As quatro vias para a espiritualidade cristã contemporânea de Etty Hillesum
parte I
(...) Há quatro áreas em que ela fala de modo particular.
Primeiro, quebra o nosso ceticismo acerca da fé e convida-nos a acreditar de novo. Segundo, interrompe as nossas estreitas convicções acerca da própria religião, e convida-nos a rezar. Terceiro, interrompe os nossos ódios fáceis ao nosso inimigo, convidando-nos a ver. Finalmente, interrompe o nosso desespero acerca do futuro, e convida-nos a ser corajosos.
Um convite a acreditar de novo
O seu diário e as suas cartas contam a história de uma aventura de descoberta. Há uma entrada do seu diário em que, impaciente com a «primitiva» palavra «Deus», Etty lhe dá uma nova definição, descrevendo Deus como «a nossa maior e mais contínua aventura interior». A energia, o dinamismo e a direção desta «aventura interior» lenta, mas, seguramente, como um grande rio, reuniu tudo o que ela era, e transformou-a. Do fundo do caos emergiu a coerência emocional; o poder do seu turbulento desejo foi transformado numa paixão pelo amor; o empenhamento pela verdade tornou-se uma força motriz; por baixo da sua vitalidade intelectual e emocional, Etty descobriu uma corrente subterrânea de sabedoria; e, no segredo de uma casa de banho suja, o desejo mais profundo do seu coração foi satisfeito na prática de adoração. Finalmente, até mesmo frente ao mal mais bárbaro, Etty mostrou que uma vida pode encontrar dentro de si própria profundos reservatórios de uma estranha alegria. Acima de tudo, deu testemunho da realidade de uma profunda dimensão interior à pessoa humana. Era à vastidão interior da sua alma a que Etty regressava constantemente, e foi esta qualidade de profundidade que lhe permitiu enfrentar o barbarismo e o ódio que a circundava, e lidar com eles.
A sua vida constitui um desafio à dúvida e ao ceticismo radicais do nosso tempo. Não às dúvidas da honesta interrogação própria da abertura de espírito que constitui um aspeto essencial da fé, mas o tipo de dúvida que alimenta o desespero cínico, pois afirma cegamente que a aventura da fé é uma ilusão, e, por isso, está condenada desde o princípio.
Esta jovem mulher tomou a seu cargo a responsabilidade extraordinária de tornar Deus crível, até mesmo num mundo como Westerbork. «Tem de haver alguém que viva tudo isto e dê testemunho do facto de que Deus continuou a viver, até mesmo em tempos como estes. E porque não havia de ser eu essa testemunha?»
O seu caminho de fé
Foi a sua prática de prestar profunda atenção que a transformou. Ela começou por aprendê-lo ajoelhada no tapete castanho de fibra de coco da casa de banho de sua casa, em Amesterdão. Essa prática foi-se desenvolvendo sob a pressão do terror até se ter tornado habitual. Ao longo dos meses no campo, à medida que o seu contemplativo coração se ia apercebendo cada vez mais da sua vida interior, a sua direção ia-se afirmando. Etty desenvolveu um profundo sentido de solidariedade para com o seu povo, e ela descobriu que ansiava por cuidar dos mais fracos e dos mais vulneráveis. Sempre atenta a sinais dessa vida «nas suas milhares de nuances»no rosto dos que a rodeavam e no mundo natural para lá do arame farpado, estava decidida a não ficar estonteada pela crueldade, mas a continuar a ver, a fim de poder contar a história do seu destino. Foi descobrindo cada vez mais que a sua prática de «repousar em Deus» libertava dentro de si uma profunda nascente de gratidão que, por vezes, se tornava irreprimível. Até no inferno daquele campo ela brotava das profundezas do seu ser. A sua figura de pé, numa extremidade do campo, com lágrimas de profunda emoção e gratidão a correr-lhe pelo rosto é uma imagem, uma expressão, de profunda fé mística.
Escutar era o modo principal da sua crença. À medida que o seu tempo em Westerbork ia passando, essa prática aumentou de intensidade, embora houvesse momentos em que «nada fazia sentido». Na sua carta a Henny Tideman, Etty escreveu: «As coisas vão e vêm num ritmo mais profundo, e as pessoas devem ser ensinadas a escutar; é a coisa mais importante que temos de aprender nesta vida.» E a escuta conduziu a um anseio mais profundo: «A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, ó Deus»; e esse anseio conduzia-a numa única direção: «Desemboco sempre numa única palavra: Deus.»
Era esta a fé de Etty. Tê-la-á sustentado até ao fim? A fé tem de fazer frente àquilo que tenta bloqueá-la. Na sequência da longa carta de 24 de agosto, em que ela descrevia os guardas grosseiros a carregar a sua miserável carga humana, escreveu a Maria Tuinzing, confessando-se «estranhamente cansada». Pressente-se que as torrentes de gratidão a que se referira numa carta, poucas semanas antes, já não seriam apropriadas. Talvez já não fossem possíveis. Etty vira demasiado. «Agora estamos um pouco mais velhos. Nós próprios mal nos apercebemos disso: ficámos marcados pelo sofrimento para toda a vida.» Contudo, não tinha perdido a fé. «...A vida, nas suas profundezas insondáveis, é tão maravilhosamente boa, Maria», escreveu ela. E Deus não se perdera, «...se nós nos preocuparmos o suficiente, Deus estará seguro nas nossas mãos, apesar de tudo o resto...»
A sua fé susteve-a até ao fim. Deixou o campo a cantar. A última vez que a vimos foi sentada na mochila dentro do vagão de gado superlotado e fechado com tábuas, cercada por inúmeros outros judeus, tendo pela frente uma viagem de três dias. No último postal que enviou para o mundo exterior, a primeira coisa que escreveu foi um versículo: «O Senhor é a minha torre segura.» É difícil imaginar uma situação em que a fé pudesse ser mais posta à prova. A sua vida diz muito sobre o que é a fé e o que a fé torna possível. Etty interrompe o ceticismo sarcástico do nosso tempo, acerca da fé religiosa, e também nos convida a aprender o que significa escutar profundamente e voltar a acreditar.
por Patrick Woodhouse, In Etty Hillesum - Uma vida transformada, ed. Paulinas
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