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A diversidade na Igreja

"A casa do meu Pai tem muitas moradas", diz-nos Jesus no evangelho.

A unidade na diversidade não é sempre aparente na Igreja enquanto povo de Deus, mas é uma realidade em Deus e uma presença na fé cristã desde a sua origem. A Palavra de Deus não é partidária, elitista e exclusiva. O Reino de Deus é como uma árvore que estende os ramos para dar abrigo a todos os pássaros do céu. Cristo não morreu na cruz para salvar uma mão cheia de cristãos. Até o Deus Uno encerra em si o mistério de uma Trindade.

A Palavra de Deus é inequívoca e só pode levar à desinstalação, à abertura ao outro, e a recebê-lo e amá-lo enquanto irmão ou irmã. Ninguém fica de fora, nem mesmo - se tivessemos - os inimigos.

Muitos cristãos crêem nesta Igreja, nesta casa do Pai, corpo de Cristo, templo do Espírito Santo. Mas como esquecer que muitos se sentem "de fora" por se verem rejeitados, amputados e anulados, e afastam-se por ninguém lhes ter mostrado que há um lugar para cada um, com a totalidade do seu ser?

Um blogue para cristãos homossexuais que não desistiram de ser Igreja

Porquê este blogue?

Este blogue é a partilha de uma vida de fé e é uma porta aberta para quem nela quiser entrar. É um convite para que não desistas: há homossexuais cristãos que não querem recusar nem a sua fé nem a sua sexualidade. É uma confirmação, por experiência vivida, que há um lugar para ti na Igreja. Aceita o desafio de o encontrares!

Este blogue também é teu, e de quem conheças que possa viver na carne sentimentos contraditórios de questões ligadas à fé e à orientação sexual. És benvindo se, mesmo não sendo o teu caso, conheces alguém que viva esta situação ou és um cristão que deseja uma Igreja mais acolhedora onde caiba a reflexão sobre esta e outras realidades.

Partilha, pergunta, propõe: este blogue existe para dar voz a quem normalmente está invisível ou mudo na Igreja, para quem se sente só, diferente e excluído. Este blogue não pretende mudar as mentalidades e as tradições com grande aparato, mas já não seria pouco se pudesse revelar um pouco do insondável Amor de Deus ou se ajudasse alguém a reconciliar-se consigo em Deus.
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terça-feira, 20 de outubro de 2015

O elogio da Diferença

O espírito da diferença

A beleza da vida social depende principalmente do jogo e do entrelaçar das diferenças. A beleza da terra não se deve apenas à grande variedade de borboletas e flores. É muita a beleza que vem das diferenças, modos e formas de fazer economia, empresa, banca. Maior ainda é a beleza que nasce das diferenças entre pessoas, do encontro de talentos diversos, do diálogo entre motivações.

Muitas “obras de arte” civis que continuam a embelezar a nossa terra comum nasceram de motivações mais fortes que os incentivos económicos, de “porquês” mais profundos que os monetários. Se os fundadores tivessem obedecido à lei férrea dos "business plans", não teríamos hoje os tantos "Cottolengo" [designação de obras de assistência para pobres e deficientes profundos, extraída do nome do seu fundador, católico] que amaram os nossos filhos especiais, nem as milhares de cooperativas nascidas do desejo de vida e futuro dos nossos pais, mães e avós.

Estas obras que brotaram de ideais maiores resistiram ao tempo e às ideologias, atravessaram séculos e continuam a atravessá-los. Nascidas de motivações grandes souberam gerar grandes coisas, duradoiras e fecundas. A vida económica e civil, que é vida humana, tem necessidade extrema de todos os recursos de humanidade, incluindo as suas motivações mais profundas. Uma economia reduzida a pura economia perde-se e deixa de ser capaz de gerar vida; não gera sequer boa economia.

Uma das tendências mais radicais do "humanismo imunitário" do capitalismo contemporâneo é a necessidade de controlar, limitar, normalizar as motivações mais profundas dos seres humanos, sobretudo as motivações intrínsecas de onde nascem gratuidade e liberdade. Na verdade, quando ativamos as paixões, os ideais, o espírito, sucede que o nosso comportamento foge ao controle das organizações. As nossas ações tornam-se imprevisíveis, porque livres; por isso põem em crise os protocolos e a normalização dos procedimentos de trabalho. E principalmente põem em crise a gestão, cuja função e natureza é tornar controláveis e previsíveis os comportamentos na organização. Para poder gerir muitas pessoas diversas e orientá-las todas para os objetivos simples da empresa é preciso proceder a uma forte homologação e normalização dos comportamentos, que assim ficam incapazes de criatividade (que todos, nas palavras, afirmam desejar).

As motivações intrínsecas são as mais poderosas, e por isso as mais desestabilizadoras. Libertam-nos do cálculo de custo-benefício, o que nos dá capacidade de fazer coisas apenas pela felicidade intrínseca da ação. Sem motivações intrínsecas não teríamos investigação científica, poesia, grande parte das expressões artísticas, espiritualidade verdadeira; como não teríamos muitas empresas, comunidades e organizações que nascem das paixões e dos ideais dos fundadores e se mantêm vivas porque e enquanto houver alguém que continue a trabalhar não apenas por dinheiro. Em toda a verdadeira criatividade são essenciais as motivações intrínsecas.

Como tragicamente todos os dias podemos constatar, porém, as motivações intrínsecas estão também na raiz dos piores comportamentos dos seres humanos. Por isso, o espírito moderno – o económico, de modo especial – receando os efeitos potencialmente desestabilizadores das grandes motivações humanas, optou por limitar-se às motivações instrumentais ou extrínsecas. A gestão do jogo público de diferenças e identidades foi deixada à democracia e expulsa das empresas. Deste modo, a cultura das organizações procura transformar em incentivos todas as várias motivações humanas, reduzir os muitos “porquês” a um único, simplicíssimo, “porquê”. Assim se reduziram as feridas (a vulnerabilidade) dentro das empresas; mas reduziram-se também as bênçãos (o bem-estar).

O incentivo tornou-se o grande instrumento para controlar e gerir pessoas “reduzidas” e despotencializadas nas suas múltiplas motivações, para assim ficarem alinhadas com os objetivos das organizações (o "incentivus" era o instrumento de sopro que servia para afinar os instrumentos da orquestra, a trompa que incitava a tropa para a batalha, a flauta do encantador de serpentes). A economia e as ciências de gestão acabaram por contentar-se com as motivações menos poderosas dos seres humanos – mesmo quando procuram instrumentalizá-las, prometendo aos recém-admitidos um paraíso que não podem nem querem dar. Também isto está no preço da modernidade.

A operação de nivelamento motivacional é sempre perigosa, porque “o homem a uma só dimensão” não funciona bem em lado nenhum; sobretudo não é feliz. Onde, porém, a expulsão de motivações mais profundas, criativas e livres é fatal, é nas organizações nascidas e alimentadas por ideais, carismas ou paixões – designadas OMI (Organizações de Motivação Ideal). São organizações “diferentes” que têm necessidade fundamental de uma parcela, ainda que pequena, de trabalhadores, dirigentes, fundadores com motivações intrínsecas, isto é, dotados de um “código genético” diferente do que foi concebido e implementado pela teoria de gestão dominante. Essas pessoas operam nas empresas sociais e civis, nas comunidades religiosas, em muitas ONG, em movimentos espirituais e culturais, nos mundos do ambientalismo, do consumo crítico, dos direitos humanos; mas também acontece, e com bastante frequência, encontrá-las fundando empresas familiares e em muita da economia “normal” realizada por artesãos, pequenos empresários, cooperativas, finança ética e territorial.

Essas organizações e comunidades não existiriam sem a presença de tais pessoas “fermento”, criativas, geradoras e muitas vezes desestabilizadoras da ordem constituída; são “movidas por dentro”, têm em si um “carisma” que as impele a agir obedecendo ao seu "daimon". Estes trabalhadores com motivações intrínsecas apresentam duas notas motivacionais dominantes. Por um lado são pouco motivados pelos incentivos económicos da teoria de gestão, respondem pouco ou nada ao som exterior da flauta encantatória; do que gostam mesmo é de ouvir outras melodias internas. Paralelamente, são muitíssimo sensíveis às dimensões ideais da organização que fundaram ou em que trabalham por motivos não apenas económicos: motivos ideais com os quais se identificam, ou para os quais se sentem vocacionados.

A gestão de pessoas com motivações intrínsecas é crucial quando estas organizações atravessam momentos de crise e conflito que podem surgir, por exemplo, quando há uma nova geração ou liderança, por morte e sucessão do fundador. Esses momentos – que em todas as organizações são delicados – são decisivos para as OMI; o erro mais típico e muito frequente é não se entender as instâncias e protestos provenientes precisamente dos membros mais motivados. Se quem gere ou, como consultor, acompanha essas OMI não reconhecer o valor das motivações mais profundas – e não se trata de incentivos – não só não alcança o objetivo esperado, mas ainda agrava mais a crise destas pessoas e da organização.

