«O que fere aquele que desenha?
O livro do Eclesiastes, na sua sabedoria prática, afirma: “Quem cava um buraco, nele cairá. Quem escava um muro, uma cobra o morderá. O que transporta pedras, aleija-se nelas. O que racha lenha, fere-se nas lascas” (Ecl 10, 9). Aquele que desenha também não pode deixar de se ferir com o que trabalha: a sua própria ferida. O que assalta aquele que desenha, o objeto que se transforma em arma virada contra si, é o si-mesmo. Não o eu (ego), mas um si (ipse) por vir. E isso há de feri-lo até que venha.
O artista aleija-se nessa violência que é a origem da obra - e que lhe é íntima, transporta-a em si. Em vez de esconder essa violência, usa-a. Mesmo que não a exponha. Ele sabe dar um bom uso à morte (1). E nisso há uma dimensão profética. Aquilo que outros não querem ver, ele não pode recusar. Afinal, aquilo onde cada um de nós se pode ferir é sempre na própria ferida. Flor que nunca fecha. No seu modo próprio e radical de abertura ao mundo. Esta ferida, como a metáfora indica, não é fechamento solipsista, mas abertura que conduz ao exterior, para fora de si - “talvez para fora de tudo”, julgava Blanchot (2). Essa forma de êxtase é modo de tocar o caos, a obscuridade, a violência, a noite.
O artista tem de perder a luta contra o anjo, tem de sentir o nada (3), para que, então, a sua fraqueza seja muito forte. Para que possa vencer. O artista tem de assumir e alimentar a sua vulnerabilidade, ser capaz de se ferir, de se abrir: como dar atenção de outro modo? É dessa fraqueza que receberá a força. A fragilidade é a sua verdade – e por isso é a única força que o pode libertar. Simone Weil dizia que “quando um aprendiz se fere ou se queixa de cansaço, os operários, os camponeses, têm estas belas palavras: “É o ofício que entra no corpo”. De cada vez que suportamos uma dor, podemos dizer-nos, com verdade, que é o universo, a ordem do mundo, a beleza do mundo, a obediência da criação a Deus que nos entram no corpo” (4). A fragilidade é o nosso modo de abertura à verdade do mundo. As feridas são um dom. É delas que surge a obra, porque é delas que se alimenta o artista. Desse perigo, que é também oportunidade de se elevar do mais baixo para o mais alto.
O que faz o artista senão procurar no débil e fragmentário a força do máximo? Nos seus gestos e obras não quer acrescentar mais objetos ao mundo, mas abrir nele fissuras. A arte surge então como objeto sub specie aeternitatis (Wittgenstein). Essa sombra da eternidade sobre o tempo, permitirá o olhar do estrangeiro. A estranheza necessária à revolução. Coloca-nos no deserto, faz-nos atravessar as chamas. O que faz o artista senão oferecer uma nova forma de presença do mundo? Uma vertigem inesperada.
Nesta ontologia quebrada, sustento frágil, quer do homem, quer das suas obras, que poder tem o desenho?
O “pequeno intervalo” que é a vida de cada um, encontra um eco estranho nesse “pequeno intervalo” que é a obra de arte no mundo. O que a distingue das outras coisas é o estremecimento que pode causar por ser excecional. É o seu caráter de exceção (5), de estrangeira ao mundo mortal, que obriga a projetar um olhar novo sobre todos os outros intervalos. É a exceção injustificada que, no abalo que cria, justifica a regra, o geral, o mundo, a repetição mortal. Como poderia ser exceção se não assegurasse o geral? Mas fá-lo em luta. A exceção examina e interroga o geral, ao mesmo tempo que se pensa a si própria (6), mas o geral, o mundo, não quer ser posto em causa. Por isso, como as exceções, a obra tem de fracassar. Não seria uma exceção se não falhasse. Não salvará o mundo, mas pode mostrar-lhe o que ele é.
Há na obra de arte a potência de um inferno incendiário: o poder destruidor do fogo e dos líquidos corrosivos. É essa inquietação corrosiva que devemos esperar deste Desenho. Ele deita fogo ao que somos. É o ordálio que nos põe à prova. E aquele que atravessar este deserto com chuva de fogo sem se magoar, não está já vivo. É preciso amar o deserto, a ausência, a ferida, para manter o amor à vida. Cuidar da escuridão, para poder ver os mais brilhantes clarões. As altas estrelas, desejadas por Dante, só se veem de noite. O sofrimento aparece ao lado da beleza. Ele é o intensificador, que predispõe a olhar a vida com outros olhos. E por isso alegra-se e rejubila, como Constantin Constantius, pseudónimo de Kierkegaard: “viva o movimento das vagas que me atiram no abismo, viva o movimento das vagas que me projetam até às estrelas!” (7).
Quando olhamos para este Desenho de Rui Chafes, encontramo-nos a nós próprios, como estranhos, no inferno. E espantados, nesse estremecimento, sem armadura que nos proteja das feridas, chamamos por nós, como Dante ao ver incrédulo o filósofo e mestre amado que lhe ensinou “como o homem se eterna” (8):
“Vós aqui, Senhor Brunneto?”» (9).
(1) A morte, como ensinou Weil, “é o que de mais precioso foi dado ao homem. É por isso que a impiedade suprema é usa-la mal.” (Weil, La pesanteur..., p.101).
(2) Blanchot, O livro por vir. Lisboa: Relógio d´Água – 1984, p.118
(3) Kierkegaard, La reprise. Paris: Flammarion - 1990, p.173-174
(4) Weil, Espera de Deus, p.120
(5) Sobre a noção de exceção, no sentido aqui pretendido cfr Kierkegaard, La reprise. Paris: Flammarion, 1990, p.171ss
(6) Kierkegaard, La reprise, p.171
(7) Kierkegaard, La reprise, p.166. – Constantius, Kierkegaard, que de si dizia que pertencia à ideia, e que quando a ideia o chamava, abandonava tudo, escreveu: “viva a descolagem do pensamento, viva o perigo de morte ao serviço da ideia, viva o perigo do combate, viva a jubilação solene da vitória, viva a dança no turbilhão do infinito (...)”
(8) Inferno XV, 85 – Brunnetto Latini, ilustre intelectual florentino, mestre de Dante. Nietzsche, utiliza esta referência para, aparentemente, se referir ao seu proprio trabalho:
“Para terminar/Como conclusão: “ter sido um professor de”
come l’uom s’eterna...
(Inf. XV, 85)” Fragmento póstumo de 1886/1887 9[4] (KSA 13, p. 341– trad. de Maria João Branco).
(9) Inferno XV, 30
Paulo Pires do Vale
27.09.11
in SNPC
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