglês que viveu no início do século XX: «O caminho mais simples para fazer um ato de atenção a Deus é fazer um ato de inatenção a tudo o resto».
Esta forma de rezar baseia-se, com efeito, num movimento de desapego em relação a tudo o que não seja Deus. Devemos, portanto, desligar-nos de qualquer preocupação, de qualquer ideia, de qualquer recordação, boa ou má. Desligarmo-nos não é rejeitar ou esquecer, mas largar, pelo menos temporariamente, para nos podermos dar a Deus. Pôr de lado, para nos recentrarmos na presença de Deus. Na verdade, tudo isso nos pode encher a cabeça, mesmo que sejam ideias muito piedosas ou a solicitude cheia de caridade para com o nosso próximo. Mesmo que seja bom, a oração não é o momento para isso.
Se quisermos prestar atenção às confidências de um amigo, tentaremos desligar-nos dos ruídos da rua, que, noutras circunstâncias, nos poderiam fazer olhar pela janela. Deixaremos também as recordações, boas ou más, que temos das suas outras visitas, pois elas impedem-nos de o receber tal como esse amigo se encontra hoje. Todo o tipo de ideias ou de imagens atravessar-nos-ão a mente, mas nós deixá-las-emos passar, para nos mantermos atentos àquilo que ele nos diz hoje. E essa atenção não será apenas a concentração do cientista debruçado sobre a sua experiência, mas a manifestação do amor que nos habita."