Durante as crises de qualidade ideal, os primeiros a protestar são os mais interessados na qualidade que se está a perder. Mas se dirigentes e responsáveis interpretam esse tipo de protesto simplesmente como um custo e o rejeitam, os primeiros a sair são precisamente os melhores (como tentei mostrar em alguns estudos realizados juntamente com Alessandra Smerilli). Sendo estas pessoas pouco sensíveis a incentivos e muitíssimo sensíveis às dimensões ideais e de valor, estão dispostas a dar tudo, muito para além do contrato, enquanto “valer a pena”, enquanto são vivos e reconhecidos os valores em que investiram muito. Mesmo nas empresas, há pessoas que atribuem um valor tão alto aos valores simbólicos e éticos inspiradores do seu trabalho, que por eles estão dispostas a fazer (quase) tudo. Mas logo que se dão conta de que a organização se está a tornar (ou se tornou) outra coisa, toda a recompensa intrínseca que extraíam do seu trabalho ou atividade reduz-se drasticamente; a ponto de, em certos casos, se anular (ou mesmo passar a ser negativa). Também isto exprime a antiga intuição (que remonta a pelo menos S. Francisco) segundo a qual a verdadeira gratuidade não tem preço zero (não é gratuita); tem um preço infinito.

A gestão de crises nas OMI é uma verdadeira arte; requer sobretudo nos responsáveis a capacidade de distinguir os tipos de mal-estar e de protesto, o saber identificar e valorizar o protesto que provém daqueles que protegem e são portadores dos valores ideais da organização. A nova ideologia de gestão, pelo contrário, cada vez mais aplanada num único registo motivacional, não possui categorias para compreender os diversos tipos de protesto; por isso não consegue reconhecer, por detrás de uma ameaça de abandono, um possível grito de amor.

As pessoas com motivações intrínsecas possuem também, de modo geral, uma grande resiliência, uma grande fortaleza nas adversidades. Conseguem aguentar longo tempo numa condição de protesto, preferindo ficar, embora protestando (Albert Hirschman define como leal quem protesta e não sai). A pessoa com forte motivação intrínseca sai e abandona apenas quando perde a esperança de que a organização poderá recuperar os ideais perdidos; por vezes a própria saída é a última mensagem, extrema, para suscitar uma mudança de rumo nos dirigentes. Compreende-se, portanto, que uma OMI é sábia quando consegue manter as pessoas leais, dando direitos de cidadania ao seu protesto, valorizando-o e não o considerando um custo ou empecilho.

A biodiversidade dentro das organizações está a diminuir drasticamente; o nivelamento motivacional produz desconforto e mal-estar crescente, mesmo no coração do capitalismo. Mas quem ama e vive em comunidades e organizações com motivação ideal precisa de defender e salvaguardar as motivações intrínsecas, hoje ameaçadas de extinção. Talvez seja possível resistir anos e anos dentro de uma multinacional sem dar espaço a motivações ideais; mas as OMI depressa morrem se reduzirmos todas as paixões ao triste incentivo.

Nas pessoas, em todas as pessoas, as motivações são muitas, ambivalentes e entrelaçadas umas nas outras. A cultura e os instrumentos da gestão podem favorecer o seu aparecimento e a sustentabilidade das motivações mais profundas e ideais; podem também aumentar o cinismo da organização, na qual cada um se contenta com os incentivos e deixa de pretender demasiado da organização. E assim cedo acaba por nada esperar dela.

Seremos melhores, passada esta grande transição, se criarmos organizações mais bio-diversificadas, menos niveladas nas motivações e onde haja espaço para a pessoa inteira; organizações habitadas por trabalhadores um pouco mais difíceis de controlar e de gerir, mas mais criativos, mais felizes, mais humanos.

Luigino Bruni
In "Avvenire"
Trad.: José Alberto Bacelar Ferreira, P. António Bacelar
Publicado em SNPC

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Afirmações católicas sobre o casamento civil entre homossexuais

Nem tanto ao mar nem tanto à terra?

Uma amiga partilhou há uns tempos um ensaio sobre as opiniões que se tecem na Igreja católica sobre o casamento homossexual. O artigo é extenso e em inglês. No final desta mensagem segue o link para o artigo na integra. No corpo da mensagem cito apenas 2 parágrafos:

The goods of marriage are many and varied, but, except for the category of possible reproduction with one’s spouse, same-sex couples are able to participate in them equally with straight couples. Moreover, given what we know about sexual orientation, a ban on marriage for gay and lesbian people would seem, according to Church teaching, to abridge a fundamental human right, and so constitute an attack on their human dignity. Beyond that, many gay and lesbian couples calling for the right to marry are recalling to our culture the social and cultural importance of marriage. Rather than living quietly in a legally unrecognized state, gay and lesbian couples asking for marriage affirm the dignity of the institution. Finally, to reject the most intimate relationships of LGBT people as dangerous to the civil polity stokes savage homophobia, which the Church opposes.

As Christians, we are called by Jesus to one fundamental task in life—to love God and others as well as we can. For most of us, the call to love is answered principally, though not exclusively, in the context of our most intimate relationships, those uniting spouses and those of parents and children. As Catholic Christians, we embrace a moral tradition that addresses social policy in light of the common good, a reasoned assessment of the rights and duties incumbent upon us in order that we may participate in the flourishing of society. Marriage is a key institution, with an array of social goods that include, but are not limited to, procreation. We can all share in those wider, socially critical benefits of marriage, gay and straight, parents and the childless alike. Why would Christians deny to any of our brothers and sisters, at least in the realm of our civil life together, the opportunity for the blending and sharing of life toward, we hope, the “mutual perfection” that Pius XI said was the wider purpose of marriage? Love requires no less than our support of love.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A estética do sagrado

O estético, o ético e o sacro: breve "excursus" sobre a encíclica "Luz da fé"

O estético, o ético e o sacro representam a evidência simbólica da consciência crente na sua tematização estética e ética. De acordo com a hermenêutica gadameriana, a arte e religião, o belo e mito, estão na base da experiência hermenêutica originária (Verdade e Método). Esta manifestação do sentido originário presente nas coisas interpela o sujeito humano que vive na história segundo o dinamismo interior. Assim «a interioridade torna-se tema de reflexão e apropriação precisamente através da qualidade espiritual à qual a exterioridade sensível, mediante a ressonância do sentimento e o simbolismo da imaginação, dirige a consciência» (P. Sequeri). A qualidade estética da experiência crente está profundamente relacionada com a descoberta da interioridade no processo de hominização e humanização.

Os estados interiores, as imagens que povoam a nossa mente, resultantes de representações, pensamentos e ideias, provêm do sentimento das emoções que influenciam de algo modo o nível de confiança que o ser humano atribui a si mesmo e aos outros. A interioridade – que aqui podemos estabelecer paralelamente com a mente – ganha qualidade espiritual na medida em que é capaz de aliar a si a sensibilidade cristalizada no sentimento e na imaginação. A qualidade espiritual, o sentimento e a imaginação não são apenas componentes constitutivos da consciência mas a sua condição cognoscitivo-prática. A consciência cristalizada na emoção, no sentimento, no desejo, no afeto funda a dimensão estética que é o âmbito da sensibilidade da consciência.

A perceção do sentir, ou perceção da emoção, dá-se na consciência estética enquanto categoria que explicita o affectus fidei, o afecto da fé, ou a reapropriação teórica e prática dos diversos modos em que se percepciona o manifestar-se de Deus. A estética teológica assim entendida estabelece a «relação entre o teológico e o modo da percepção. Porque não basta olhar, há modos e modos de olhar; não basta tocar, há modos e modos de tocar» (P. Sequeri). Isto supõe que à experiência estética, à experiência da beleza evocativa da justiça originária que conduz ao cumprimento da promessa de sentido último, seja subjacente à inteligência e à vontade humana. É neste contexto que emerge a percepção do sacro que institui uma relação diferenciadora com a realidade. Esta percepção do sacro insere-se na justiça da afeição de Deus «porque sem nenhuma referência a uma origem divina não posso ser perfeitamente justo, porque sem este referimento, sem uma não apropriação do género, colocar-me-ei no lugar de juiz supremo, de mestre da justiça e isto é início de toda a espoliação» (F. Hadjadj).

A consciência estética supõe portanto a consciência crente e a consciência ética. Sem estas instâncias não é possível colher a experiência estética no seu núcleo metafísico e universal. O perigo subjacente é a degeneração do belo em sedução, do medo em pânico, da alegria em histerismo, e assim por diante. Portanto, a experiência de beleza que o sujeito faz está profundamente ligada ao sentido da justiça e da verdade, isto é ao saber originário da consciência, a uma metafísica dos afectos, que subtrai o humano ao útil, ao funcional e ao poder sedutor incontrolável da imediateza. É verdade quando Pierre Levy afirma que «se o mundo humano subsistiu até hoje é porque sempre houve justos suficientes. Porque as práticas de acolhimento, de ajuda, de abertura, de atenção, de reconhecimento, de construção, acabam por ser mais numerosas ou mais fortes do que as práticas de exclusão, de indiferença, de negligência, de ressentimento, de destruição».

Na verdade, a autêntica experiência estética situa-se ao nível da qualidade espiritual do humano e não no sentido primário do usufruto, do gozo sentimental. A beleza sem a bondade e a inteligência é um estéril sentimento, momento sedutor que afasta a verdade das coisas, colocando-a ao nível de um simples jogo de sedução. A consciência estética está profundamente ligada à experiência religiosa e não tanto ao gozo imediato de uma obra de arte. Se a beleza não invoca a justiça e a verdade originária inscrita no coração humano converte-se em banal encantamento, sedução sentimental, aparência de bem, auto-referencial. À estética teológica caberá fazer apelo à interioridade humana, mantendo em relação a dimensão corpórea (cognitiva) e a dimensão espiritual (afectiva) do sentir. Por exemplo, a música enquanto «ciência da anima» tem a missão de explicitar, invocar e discernir a qualidade sensível e espiritual da experiência humana e religiosa. A música surge como a evidência simbólica da consciência crente. A música como síntese do sensível leva o humano a sentir uma experiência originária vital, libertando o seu imaginário frequentemente preso às palavras e gestos, a ritos e representações.

