«Um deus que fertiliza a polpa azul da sombra»: metáforas para a inclusão de Deus em António Ramos Rosa
Que alegria não saber que deus é este
e estar com ele sem ele
na sua suprema companhia como o ar!
(António Ramos Rosa)
Uma coisa que eu faço, desde há vários anos, é buscar Deus mais na poesia do que na teologia. E reparo que, na nossa poesia contemporânea sobre Deus, anda muito a palavra silêncio. Será isso negativo? Não é o silêncio a última inspiração/aspiração/respiração antes da Palavra? Ou não é o nosso silêncio que nos faz ouvir a Palavra do totalmente-Outro? E não é no silêncio que repercute em nós o eco da última palavra que nos foi dita ou do último acorde que ouvimos? E não foi em plena noite, com o silêncio envolvendo a Terra, que Deus se revelou num homem (Sb 18,14)? E não foi esse Homem-Deus que nos exortou a falar com o Pai na intimidade ou em segredo (Mt 6,6)?
Ao ouvir falar de Deus como o grande excluído da sociedade, pergunto-me se o é da maneira e pelas razões que nós julgamos. Não será a nossa incapacidade para captar os seus muitos sinais que nos leva a dizer que Ele foi excluído da nossa cidade e as pessoas vivem “como se Deus não existisse”? Não serão as coordenadas da nossa visão, os parâmetros da nossa leitura e análise demasiado estreitos ou demasiado largos para o captar? Não o teremos definido, quadriculado, limitado, reduzido demais a uma ortodoxia ou a um olhar ocidental e europeu pretensamente universalizado?
Deus galgou as margens e fronteiras onde o julgávamos circunscrito, e anda por aí a tentar regar outros cantos da nossa aridez, a inquietar algumas das nossas seguranças e certezas mal adquiridas, à espera de cruzar-se connosco no caminho das novas decepções ou deserções... Seremos, ainda, capazes de aceitar que Ele possa chamar-se novidade e surpresa, dois mil anos depois de Cristo no-lo ter revelado?
Vejamos, a propósito, dois poemas de António Ramos Rosa, em Facilidade do ar (Caminho: Lisboa 1990, pp. 25 e 22).
o deus azul
Há um deus que fertiliza a polpa azul da sombra
e extenso no silêncio está como o olvido no olvido.
Recolhe-se num movimento para o centro
onde permanece côncavo e completo.
Na sua enamorada eternidade
o corpo é asa, pedra e nuvem.
O mundo por vezes é um instante de amêndoa
em que ele transparece em carícias de regaço.
Movimento de plácida e redonda consciência,
não a imagem mas a visão nua do âmbito pleno,
em que estamos com ele em sequência natural.
A sua vida é o sono da luz e da sombra em aberta órbita
sempre no seu próprio círculo em sucessivas ondas
de sossegada incandescência.
Ele está no mundo, o mundo está nele
sempre como no princípio num fulgor cumprido
na radiosa concavidade azul.
(Caminho: Lisboa 1990, p. 25.)
Neste poema, Ramos Rosa não parece ter dúvidas quanto à presença de Deus no mundo: Ele está no mundo, o mundo está nele. E ainda: O mundo por vezes é um instante de amêndoa / em que ele transparece em carícias de regaço. O poeta fala-nos de uma ausente omnipresença, de uma certa osmose entre Deus e o mundo: este deus (assim, com minúscula) tem a cor do “planeta azul”. É quase uma visão beatífica: não a imagem mas a visão nua do âmbito pleno / em que estamos com ele em sequência natural. Pois A sua vida é o sono da luz em aberta órbita.
Literariamente, escrever deus sem a inicial maiúscula pode ajudar-nos a senti-lo mais próximo de nós, sem que tal implique uma subestima do autor. Por outro lado, várias palavras deste poema, sem definirem Deus, falam-nos metaforicamente de propriedades e valores que a revelação e a teologia nos habituaram a atribuir-lhe. Com esta vantagem: são palavras dinâmicas, de sentido aberto para novas buscas e significados, como: extenso no silêncio, movimento, centro, côncavo, eternidade, regaço, consciência, círculo, princípio, concavidade azul, aberta órbita, sossegada incandescência...
a igualdade do deus ausente
Entre ti e mim a igualdade,
mesmo obscuro, mesmo ausente,
entre ti e mim o espaço
do teu corpo imenso, irmão,
azul e áureo,
num infinito odor ardente, saboroso,
transviando-se, morrendo e renascendo,
mas sempre igual, igual em sua presença de olvido,
resolvido desde sempre e para sempre
e sempre inicial.
