Para uma espiritualidade terrena
Só quem encontra a coragem de descer ao reino das sombras da sua própria repressão se livra de tais divisões. E então passará a lidar de forma misericordiosa consigo e com os outros. Deixará de projetar o seu lado reprimido nos outros, e percorrerá com o caminho da mudança interna juntamente com eles.
Espiritualidade terrena significa ainda outra coisa para mim. Ela tem formas concretas. Ela não se passa apenas na cabeça ou nas emoções. Ela não está suspensa sobre a realidade, mas encontra na vida de todos os dias a sua expressão. Exprime-se em rituais purificadores e numa cultura de vida cristã.
Eu vejo hoje muitos cristãos que estão suspensos de Deus e das suas experiências profissionais. Mas a sua vida não espelha nada de Deus. A sua piedade não muda a sua vida. Ela não é visível no exterior. O caminho espiritual precisa de formas muito concretas para ser visível aos outros, mas acima de tudo para nos mudar.
Precisamos de uma cultura de vida cristã. O espírito quer tornar-se carne. A espiritualidade precisa de visibilidade. Se um pregador fala de amor de Deus, mas a sua face exprime brutalidade, não convence as pessoas. Não tem qualquer efeito se alguém delira de tão crente e confiante, e os seus ombros exprimem medo. As pessoas querem ver e experimentar espiritualidade.
(…)
Às pessoas, hoje, não interessa em primeira linha a verdade das palavras, mas a aparência de uma pessoa e aquilo que ela irradia. É no seu corpo, nos seus olhos, no seu contacto com as coisas, que se vê se ela está realmente penetrada pelo espírito de Deus.
Durante a celebração da missa e na própria sacristia, nota-se pela atitude do sacristão se existe espiritualidade na sua comunidade. Quando o cálice e os seus panos estão sujos, então sinto a falta de atenção, que se insinua também no encontro com Deus. Nesta paróquia celebram-se missas, mas fala-se de Deus de forma tão insensível, é-se tão pouco atencioso com os rituais e os objetos litúrgicos que isso não passa despercebido às pessoas. Não é naquilo que transmitimos que a nossa fé se torna visível, mas naquilo que somos, naquilo que transmitimos para o exterior.
A espiritualidade terrena de São Bento leva a Terra a sério. Aqui na Terra mostra-se se o Céu está aberto sobre nós. Na minha carne está escrito se Deus habita em mim. Na minha cultura de vida vê-se se eu sou espiritual ou não.
A espiritualidade terrena também tem um aspeto comum. Ela consegue - como Norbert Lohfink diz - uma cultura cristã contrária, uma cena espiritual alternativa. Ela tem um carácter público. Torna-se visível na forma como o serviço religioso é celebrado. Aí as pessoas podem observar espiritualidade ou não. A espiritualidade terrena é visível no aspeto dos edifícios, na forma como os quartos estão mobilados, como os jardins estão dispostos, como os hóspedes são recebidos, como as pessoas se relacionam entre si.
Para muitos, isto pode parecer tudo regulamentação interior. Mas São Bento alerta-nos hoje para nos protegermos de grandes palavras, quando estas não estão revestidas de vida. A palavra quer tornar-se carne. Cristo desceu dos Céus para tornar o Céu uma realidade terrena, para apresentar a Terra de forma mais habitável ou mais humana. A espiritualidade tem de se tornar terrena, para poder modificar a Terra.
Anselm Grün
In Bento de Núrsia, ed. Paulinas
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