Há portanto, aqui uma ressonância afectiva e cognitiva que liberta a interioridade humana e a predispõe para o acolhimento da Revelação. A «fé é, substancialmente, escuta emocionada da palavra de Deus» (Ricotta), ou melhor: «reconhecimento que se nutre de agradecimento» (Sequeri). A razão teológica apresenta uma evidência simbólica (ético, símbolo e rito) que faz apelo ao reconhecimento a partir da interioridade do sujeito mas ao mesmo tempo o dispõe para uma abertura re-memorativa à Tradição, a um existir que o precede e funda. Em parte, poder-se-ia ver neste reconhecer-se (sentir-se) reconhecido uma certa receptividade passiva do sujeito. Mas a evidência simbólica da razão teológica é mais do que uma ideia ou uma representação de um ideal. Ela assume, na verdade, uma figuração ontológico-hermenêutica do princípio verdade/justiça da ordem afectiva instaura pelo ágape livremente oferecido de Deus.

O «dar-se da Vida como autoafeição pática cruza-se com o próprio poder da incarnação» (Viola), visibilidade do invisível, o Logos crístico que revela, na sua configuração histórico-hermenêutica. A consciência estética (beleza) desenvolve uma evidência simbólica (rito, símbolo, ethos) capaz de ordenar os afectos, de manifestar a vida invisível, inconsciente, ao si humano consciente, restituindo-o a sua afectividade originária. Na verdade, uma «semelhante fenomenologia do espírito-vida, no corpo-mundo, poderá chegar a tocar a realidade da vida espiritual, porém, somente aonde o espírito seja compreendido, na sua acepção mais originária, como vida gerada no logos da afeição e libertada pela justiça do sentido» (Sequeri). Sem racionalidade, sem afecto e sem o justo sentido da existência a mente humana permanece à deriva de si e dos outros. Fica a interrogação apelativa: «aquilo que se comunica na Igreja, o que se transmite na sua Tradição viva é a luz nova que nasce do encontro com o Deus vivo, uma luz que toca a pessoa no seu íntimo, no coração, envolvendo a sua mente, vontade e afectividade, abrindo-a a relações vivas na comunhão com Deus e com os outros»? (Carta Encíclica Lumen Fidei, 40).

João Paulo Costa
in SNPC a 29.07.13

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

A aparição gay e lésbica no grande écran

Spartacus, 1960
Um artigo escrito no Brasil em 2005. Alguns dos títulos poderão não coincidir com as traduções de Portugal.

SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 5/6 – Novembro-Dezembro de 2005
LONG-SHOT: CINEMA E SEXUALIDADE(S), À LUZ DO MIX BRASIL 2005.

O BOOM GAY E LÉSBICO


William Aguiar

Uma onda do que se convencionou chamar "politicamente correto" invadiu a sétima arte e, sem preocupar-se com a moral e os bons costumes, revelou o amor que os mais conservadores não ousam dizer o nome.

Antes do boom gay e lésbico das últimas duas décadas no cinema, a homossexualidade estava presente em cenas e diálogos camuflados, ou em situações inteiras. Por exemplo, vamos encontrar cenas carregadas de homossexualidade em 1960, na superprodução Spartacus. A seqüência do banho que o escravo Antonius (Toni Curtis) dava em seu senhor (Sir Laurence Olivier), enquanto escutava uma não inocente declaração sobre gostar ou não de caramujos ou ostras, foi cortada na época. Somente depois de 23 anos, os interessados puderam se deliciar com a cena do banho (e outras tantas), principalmente quando o senhor olha para seu escravo e afirma "gostar das duas coisas". Dificilmente é encontrada nas locadoras a versão sem cortes. Vale a pena procurar, pois os olhares e manifestações de carinho entre os dois permanecem até as cenas finais.

Da sutileza, o cinema passa para o (não menos bom) escracho dos anos 80 e 90. A comédia Essa Estranha Atração (Torch Song Trilogy), apesar do título em português, não é preconceituosa e mostra a relação entre homens, vivenciada por Arnold (Harvey Fierstein), Alan (Mathew Broderick) e Ed (Brian Kerwin). A parte dramática da fita fica por conta da relação de Arnold com sua mãe (Anne Banckroft), a morte de um de seus companheiros e, principalmente, da imagem sempre solitária do protagonista.

Outra comédia interessante é O Banquete de Casamento. Um jovem chinês, radicado nos Estados Unidos (Nova Iorque) é pressionado pelos pais, que moram em Taiwan, a contrair matrimônio. Os pais não sabem que o jovem já é casado no "mercado paralelo". Com um homem. Este é apenas um pequeno detalhe, é claro. O filme fica interessante quando o chinês resolve casar-se com uma inquilina sua, que conhece a situação mas aceita a farsa porque precisa de um green-card. O que ninguém esperava era a vinda dos pais do noivo para o casamento e, desgraçadamente, que fosse feito de acordo com as tradições chinesas, em que é oferecido um banquete no qual os noivos ficam à mercê das brincadeiras dos amigos. O desenrolar é leve e até o que seria considerado um "Deus nos acuda" (a dúvida em dizer ou não aos pais a orientação sexual) tem um tratamento especial, que não deixa transparecer a tensão que uma situação como essa provocaria.

A maioria dos filmes que abordam ou fazem alguma referência a isso não são apenas do gênero comédia. Basta citar como exemplo uma produção recente chamada Traídos pelo Desejo (Vanity). Outro filme em que o título nada tem a ver com a história. Ninguém ali é traído pelo desejo e sim pelo preconceito. O mérito do filme, na verdade, fica por conta da brilhante Miranda Richardson, que interpreta uma terrorista do Exército Republicano Irlandês (IRA). O que seria uma relação apaixonada, entre um dos guerrilheiros e um cabeleireiro, serve como pano de fundo para uma trama ideologicamente reacionária. Deve ter agradado muito pouco aos guerrilheiros do IRA e, também, aos militantes de organizações de esquerda que conseguiram compreender o sentido da parábola do escorpião, que funciona como reflexão ética das atividades revolucionárias radicais, perfeitamente estendida a todas as outras que não indicam a mesma solução para os problemas das sociedades capitalistas. A homossexualidade retratada no filme foi alardeada pela Academia de Hollywood como sendo a grande questão da festa do Oscar. Vale a pena lembrar que na festa da premiação, o ator que interpreta o travesti esteve presente, mas só conseguiu entrar pela porta dos fundos e não pela principal, por onde todas as outras pessoas "normais" costumam entrar. Parece que em casa de ferreiro...

Os filmes citados estão longe de mostrar, em termos quantitativos, o volume de obras em que a homossexualidade é abordada. Os que retratam a homossexualidade feminina são muito difíceis de serem encontrados nas locadoras e muito mais difícil é encontrar aqueles que não relacionam a homossexualidade com algum desequilíbrio psíquico, como é o caso de O Silêncio dos Inocentes - um excelente duelo de titãs entre Antony Hopkins e Jodie Foster -, no qual um homossexual psicopata conduz a trama, ou Instinto Selvagem (com Sharon Stone e Michael Douglas), onde a lésbica mais dócil é uma serial killer. Com esse quadro, O Banquete de Casamento e Essa Estranha Atração despontam com uma positividade que começa a ser compreendida e absorvida por diretores e roteiristas. Lucram os "iguais" e, também os "diferentes".

WILLIAM AGUIAR é membro do Grupo de Gays e Lésbicas do PT. O texto acima foi originalmente publicado na revista Teoria&Debate nº 26 (set/out/nov 1994)

© 1994 – Editora Fundação Perseu Abramo
© 2005 – SOMBRAS ELÉTRICAS

in sombras elétricas

Podemos ver Deus na Arte?

Lourdes Castro

Uma fenda no mundo. Do espiritual na arte contemporânea (I)

1. Da Renúncia

Há cerca de cem anos, o pintor Wassily Kandinsky – percursor da arte abstrata – refletia sobre a arte do seu tempo e sobre as suas próprias experiências pictóricas, reflexões que dariam origem ao livro Do espiritual na arte, terminado em 1910 e publicado no ano seguinte. Esta obra teórica, uma das mais importantes da história da arte e porta para as novas expressões artísticas do século XX, começa assim: “Toda a obra de arte é filha do seu tempo e, muitas vezes, a mãe dos nossos sentimentos.” (1).

Logo nesta primeira afirmação encontramos, pelo menos, dois temas para reflexão. Por um lado, fica claro que cada época tem de encontrar a sua forma de expressão, porque a imitação de fórmulas ou modelos anteriores torna-se vazia, “sem alma”. A obra é filha do seu tempo porque a Vida exige uma plasticidade própria em cada época histórica – porque é a Vida que se manifesta na obra de arte. Por outro lado, a obra de arte não pode ser apenas um resultado, um mero espelho do “espírito do tempo”, porque ela é a raiz, a origem, “a mãe dos nossos sentimentos” e do ambiente dessa mesma época. Neste sentido, Oscar Wilde tinha razão: não é a arte que imita a vida, é a vida que imita a arte (2). A obra antecipa, ou melhor, cria o seu próprio contexto, o seu e o nosso mundo.