Que alegria não saber que deus é este
e estar com ele sem ele
na sua suprema companhia como o ar!
Que alegria ser a onda, a sua onda,
profunda, calada, verdadeira!
Que alegria ser a permanência leve
deste unânime deus ausente!
Deus, igual a si próprio: fonte da nossa igualdade? Deus, nosso irmão: nosso igual, ou raiz da nossa fraternidade? Deus ausente: alheio e alheado, ou solidário, sempre inicialem qualquer das nossas procuras e dos nossos caminhos, mas respeitando a liberdade que nos deu? O não saber que deus é este não nos impede de estar com ele sem ele / na sua suprema companhia como o ar:
A quem foi criado por Deus e tende para Ele, não bastará aalegria ser a onda, a sua onda, mesmo sem se fundir e perder n’Ele como num qualquer nirvana, nem Ele se confundir connosco e muito menos se esgotar em nós como únicos, exclusivos e absolutos destinatários do amor difusivo e criador?
Sem querer tirar conclusões, aos que apenas falam deste unânime deus ausente diria, com Manuel Alegre: talvez Deus e sua ausência (in Senhora das Tempestades,Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1998, p. 49).
Fr. Lopes Morgado, OFM Cap
Excerto de “Dizer Deus: metáforas para a inclusão social à luz de S. Francisco”, em Estudios Franciscanos, Barcelona, vol. 107, nº 441 (setembro-dezembro 2006), pp. 497-528 [520-521.522-524].
27.09.13
Neste poema, Ramos Rosa não parece ter dúvidas quanto à presença de Deus no mundo: Ele está no mundo, o mundo está nele. E ainda: O mundo por vezes é um instante de amêndoa / em que ele transparece em carícias de regaço. O poeta fala-nos de uma ausente omnipresença, de uma certa osmose entre Deus e o mundo: este deus (assim, com minúscula) tem a cor do “planeta azul”. É quase uma visão beatífica: não a imagem mas a visão nua do âmbito pleno / em que estamos com ele em sequência natural. Pois A sua vida é o sono da luz em aberta órbita.
Literariamente, escrever deus sem a inicial maiúscula pode ajudar-nos a senti-lo mais próximo de nós, sem que tal implique uma subestima do autor. Por outro lado, várias palavras deste poema, sem definirem Deus, falam-nos metaforicamente de propriedades e valores que a revelação e a teologia nos habituaram a atribuir-lhe. Com esta vantagem: são palavras dinâmicas, de sentido aberto para novas buscas e significados, como: extenso no silêncio, movimento, centro, côncavo, eternidade, regaço, consciência, círculo, princípio, concavidade azul, aberta órbita, sossegada incandescência...
a igualdade do deus ausente
Entre ti e mim a igualdade,
mesmo obscuro, mesmo ausente,
entre ti e mim o espaço
do teu corpo imenso, irmão,
azul e áureo,
num infinito odor ardente, saboroso,
transviando-se, morrendo e renascendo,
mas sempre igual, igual em sua presença de olvido,
resolvido desde sempre e para sempre
e sempre inicial.
Que alegria não saber que deus é este
e estar com ele sem ele
na sua suprema companhia como o ar!
Que alegria ser a onda, a sua onda,
profunda, calada, verdadeira!
Que alegria ser a permanência leve
deste unânime deus ausente!
Deus, igual a si próprio: fonte da nossa igualdade? Deus, nosso irmão: nosso igual, ou raiz da nossa fraternidade? Deus ausente: alheio e alheado, ou solidário, sempre inicialem qualquer das nossas procuras e dos nossos caminhos, mas respeitando a liberdade que nos deu? O não saber que deus é este não nos impede de estar com ele sem ele / na sua suprema companhia como o ar:
A quem foi criado por Deus e tende para Ele, não bastará aalegria ser a onda, a sua onda, mesmo sem se fundir e perder n’Ele como num qualquer nirvana, nem Ele se confundir connosco e muito menos se esgotar em nós como únicos, exclusivos e absolutos destinatários do amor difusivo e criador?
Sem querer tirar conclusões, aos que apenas falam deste unânime deus ausente diria, com Manuel Alegre: talvez Deus e sua ausência (in Senhora das Tempestades,Publicações Dom Quixote: Lisboa, 1998, p. 49).
Fr. Lopes Morgado, OFM Cap
Excerto de “Dizer Deus: metáforas para a inclusão social à luz de S. Francisco”, em Estudios Franciscanos, Barcelona, vol. 107, nº 441 (setembro-dezembro 2006), pp. 497-528 [520-521.522-524].
27.09.13
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