Se cada época é única, exigindo uma plasticidade própria, há no entanto épocas históricas com similitudes. E Kandinsky percebeu o parentesco espiritual dos artistas desse início de século com os dos povos primitivos: “Tal como nós, esses artistas puros tentaram refletir nas suas obras somente o essencial; a renúncia às contingências externas surgiu por si mesma, eles uniram-se às suas obras apenas por uma essência interior” (3). A arte do inicio do século XX, sentia-o, descobriu uma empatia com a simples e enigmática arte primitiva, e na noção deRenúncia o conceito-chave para a compreensão doespiritual. A simplicidade do traço justo, do gesto certo e necessário, sem excessos ou ornamentos supérfluo, permitiria a relação interior da obra com o seu autor – relação espiritual. Mas esta noção exige ser definida. Ela é problemática, polissémica e escorregadia (4). De tão utilizada irrefletidamente, esvazia-se ou serve para qualquer esoterismo. Para Kandinsky, profundamente influenciado pelo pensamento teosófico de Helena Blavatsky e antroposófico de Rudolf Steiner, a obra de arte manifesta uma dimensão espiritual na medida em que, necessitando absolutamente da sensibilidade-corpo, não existe apenas na sua materialidade mas para um conhecimento suprassensível da realidade. Espiritual, porque a obra de arte não representa tanto o mundo exterior quanto o interior da Vida: o objetivo do artista é reconduzir a realidade invisível, espiritual, o que é comum ao mundo e ao homem, a alma do universo, à experimentação sensível através da obra de arte. Nela deverá apreender-se como as determinações subjetivas individuais e as do universo/cosmos identificam-se (5).

E Kandinsky propôs a música como o modelo para a pintura, porque ao afastar-se da perceção quotidiana, aosuspendê-la, é capaz de reproduzir as determinações escondidas do Ser, aproximando-nos assim das coisas mesmas. Um método que Michel Henry comparou àredução fenomenológica husserliana (6). Será precisamente esta palavra, redução, que, desde o final do século XX, o escultor Rui Chafes vai aplicar como programa: “A redução é uma transcendência. Essa ideia de transcendência associada à redução – que é uma ideia que vem dos ícones, da arte bizantina e também da arte medieval – é uma ideia fundamental para o meu trabalho.” (7)

Há na obra de Rui Chafes (1968), e na sua profunda reflexão teórica, um cuidado ascético: de quem percebe que a obra pode ser o lugar do silêncio no meio do barulho mediático; uma introdução de aspereza e resistência num mundo em que tudo desliza à superfície e parece transparente; uma poetização do mundo que se opõe à sua aniquilação pelo consumo e massificação; uma estratégia de lentidão e peso contra a aceleração. Mas aqui o peso da vida não se apresenta como esculturas evidentemente pesadas. Ainda que o sejam, pois trabalha o ferro, elas parecem leves, tantas vezes a flutuar, a elevarem-se, suspensas nas árvores de um parque ou no teto da galeria. E faz-nos repetidamente elevar o olhar, um movimento gótico – referência importante deste escultor, que tantas vezes demonstra a sua admiração pela obra de Tilman Riemenschneider - opondo-se nessa elevação à horizontalidade da escultura minimalista, mas mantendo desta o seu rigor.

É então a leveza (8) do pássaro e não a da pena de que aqui se trata. Uma desmaterialização paradoxal, realizada através da matéria pesada que trabalha: o ferro. Nele apaga as marcas do trabalho manual, pintando-o de negro ou cinza. O escultor olha as suas peças não como objetos, mas talismãs: “tumultos de forças, de dúvidas e de medo”. O carácter objectual da obra-de-arte é residual, uma necessidade no seu trabalho de escultor, mas a “coisa” é-o apenas para abrir mundos. O serem objetos estranhos ao mundo torna-os potências estrangeiras ao hábito, abrindo brechas no horizonte de oportunidades humano – e esta estranheza torna-se maior quando a sua inserção no meio natural transforma o ambiente dos jardins, florestas, parques.

Estes catalisadores de forças permitem um encontro com o que, segundo Rui Chafes, nos mantém acordados: a consciência da morte. O artista desempenha assim um papel ético, abre fendas no mundo e interroga-o nessa abertura, permitindo que outros se aproximem da sua própria autenticidade. Cria emoções ou permite que se aceda a elas. E entre elas a melancolia de um lugar perdido, que a beleza sempre aponta: “acredito que a transcendência não tem outro significado a não ser o de mostrar ou pressentir algo que não está aqui. E penso que a redução, enquanto processo de trabalho ou pensamento, pode efetivamente conduzir ao abrir uma porta nesta fronteira, seja em que plano for, religioso ou artístico, existem muitos caminhos.” (9). A redução compreende-se então como um processo ascético libertador: “A verdadeira liberdade não é, ao contrário do que muita gente pensa, poder ter. A verdadeira liberdade é justamente poder não ter, poder abdicar, poder renunciar, poder prescindir. Essa é que é a verdadeira liberdade, esse é que é o luxo, só alguns o podem ter. Quantos de nós poderemos ter essa liberdade? Quantos de nós nos podemos permitir dar simplesmente um passo ao lado?” (10). E esta é uma exigência que a obra coloca também ao contemplador: precisa de se despojar, renunciar a si, para poder “ver”, ou mais corretamente: “ver-se”. Compreende-se aqui o que Paul Ricoeur escreveu: “Leitor, só me encontro quando me perco” (11). É também uma exigência kandinskiana.

A redução, a renúncia, o despojamento pode ser encontrado ao longo de todo o século, com motivos, processos ou objetivos muito distintos: desde o radicalismo de Malevich, que pintou em 1915 o seu icónico (e apresentado como tal) Quadrado negro sobre branco; nosready-made de Duchamp (onde nem a escolha dos objetos é marcada pelo gosto); na obra de Rauschenberg, sintetizada no gesto de apagar um desenho de um colega e amigo, De Kooning; nos negros sobre negros de Ad Reinhard; nos zips de Newman ou nos ecrãs de Rothko; na galeria vazia de Yves Klein ou no seu azul registado; nos embrulhos que ocultam objetos ou edifícios de Christo; nas lâmpadas de Flavin ou no minimalismo de Judd a André. E, no extremo (aparentemente...) oposto, no excesso e amontoamento (aqui o excesso transporta também uma renúncia, aniquila e reduz): na acumulação de objetos ou lixo em Arman; na sua compressão ou nas expansões nas obras de César; no limite dadaísta da arte que se auto-aniquila – como na critica mordaz ao mercado burguês e à interioridade kandinskiana em Piero Manzoni (...). São inumeráveis os exemplos.

Nesse final dos anos 50 e início de 60, na obra de Lourdes Castro (1930), então a trabalhar em Paris, encontramos estes dois momentos: excesso e renúncia. Numa primeira fase, a acumulação e a sobreposição de objetos encontrados na rua, em casa, no lixo: resgatando-os numa colagem que lhes retorna a dignidade e unificando-os, ao cobri-los com uma mesma cor (alumínio/cinza-prata). A relação entre a arte e a vida quotidiana é aqui evidente. Depois deste excesso (e ainda desenvolvendo uma pesquisa sobre a acumulação), Lourdes encontra nas experiências serigráficas, a sombra: o mínimo de cada coisa. Uma redução, a procura do essencial, que a faz tirar as sombras da sombra. De tão próximas, diante dos nossos olhos, companhia constante, já não as vemos. E depois da sobreposição, trabalha no sentido da simplificação e individuação: dos amigos, dos gestos diários e comuns, o pentear do cabelo, o cigarro que se leva à boca, a leitura de um livro, o abraço, a refeição, os objetos diários – é ainda a relação arte-vida que aqui está em causa. E de tão comuns estas sombras tornam-se únicas, e de tão íntimas tornam-se universais. Estas sombras pintadas, no início, a acrílico sobre tela, são mais do que retratos-figurações, mesmo que acompanhadas do nome do retratado. Mais do que “alguém” identificável, elas são sinal da vida humana nua. Mais do que pormenores acessórios, fixam o necessário e exato. Uma imagem plana. Simplificada até ficar apenas o seu contorno. O mínimo da sombra.

Nesta pesquisa artística, Lourdes encontra posteriormente o material que lhe permite a desmaterialização desejada: oplexiglas. Com este material, só possível nesses anos 60, a sombra pode tornar-se transparente, luminosa, colorida. O plexiglas, pintado, serigrafado ou recortado, permite a distância da parede, projetar sombras das sombras, sobrepor cores em camadas. Mas a beleza e leveza imaterial destas sombras está marcada pela constatação ou consciência da sua passagem e fragilidade. Os amigos que lhe cederam a sombra morrerão. Os gestos, os objetos, os corpos já não são os mesmos. A parede onde as desenhou foi repintada. E aquelas sombras tornam-se lugar da sombra maior. Mas, “mais que a morte, teme-se a beleza” escreveu o poeta William Carlos William, porque a beleza dá um “beijo mortal” (12), transporta a morte, a finitude, porque mostra a fragilidade do fragmento diante do Todo. Ameaça a existência e lembra aos homens a caducidade do mundo. E a experiência da transitoriedade ficou definida nos Teatros de sombra que Lourdes apresentou na segunda metade dos anos 70.

Momentos resgatados ao fluxo de consumo da vida. Gestos diários projetados sobre um lençol, demorados, atentos. Fugacidade aparente que esconde uma permanência a encontrar. Também percebemos este impulso no Herbário de sombras, um catálogo meticuloso, científico quase, daquilo que vai deixar de ser, que passa. Como no constante regresso desenhado à sombra projetada das flores sempre novas nas jarras – desenho que começa no cuidado com que trata, apanha e arranja as flores e escolhe a jarra. Sempre em volta de um centro. Não tanto as sombras, quanto a artista. Estas obras são assim prolongamento ascético de uma vida ascética, centrada. Fruto de uma perceção atenta, de uma disponibilidade genuína (descentrada) – e sabemos como a arte do arranjo floral (Ikebana) é um caminho de sabedoria e espiritualidade, tão nobre como o tiro com arco ou a cerimónia do chá.

Segundo Plínio, a arte da pintura surgiu na Grécia, com o desenho do contorno da sombra projetada sobre o muro daquele que vai viajar, delineado por aquele que fica. A sombra é sinal, vestígio, presença de uma ausência que não se quer, ou não se pode, esquecer. Mas na obra singular de Lourdes Castro a morte não tem a última palavra, e a cor, a fluorescência, a transparência dão-nos a face da alegria. A brevidade da vida e o seu carácter transitório não encontram aqui a angústia, mas a compreensão. A sombra é sempre a tinta da luz, remete para ela e não para a obscuridade. Em Lourdes Castro, asintonia com a vida – palavra tão próxima de Kandinsky - procura de todas as horas, revela-se numa demanda do essencial presente, aqui e agora: a flor, o fruto, a pedra, o gesto, o outro, a carta, a sombra da vida que se faz ou recebe. A procura da justiça e rigor, outros nomes para a verdade. Como o seu companheiro, Manuel Zimbro, escreveu: “Quando se escolhe atentamente não há escolha, há atenção” (13). Atenção que salva e sustenta o mundo. Na obra desta artista percebemos a exatidão das palavras de Michel Henry, comentando Kandinsky: a obra de arte é “a ressurreição da vida em nós”. (14)

Os artistas primitivos eram “puros” como lhes chama Kandinsky, porque estavam em “sintonia” com os seus sentimentos e emoções mais profundas e verdadeiras. Essa é pureza da verdade. Fora de um mundo burguês, de mercado, criavam de acordo com uma necessidade interior. A sua pureza vem de refletirem apenas o essencial renunciando ao contingente. Este desejo de mínimo necessário, de redução ao essencial, de uma pobreza, por um lado, e por outro, o desejo de regresso às origens, aos sentimentos mais fundos, às emoções universais, em suma, ao espírito, estas duas características da arte primitiva – indissociável da experiência do sagrado e dos ritos religiosos – podemos encontrar ao longo do século XX. Aliás esta dimensão ritual e festiva da experiência religiosa vai ser um filão explorado neste século, desenvolvendo happenings e performances, exigindo a participação direta do espetador, tornando-o em autor da obra. Ou na identificação do artista com o sacerdote ou xamã. Também a dimensão sacrificial vai ser recuperada, e nela a importância do corpo e do sangue. Ou a religião ironizada, atacada, o desejo herético de a ultrapassar – e não é o cristianismo a “religião da saída do religião”? A estes temas voltaremos em próximo ensaio, procurando a compreensão das referências e, mais profundamente, o enraizamento na conceção cristã do homem e do mundo da pluralidades dos discursos artísticos nossos contemporâneos.

(1) Comunicação na Semana de Estudos de Teologia, UCP, 2007
(2) Wassily Kandinsky, Do espiritual na arte, Lisboa, D.Quixote, 1987, p.21
(3) Cfr Oscar Wilde, Intenções. Quatro ensaios sobre estética, Lisboa, Cotovia, 1992, p.43ss
(4) Ibidem, p.22
(5) Qualquer obra de arte, por ser fruto da actividade humana, não é já uma manifestação espiritual? Ou poderemos associar esta noção à experiência religiosa, ao sentimento da sacralidade do mundo, a uma hierofania? É o espiritual a dimensão da experiência da transcendência ou a capacidade humana de se transcender? Qualquer obra de arte, por ser fruto da actividade humana, não é já uma manifestação espiritual? Ou poderemos associar esta noção à experiência religiosa, ao sentimento da sacralidade do mundo, a uma hierofania? É o espiritual a dimensão da experiência da transcendência ou a capacidade humana de se transcender?
(6) Michel Henry, “Kandinsky et la signification de l´oeuvre d´art.”, inPhenomenologie de la vie III, Paris, PUF, 2004, p.211
(7) Michel Henry, “Kandinsky: le mystère des dernières oeuvres” in Op.cit, p.222
(8) Rui Chafes, O silêncio de..., Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p.93
(9) Sobre a Leveza cfr Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milénio, Lisboa, Teorema, 1998, pp.17-44
(10) Rui Chafes, O Silêncio de..., p.157
(11) Ibidem, p.94
(12) Paul Ricoeur, Do Texto à Acção, Porto, Rés, s.d., p.124 (13) Bruno Forte, A porta da beleza. Por uma estética teológica. Aparecida S.P.; Ideias e Letras, 2006, p.164
(13) Manuel Zimbro, “Base de Mundo” in Lourdes Castro, Sombras à volta de um centro, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p.52
(14) Michel Henry, Phenomenologie de la vie, p.301

Paulo Pires do Vale
Comunicação na Semana de Estudos de Teologia, UCP, Lisboa, 2007
23.09.13

A Arte aponta o sagrado

Incredulidade de São Tomé (Caravaggio)

Uma fenda no mundo. Do espiritual na arte contemporânea (II)

2. O sagrado e a obscuridade

O esgotamento das linguagens representacionais tradicionais – e já Hegel, nas suas aulas de Estética, se lamentava porque as obras de arte do seu tempo não levavam ninguém a ajoelhar-se e adorar... - essa crise gramatical das imagens coloca a muitos artistas a questão: como desocultar o sagrado no profano? (1)

Sente-se ao longo do século XX uma desconfiança da linguagem religiosa judaico-cristã tradicional. Um cansaço por essa linguagem do hábito já não surpreender. O encanto dos artistas vanguardista do início do século pela arte primitiva reside nesses objetos guardarem uma outra linguagem. Diria mesmo, por serem expressão de uma linguagem pré-verbal, anterior à formulação institucional fechada e repetitiva do sagrado. A arte moderna afastou-se da narrativa e da ilustração e desejou o mundo anterior à fórmula do cristianismo instituído como norma, que parece não ter guardado um reservatório de mistério. Muitos artistas nos últimos cem anos abrem e percorrem uma via negativa.

As religiões, as instituições, pretendem ter respostas e clarificar o segredo. São detentoras de uma verdade que administram. Nomeiam Deus, dão-lhe atributos. Este pensamento institucional do sagrado, como que o faz desaparecer porque o revela. A arte, pelo contrário, não o desvela absolutamente, aponta-o, aproxima-se... Ou abre uma região de negritude, de desconhecimento, onde se perdem as referências: a obscuridade e a desorientação podem ser os seus atributos. Em vez de “desvelar o ser”, como propõe Heidegger, a obra de arte vela-o, introduz-nos numa escuridão essencial para que alguma coisa possa advir.

Neste sentido, escreveu Emmanuel Levinas comentando o pensamento de Maurice Blanchot: “A obra descobre, com um descobrimento que não é verdade, uma obscuridade. (...) obscuridade absolutamente exterior sobre a qual nenhuma possessão é possível.” (2). Esta enorme escuridão que a obra de arte nos abre, coloca o homem no exílio, em lugar inóspito, inabitável, inseguro. A obscuridade da arte é a daqueles que não têm onde inclinar a cabeça e descansar. Um fundamento abissal e originante, antes de tudo, para o qual as palavras faltam. “Luminosidade que desfaz o mundo”, luz negra que o remete à sua origem murmurante. Assim a obra desenraíza o homem do seu mundo, abana a sua morada, retira-o ao hábito e às certezas, e retorna-lhe a sua condição de nómada, peregrino. Também o reino da obra de arte não é deste mundo. Vem trazer a espada e não a paz. Destrói o mundo e recria-o. Rasga uma fenda e abre uma porta para a noite. “A arte, longe de iluminar o mundo, deixa experimentar a obscuridade da qual emerge todo o mundo” (3). E, como indica o belíssimo título de um livro de José Tolentino Mendonça, “a noite abre meus olhos”.

Como temos vindo a reler, há cem anos escreveu Kandinsky em Do espiritual na arte: “A nossa alma possui uma fenda que, quando se consegue tocar, lembra um valioso vaso descoberto nas profundidades da terra.” (4). Uma fenda, mas esta abertura é necessário tocá-la, encontrá-la antes de mais e tocá-la. A obra deve dirigir a mão até esta fenda e fazer-nos experimentar o que se abre nela. Penso numa célebre tela de Caravaggio quando digo isto, em que Cristo guia na escuridão a mão de Tomé até ao seu lado aberto. Mas também numa obra de Anish Kapoor: em The healing of St. Thomas, o artista retoma essa passagem bíblica. Com ela deseja promover a experiência pessoal do espetador, que estique a mão e toque. Apresenta um corte feito na parede da galeria, encarnado vivo, vaginal, onde a referência do título nos induz numa leitura do lado aberto de Cristo. Uma ferida que salva, que cura. Sobre esta obra disse Kapoor: “Tomé estica o braço, aproxima-se para tocar o que é aparentemente uma ilusão, para então encontrar a realidade. O olho e a mão necessitam um do outro. Uma vez tocada a ferida, uma espécie de curativo tem lugar em Tomé. Ele é curado da sua dúvida. Este trabalho é um simples corte na parede, uma ferida na parede. A ferida tem uma forma que é vaginal, mais a ver com a totalidade/a completude (wholeness) do que com a morte. Refere-se ao espaço por detrás da parede, e é claro, vê a arquitetura como uma metáfora do si. Eu poderia ter feito este trabalho num bloco de pedra mas parecia-me muito concreto, demasiado figurativo, não suficientemente real. Demasiado haver com narrativa e não o suficiente com potencialidade psicológica.” (5).

A obra do artista indiano Anish Kapoor (1953), que estudou e trabalha em Inglaterra, pode ser sumariamente caracterizada por esta noção de fenda: aberturas e pontos atractores, vórtices, buracos negros/luminosos que tudo chamam para si. Nos desenhos, esculturas e instalações dos anos 80, encontramos referências explícitas a feridas, orifícios, órgãos sexuais, passagens. Eram figurativos, ainda que a interpretação não fosse clara e estivesse nos olhos do observador. Aos poucos vai-se afastando da figuração, deixando apenas vestígios e aproximando-nos de nada, do Nada, nas suas diferentes declinações: void,hollowness, emptiness.

O artista quer que as suas obras permitam o que chama deProto-experiências (6). Experiências originais-originantes. Um regresso à origem da vida. O conhecimento da psicologia de Jung e dos seus arquétipos inconscientes, marca o trabalho de Kapoor na procura de uma linguagem pré-verbal, nem mesmo simbólica, ainda mais primitiva: a experiência da “Grande Mãe”. O ventre, recetáculo e produtor da vida. A relação intima da obra com o espetador, envolvendo-o, atraindo-o. Obras a um tempo marcadas pelo terror e a atração – e facilmente encontramos aqui um reflexo do pensamento de Rudolf Otto sobre o Numinoso. Em alguns casos a relação com estes buracos vazios e negros é a do medo da “perda de si próprio”, o perigo de ser consumido pelo objeto. Como se a escultura nos desmaterializasse. Mais do que medo é “a vertigem, a experiência da queda, de ser puxado para dentro” (7). Para um espaço vazio, um proto-universo, entre reconhecimento e caos. As suas esculturas não são apenas para olhar, mas para se sentir, entrar nelas, experimentar: todo o corpo é posto em jogo, não se relacionam apenas com a visão-conhecimento teórico. Somos tomados por elas. Kapoor faz trabalhos para a experiência física porque há uma inteligência no corpo, nos sentidos, um sentido interior que se revela diante destas obras que nos retiram da normalizada experiência de ter corpo. Somos um corpo e essa é uma experiência espiritual tremenda. Como se diante destas imagens uma memória corporal inconsciente pudesse presentificar-se. As suas instalações e esculturas interrogam a forma como habitamos o espaço. E para tal acontecer, Kapoor, tal como Rui Chafes, apaga o seu gesto, não quer marcas de fabrico pessoal, como se a obra existisse por si, como se fosse possível um objeto artístico “auto-gerado, feito-por-si-mesmo, de alguma maneira revelado.” (8).

Assim, a arte pode refletir o mistério. Apresenta-nos a alteridade enquanto tal. Uma alteridade essencial. Um Outro absoluto. A sedução do infigurável por oposição ao corpo tangível do Deus cristão (mas, como afirmámos, também este tem na atualidade artística as suas consequências e frutos, que estudaremos em ensaio próximo). Outros, ainda, pensam as disciplinas artísticas como “um pensamento irreligioso do sagrado” (9). Um regresso às origens mais puras da relação com os mitos e a nostalgia das origens, a comunhão com a matéria, a simplicidade das formas originais, o cosmos e as suas forças sagradas, o fascínio pelo informe e o caos.

(1) Mais um tema que merece ser posteriormente retomado: problematizar esta noção de sagrado na arte contemporânea, a sua incompreensão, má utilização, pretexto de tudo e nada. A este propósito, já depois desta comunicação, aconteceu um interessante debate em redor da exposição L´art du sacré, comissariada porAngela Lampe e Jean de Loisy, no Centro Pompidou, em Paris. Cfr Catálogo da exposição e polémica em Artpress2, nº.9, Le sacré, voilà l´ennemi!, Mai-Jul 2008.
(2) Emmanuel Levinas, Sur Maurice Blanchot, Paris, Fata Morgana, 2004, p.22
(3) Ángel Garrido-Maturano, La estética al servicio de la socialidad: sobre la relación entre la Estética de Levinas e Kant in Revista Portuguesa de Filosofia, Vol.62, Fasc.2-4, Abr-Dez 2006, p.657.
(4) Kandinsky, Do espiritual..., p.22
(5) Entrevista a Anish Kapoor in Anish Kapoor, Tel-Aviv, Tel-Aviv Museum of Art, 1993, p.62.
(6) Ibidem, p.60
(7) Ibidem, p.59
(8) Ibidem, p.61
(9) Marc Le Bot, L´art et le sacré in Colóquio – Artes, n.º 100, Março 1994, p.38.

Paulo Pires do Vale
Comunicação na Semana de Estudos de Teologia, UCP, Lisboa, 2007
31.03.09

domingo, 20 de outubro de 2013

Deus nos poetas: António Ramos Rosa

«Um deus que fertiliza a polpa azul da sombra»: metáforas para a inclusão de Deus em António Ramos Rosa

Que alegria não saber que deus é este
e estar com ele sem ele
na sua suprema companhia como o ar!
(António Ramos Rosa)

Uma coisa que eu faço, desde há vários anos, é buscar Deus mais na poesia do que na teologia. E reparo que, na nossa poesia contemporânea sobre Deus, anda muito a palavra silêncio. Será isso negativo? Não é o silêncio a última inspiração/aspiração/respiração antes da Palavra? Ou não é o nosso silêncio que nos faz ouvir a Palavra do totalmente-Outro? E não é no silêncio que repercute em nós o eco da última palavra que nos foi dita ou do último acorde que ouvimos? E não foi em plena noite, com o silêncio envolvendo a Terra, que Deus se revelou num homem (Sb 18,14)? E não foi esse Homem-Deus que nos exortou a falar com o Pai na intimidade ou em segredo (Mt 6,6)?

Ao ouvir falar de Deus como o grande excluído da sociedade, pergunto-me se o é da maneira e pelas razões que nós julgamos. Não será a nossa incapacidade para captar os seus muitos sinais que nos leva a dizer que Ele foi excluído da nossa cidade e as pessoas vivem “como se Deus não existisse”? Não serão as coordenadas da nossa visão, os parâmetros da nossa leitura e análise demasiado estreitos ou demasiado largos para o captar? Não o teremos definido, quadriculado, limitado, reduzido demais a uma ortodoxia ou a um olhar ocidental e europeu pretensamente universalizado?

Deus galgou as margens e fronteiras onde o julgávamos circunscrito, e anda por aí a tentar regar outros cantos da nossa aridez, a inquietar algumas das nossas seguranças e certezas mal adquiridas, à espera de cruzar-se connosco no caminho das novas decepções ou deserções... Seremos, ainda, capazes de aceitar que Ele possa chamar-se novidade e surpresa, dois mil anos depois de Cristo no-lo ter revelado?

Vejamos, a propósito, dois poemas de António Ramos Rosa, em Facilidade do ar (Caminho: Lisboa 1990, pp. 25 e 22).

o deus azul
Há um deus que fertiliza a polpa azul da sombra
e extenso no silêncio está como o olvido no olvido.
Recolhe-se num movimento para o centro
onde permanece côncavo e completo.
Na sua enamorada eternidade
o corpo é asa, pedra e nuvem.
O mundo por vezes é um instante de amêndoa
em que ele transparece em carícias de regaço.
Movimento de plácida e redonda consciência,
não a imagem mas a visão nua do âmbito pleno,
em que estamos com ele em sequência natural.
A sua vida é o sono da luz e da sombra em aberta órbita
sempre no seu próprio círculo em sucessivas ondas
de sossegada incandescência.
Ele está no mundo, o mundo está nele
sempre como no princípio num fulgor cumprido
na radiosa concavidade azul.

 (Caminho: Lisboa 1990, p. 25.)

Neste poema, Ramos Rosa não parece ter dúvidas quanto à presença de Deus no mundo: Ele está no mundo, o mundo está nele. E ainda: O mundo por vezes é um instante de amêndoa / em que ele transparece em carícias de regaço. O poeta fala-nos de uma ausente omnipresença, de uma certa osmose entre Deus e o mundo: este deus (assim, com minúscula) tem a cor do “planeta azul”. É quase uma visão beatífica: não a imagem mas a visão nua do âmbito pleno / em que estamos com ele em sequência natural. Pois A sua vida é o sono da luz em aberta órbita.

Literariamente, escrever deus sem a inicial maiúscula pode ajudar-nos a senti-lo mais próximo de nós, sem que tal implique uma subestima do autor. Por outro lado, várias palavras deste poema, sem definirem Deus, falam-nos metaforicamente de propriedades e valores que a revelação e a teologia nos habituaram a atribuir-lhe. Com esta vantagem: são palavras dinâmicas, de sentido aberto para novas buscas e significados, como: extenso no silêncio, movimento, centro, côncavo, eternidade, regaço, consciência, círculo, princípio, concavidade azul, aberta órbita, sossegada incandescência...

a igualdade do deus ausente
Entre ti e mim a igualdade,
mesmo obscuro, mesmo ausente,
entre ti e mim o espaço
do teu corpo imenso, irmão,
azul e áureo,
num infinito odor ardente, saboroso,
transviando-se, morrendo e renascendo,
mas sempre igual, igual em sua presença de olvido,
resolvido desde sempre e para sempre
e sempre inicial.

Que alegria não saber que deus é este
e estar com ele sem ele
na sua suprema companhia como o ar!
Que alegria ser a onda, a sua onda,
profunda, calada, verdadeira!
Que alegria ser a permanência leve
deste unânime deus ausente!


Deus, igual a si próprio: fonte da nossa igualdade? Deus, nosso irmão: nosso igual, ou raiz da nossa fraternidade? Deus ausente: alheio e alheado, ou solidário, sempre inicialem qualquer das nossas procuras e dos nossos caminhos, mas respeitando a liberdade que nos deu? O não saber que deus é este não nos impede de estar com ele sem ele / na sua suprema companhia como o ar:

A quem foi criado por Deus e tende para Ele, não bastará aalegria ser a onda, a sua onda, mesmo sem se fundir e perder n’Ele como num qualquer nirvana, nem Ele se confundir connosco e muito menos se esgotar em nós como únicos, exclusivos e absolutos destinatários do amor difusivo e criador?

Sem querer tirar conclusões, aos que apenas falam deste unânime deus ausente diria, com Manuel Alegre: talvez Deus e sua ausência (in Senhora das Tempestades,Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1998, p. 49).

Fr. Lopes Morgado, OFM Cap
Excerto de “Dizer Deus: metáforas para a inclusão social à luz de S. Francisco”, em Estudios Franciscanos, Barcelona, vol. 107, nº 441 (setembro-dezembro 2006), pp. 497-528 [520-521.522-524].
27.09.13

O artista usa a ferida

Do texto do catálogo da exposição de Rui Chafes: Inferno (A minha fraqueza é muito forte), assinado por Paulo Pires do Vale:

«O que fere aquele que desenha?

O livro do Eclesiastes, na sua sabedoria prática, afirma: “Quem cava um buraco, nele cairá. Quem escava um muro, uma cobra o morderá. O que transporta pedras, aleija-se nelas. O que racha lenha, fere-se nas lascas” (Ecl 10, 9). Aquele que desenha também não pode deixar de se ferir com o que trabalha: a sua própria ferida. O que assalta aquele que desenha, o objeto que se transforma em arma virada contra si, é o si-mesmo. Não o eu (ego), mas um si (ipse) por vir. E isso há de feri-lo até que venha.

O artista aleija-se nessa violência que é a origem da obra - e que lhe é íntima, transporta-a em si. Em vez de esconder essa violência, usa-a. Mesmo que não a exponha. Ele sabe dar um bom uso à morte (1). E nisso há uma dimensão profética. Aquilo que outros não querem ver, ele não pode recusar. Afinal, aquilo onde cada um de nós se pode ferir é sempre na própria ferida. Flor que nunca fecha. No seu modo próprio e radical de abertura ao mundo. Esta ferida, como a metáfora indica, não é fechamento solipsista, mas abertura que conduz ao exterior, para fora de si - “talvez para fora de tudo”, julgava Blanchot (2). Essa forma de êxtase é modo de tocar o caos, a obscuridade, a violência, a noite.

O artista tem de perder a luta contra o anjo, tem de sentir o nada (3), para que, então, a sua fraqueza seja muito forte. Para que possa vencer. O artista tem de assumir e alimentar a sua vulnerabilidade, ser capaz de se ferir, de se abrir: como dar atenção de outro modo? É dessa fraqueza que receberá a força. A fragilidade é a sua verdade – e por isso é a única força que o pode libertar. Simone Weil dizia que “quando um aprendiz se fere ou se queixa de cansaço, os operários, os camponeses, têm estas belas palavras: “É o ofício que entra no corpo”. De cada vez que suportamos uma dor, podemos dizer-nos, com verdade, que é o universo, a ordem do mundo, a beleza do mundo, a obediência da criação a Deus que nos entram no corpo” (4). A fragilidade é o nosso modo de abertura à verdade do mundo. As feridas são um dom. É delas que surge a obra, porque é delas que se alimenta o artista. Desse perigo, que é também oportunidade de se elevar do mais baixo para o mais alto.

O que faz o artista senão procurar no débil e fragmentário a força do máximo? Nos seus gestos e obras não quer acrescentar mais objetos ao mundo, mas abrir nele fissuras. A arte surge então como objeto sub specie aeternitatis (Wittgenstein). Essa sombra da eternidade sobre o tempo, permitirá o olhar do estrangeiro. A estranheza necessária à revolução. Coloca-nos no deserto, faz-nos atravessar as chamas. O que faz o artista senão oferecer uma nova forma de presença do mundo? Uma vertigem inesperada.

Nesta ontologia quebrada, sustento frágil, quer do homem, quer das suas obras, que poder tem o desenho?

O “pequeno intervalo” que é a vida de cada um, encontra um eco estranho nesse “pequeno intervalo” que é a obra de arte no mundo. O que a distingue das outras coisas é o estremecimento que pode causar por ser excecional. É o seu caráter de exceção (5), de estrangeira ao mundo mortal, que obriga a projetar um olhar novo sobre todos os outros intervalos. É a exceção injustificada que, no abalo que cria, justifica a regra, o geral, o mundo, a repetição mortal. Como poderia ser exceção se não assegurasse o geral? Mas fá-lo em luta. A exceção examina e interroga o geral, ao mesmo tempo que se pensa a si própria (6), mas o geral, o mundo, não quer ser posto em causa. Por isso, como as exceções, a obra tem de fracassar. Não seria uma exceção se não falhasse. Não salvará o mundo, mas pode mostrar-lhe o que ele é.

Há na obra de arte a potência de um inferno incendiário: o poder destruidor do fogo e dos líquidos corrosivos. É essa inquietação corrosiva que devemos esperar deste Desenho. Ele deita fogo ao que somos. É o ordálio que nos põe à prova. E aquele que atravessar este deserto com chuva de fogo sem se magoar, não está já vivo. É preciso amar o deserto, a ausência, a ferida, para manter o amor à vida. Cuidar da escuridão, para poder ver os mais brilhantes clarões. As altas estrelas, desejadas por Dante, só se veem de noite. O sofrimento aparece ao lado da beleza. Ele é o intensificador, que predispõe a olhar a vida com outros olhos. E por isso alegra-se e rejubila, como Constantin Constantius, pseudónimo de Kierkegaard: “viva o movimento das vagas que me atiram no abismo, viva o movimento das vagas que me projetam até às estrelas!” (7).

Quando olhamos para este Desenho de Rui Chafes, encontramo-nos a nós próprios, como estranhos, no inferno. E espantados, nesse estremecimento, sem armadura que nos proteja das feridas, chamamos por nós, como Dante ao ver incrédulo o filósofo e mestre amado que lhe ensinou “como o homem se eterna” (8):

“Vós aqui, Senhor Brunneto?”» (9).


(1) A morte, como ensinou Weil, “é o que de mais precioso foi dado ao homem. É por isso que a impiedade suprema é usa-la mal.” (Weil, La pesanteur..., p.101).
(2) Blanchot, O livro por vir. Lisboa: Relógio d´Água – 1984, p.118
(3) Kierkegaard, La reprise. Paris: Flammarion - 1990, p.173-174
(4) Weil, Espera de Deus, p.120
(5) Sobre a noção de exceção, no sentido aqui pretendido cfr Kierkegaard, La reprise. Paris: Flammarion, 1990, p.171ss
(6) Kierkegaard, La reprise, p.171
(7) Kierkegaard, La reprise, p.166. – Constantius, Kierkegaard, que de si dizia que pertencia à ideia, e que quando a ideia o chamava, abandonava tudo, escreveu: “viva a descolagem do pensamento, viva o perigo de morte ao serviço da ideia, viva o perigo do combate, viva a jubilação solene da vitória, viva a dança no turbilhão do infinito (...)”
(8) Inferno XV, 85 – Brunnetto Latini, ilustre intelectual florentino, mestre de Dante. Nietzsche, utiliza esta referência para, aparentemente, se referir ao seu proprio trabalho:
“Para terminar/Como conclusão: “ter sido um professor de”
come l’uom s’eterna...
(Inf. XV, 85)” Fragmento póstumo de 1886/1887 9[4] (KSA 13, p. 341– trad. de Maria João Branco).
(9) Inferno XV, 30

Paulo Pires do Vale
27.09.11
in SNPC

Efeminação e virilidade na Grécia Antiga

Deixo-vos aqui um link para um ensaio muito interessante sobre efeminação e virilidade na Grécia Antiga. Parece-me bem fundamentado e documentado e relevante para quem se interessa por esta temática. Leiam aqui o artigo de Fábio Cerqueira.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O casamento homossexual liberta a Igreja

Casamento gay e Igreja livre

Um artigo de opinião de um ensaísta católico francês para o Le Monde. Nele o autor aborda a actualidade política do país (direito ao casamento e à adopção por parte dos casais homossexuais) e critica a hierarquia da Igreja por se interessar mais pelas histórias do foro privado do que pela espiritualidade. Sendo a maioria dos franceses a favor do casamento homossexual, os moralistas enveredam pelo ataque à homoparentalidade alegando a falta de referências masculino-feminino. O autor relembra que 2,8 milhões de crianças vivem em famílias monoparentais - sem haver sequer a alteridade de haver 2 referências distintas e que 40.000 crianças vivem já com um casal homossexual, sem nelas se ter notado qualquer perturbação ou trauma derivados especificamente desse factor. Mas o "incómodo" da homoparentalidade vem de medos irracionais, ignorância: hereditariedade ou contágio da homossexualidade. O autor afirma que quando se é crente, se é Igreja, e quando um se diz católico, deve ser testemunha de Cristo e do Evangelho e não se contentar com a repetição cega e obcessiva das opiniões da hierarquia: tem de se saber dialogar com tudo e com todos e passar a mensagem do Evangelho, não alimentar preconceitos sem sentido crítico e construtivo.

Desde o nascimento de Cristo sabemos que a filiação importante não é nem a sexual nem a reprodutiva, mas a adoptiva. José e Maria receberam Jesus sem o conceberem, O mesmo teria acontecido se José fosse uma mulher. O mesmo acontece quando uma criança nasce: ela é declarada ao Estado Civil e os seus pais são os que ficam responsáveis pela sua criação e educação; a criança é adoptada pelos seus pais. Com o Evangelho a família alarga-se a uma família universal. Não interessa se se é órfão, bebé-proveta, filho bastardo, filho de pai gay ou de barriga de aluguer ou se se vem da Assistência Social: todos somos irmãos em Cristo e filhos de Deus. Em termos laicos importa assegurar uma parentalidade colectiva, consensual, integrativa e democrática, ou seja, uma socioparentalidade. Os jovens devem ser associados o mais cedo possível à vida na sua cidade como futuros cidadãos.

Na história a Igreja teve o papel de consolidar o matrimónio que, entre outras coisas, assegurava às crianças que nasceriam um quadro educativo de fundo. As sociedades modernas e democráticas ocupam-se disso actualmente. A abertura do direito ao casamento e à adopção aos casais homossexuais é a última etapa desta lenta evolução. No séc. IX a Igreja ocupava-se com o estado civil e a regulação matrimonial e hoje vê chegar ao fim o seu papel administrativo e civil. O casamento homossexual não põe em causa o matrimónio e a filiação, mas antes liberta a Igreja das suas preocupações de gestão quotidiana da sociedade e dá-lhe espaço para se concentrar na difusão da sua mensagem espiritual. Para isso, os baptizados não devem ser eternamente crianças de colo do nosso Pai que está nos céus, mas tornar-se adultos que, desde a mais tenra juventude, como Jesus, tomam a palavra no Templo e na cidade.

Aqui segue o artigo na íntegra em francês:


Le mariage homosexuel libère l'Eglise


Par Thierry Jaillet, essayiste catholique

Dans quelques semaines ou quelques mois, le gouvernement va mettre en œuvre l'un des engagements du candidat Hollande : l'ouverture du "droit au mariage et à l'adoption aux couples homosexuels". Ce n'est que justice. Mais, je le regrette en tant que catholique pratiquant et engagé, mon Eglise, ou du moins sa partie institutionnelle, va se prononcer contre cette mesure d'équité et de sagesse. En effet, depuis 1968 et l'encyclique Humanae Vitae, fustigeant l'interruption volontaire de grossesse (IVG) et la contraception, nous sommes habitués à ce que notre haut clergé se mêle plus de nos histoires de cul que de spiritualité.


Comme la majorité des Français sont pour le mariage homosexuel, l'angle d'attaque des opposants moralisateurs et plus ou moins homophobes sera l'homoparentalité. Vous rendez-vous compte, ces pauvres enfants, est-ce bien raisonnable qu'ils grandissent sans référent maternel ou paternel ? Réveille-toi, mon frère, ma sœur, 2,8 millions d'enfants vivent dans une famille monoparentale, et leur seul parent, une femme, en général, est, dans la plupart des cas, hétérosexuelle. D'autre part, 40 000 enfants vivent d'ores et déjà avec deux parents homosexuels, et l'on n'a pas détecté chez eux le moindre traumatisme psychologique particulier. Tous les éducateurs sérieux le savent : les difficultés des enfants ne proviennent pas de l'orientation sexuelle de leurs parents, mais de leurs moyens financiers, de leur niveau d'études et de leur intégration dans la société. Mais ce n'est pas avec des arguments de simple raison que l'on peut convaincre sur ce point. L'homoparentalité dérange, on craint faussement qu'elle soit héréditaire, contagieuse, et délétère pour l'espèce humaine. Comment sortir de cette peur irrationnelle qui fait que même des citoyens assez ouverts se disent qu'il faut procéder par paliers, ménager des transitions, distinguer mariage (hétéro) et union civile (homo), de crainte d'encourager l'homophobie, alors qu'il n'y a rien de pire que faire des distinctions pour renforcer les discriminations et l'exclusion ?


Quand on est l'Eglise et que l'on se dit catholique, on doit dialoguer avec tous, se faire le témoin du message du Christ et des Ecritures et ne pas se contenter de répéter les éventuelles âneries des successeurs de Pierre, lequel Pierre, selon l'Evangile et les Actes des Apôtres, sortit quelques énormes sottises que ses frères ne suivirent pas. Alors, plutôt que de l'entretenir, faisons donc reculer la peur de l'homoparentalité.

Depuis la naissance du Christ, nous savons que la seule filiation qui compte n'est ni sexuelle ni reproductrice, mais adoptive. Joseph et Marie deviennent les parents du Christ parce qu'ils l'acceptent comme enfant, alors que leur relation sexuelle ne l'a pas conçu. Joseph eût été une femme que le Christ eût été tout de même incarné. Nous aussi parents, nous déclarons nos enfants à l'état civil, nous les adoptons aux yeux de la loi et de la société, et nous nous engageons dans leur éducation. Mais avec l'Evangile, nous allons plus loin que jouer au papa et à la maman. Nous agrandissons la famille à l'humanité toute entière. Nous reconnaissons Jésus Christ fils du Dieu Vivant (Mt 16, 16), et nous nous disons fils de Dieu et frères en Jésus-Christ, que nous sortions des bourses d'un père homosexuel, de l'utérus d'une mère porteuse, d'une éprouvette, ou de l'Assistance. Et l'important pour nous n'est pas de sacraliser la famille traditionnelle, car la "Sainte Famille" est tout sauf cela, mais de laisser le Christ, dès l'âge de 12 ans, et nos enfants avec lui, "s'occuper des affaires de son Père" (Luc 2, 49). En termes laïques, cela veut dire que ce qui compte, c'est que la société tout entière s'occupe bien des enfants, les éduque, et les considère pour eux-mêmes, pas seulement en tant que fils et filles de leurs parents, hétérosexuels ou pas. Toujours en termes laïques, cela veut dire aussi que les jeunes doivent être associés au plus tôt à la vie de la cité, en tant que futurs citoyens. Dans cette perspective, l'homoparentalité n'est plus un problème, le vrai défi, c'est d'assurer ensemble une parentalité collective, consensuelle, intégrative et démocratique, une socioparentalité.


Au cours des siècles, l'Eglise a construit sa vision du sacrement du mariage, certes pour asseoir son pouvoir sur la société, mais aussi pour assurer le consentement éclairé des époux, empêcher les mariages forcés pour raisons patrimoniales, limiter la traite des femmes, abolir la répudiation et assurer aux enfants un cadre éducatif minimal. Les sociétés modernes et démocratiques se chargent aujourd'hui de ces protections et sauvegardes. L'ouverture du droit au mariage et à l'adoption aux couples homosexuels est la dernière étape de cette lente évolution. L'Eglise qui prit en charge, aux temps barbares du IXe siècle, état civil et régulation matrimoniale, voit aujourd'hui la toute fin de son rôle administratif et civil. Le mariage homosexuel, loin de remettre en cause mariage et filiation, libère définitivement l'Eglise de ses préoccupations de gestion quotidienne de la société et lui donne tout loisir de se concentrer sur la diffusion de son message spirituel. Mais pour cela, les croyants ne doivent pas rester les petits enfants mineurs de Notre Père qui est aux cieux et de notre Très Saint-Père le Pape qui est à Rome (tiens, deux pères dans cette famille ?). Non, les baptisés se doivent d'être des adultes majeurs qui, dès leur plus jeune âge, comme Jésus, prennent la parole dans le Temple et dans la ville.

Thierry Jaillet est l'auteur de L'Evangile de Michel Onfray (Golias Editions).

In Le Monde de 5 de Junho 2012

domingo, 23 de janeiro de 2011

Já podemos encontrar "o evangelho segundo os Simpson" nas livrarias

"O hipopótamo de Deus" voltou às livrarias


A Assírio & Alvim lançou recentemente a 2.ª edição, revista e ampliada, de “O hipopótamo de Deus e outros textos”, do director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, padre e poeta, José Tolentino Mendonça.

O volume apresenta cinco textos novos em relação à primeira edição: “Avança devagar”, “Para que serve a Economia?”, “O evangelho segundo ‘os Simpson’”, “De que falamos quando falamos de santidade” e “O turista e o peregrino”.

In SNPC
http://www.snpcultura.org/vol_o_regresso_de_o_hipopotamo_de_Deus.html

Porque estou aqui

Sinto-me privilegiado por ter encontrado na Igreja um lugar vazio, feito à minha medida. É certo que tê-lo encontrado (ou encontrá-lo renovadamente, pois não é dado adquirido) foi também mérito da minha sede, do meu empenho, de não baixar os braços e achar, passivamente, que não seria possível. Passo a contextualizar: a comunidade onde vou à missa é pequena e acolhedora, e podia bem não o ser. Ao mesmo tempo, sentia um desejo grande de reflexão de vida cristã e encontrei um casal (heterosexual) que tinha a mesma vontade. Começámo-nos a reunir semanalmente numa pequena comunidade de oração e reflexão que, apesar de crítica, nos tem ajudado a sermos Igreja e a nela nos revermos. Paralelamente, face ao contínuo desencanto em relação a algumas posturas e pontos de vista de uma Igreja mais institucional e hierárquica, tive a graça de encontrar um grupo de cristãos homossexuais, que se reuniam com um padre regularmente, sem terem de se esconder ou de ocultar parte de si.

Sei que muitos cristãos homossexuais nunca pensaram sequer na eventualidade de existirem grupos cristãos em que se pudessem apresentar inteiros, quanto mais pensarem poder tomar parte e pôr em comum fé, questões, procuras, afectos e vidas.

Por tudo isto me sinto grato a Deus e me sinto responsável para tentar chegar a quem não teve, até agora, uma experiência tão feliz como a minha.

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As imagens que ilustram as mensagens são retiradas da Internet. Quando se conhece a sua autoria, esta é referida. Quando não se conhece não aparece nenhuma referência. Caso detectem alguma fotografia não identificada e conheçam a sua autoria, pedimos que nos informem da mesma.

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