Spartacus, 1960 |
SOMBRAS ELÉTRICAS Nº 5/6 – Novembro-Dezembro de 2005
William Aguiar
Uma onda do que se convencionou chamar "politicamente correto" invadiu a sétima arte e, sem preocupar-se com a moral e os bons costumes, revelou o amor que os mais conservadores não ousam dizer o nome.
Antes do boom gay e lésbico das últimas duas décadas no cinema, a homossexualidade estava presente em cenas e diálogos camuflados, ou em situações inteiras. Por exemplo, vamos encontrar cenas carregadas de homossexualidade em 1960, na superprodução Spartacus. A seqüência do banho que o escravo Antonius (Toni Curtis) dava em seu senhor (Sir Laurence Olivier), enquanto escutava uma não inocente declaração sobre gostar ou não de caramujos ou ostras, foi cortada na época. Somente depois de 23 anos, os interessados puderam se deliciar com a cena do banho (e outras tantas), principalmente quando o senhor olha para seu escravo e afirma "gostar das duas coisas". Dificilmente é encontrada nas locadoras a versão sem cortes. Vale a pena procurar, pois os olhares e manifestações de carinho entre os dois permanecem até as cenas finais.
Da sutileza, o cinema passa para o (não menos bom) escracho dos anos 80 e 90. A comédia Essa Estranha Atração (Torch Song Trilogy), apesar do título em português, não é preconceituosa e mostra a relação entre homens, vivenciada por Arnold (Harvey Fierstein), Alan (Mathew Broderick) e Ed (Brian Kerwin). A parte dramática da fita fica por conta da relação de Arnold com sua mãe (Anne Banckroft), a morte de um de seus companheiros e, principalmente, da imagem sempre solitária do protagonista.
Outra comédia interessante é O Banquete de Casamento. Um jovem chinês, radicado nos Estados Unidos (Nova Iorque) é pressionado pelos pais, que moram em Taiwan, a contrair matrimônio. Os pais não sabem que o jovem já é casado no "mercado paralelo". Com um homem. Este é apenas um pequeno detalhe, é claro. O filme fica interessante quando o chinês resolve casar-se com uma inquilina sua, que conhece a situação mas aceita a farsa porque precisa de um green-card. O que ninguém esperava era a vinda dos pais do noivo para o casamento e, desgraçadamente, que fosse feito de acordo com as tradições chinesas, em que é oferecido um banquete no qual os noivos ficam à mercê das brincadeiras dos amigos. O desenrolar é leve e até o que seria considerado um "Deus nos acuda" (a dúvida em dizer ou não aos pais a orientação sexual) tem um tratamento especial, que não deixa transparecer a tensão que uma situação como essa provocaria.
A maioria dos filmes que abordam ou fazem alguma referência a isso não são apenas do gênero comédia. Basta citar como exemplo uma produção recente chamada Traídos pelo Desejo (Vanity). Outro filme em que o título nada tem a ver com a história. Ninguém ali é traído pelo desejo e sim pelo preconceito. O mérito do filme, na verdade, fica por conta da brilhante Miranda Richardson, que interpreta uma terrorista do Exército Republicano Irlandês (IRA). O que seria uma relação apaixonada, entre um dos guerrilheiros e um cabeleireiro, serve como pano de fundo para uma trama ideologicamente reacionária. Deve ter agradado muito pouco aos guerrilheiros do IRA e, também, aos militantes de organizações de esquerda que conseguiram compreender o sentido da parábola do escorpião, que funciona como reflexão ética das atividades revolucionárias radicais, perfeitamente estendida a todas as outras que não indicam a mesma solução para os problemas das sociedades capitalistas. A homossexualidade retratada no filme foi alardeada pela Academia de Hollywood como sendo a grande questão da festa do Oscar. Vale a pena lembrar que na festa da premiação, o ator que interpreta o travesti esteve presente, mas só conseguiu entrar pela porta dos fundos e não pela principal, por onde todas as outras pessoas "normais" costumam entrar. Parece que em casa de ferreiro...
Os filmes citados estão longe de mostrar, em termos quantitativos, o volume de obras em que a homossexualidade é abordada. Os que retratam a homossexualidade feminina são muito difíceis de serem encontrados nas locadoras e muito mais difícil é encontrar aqueles que não relacionam a homossexualidade com algum desequilíbrio psíquico, como é o caso de O Silêncio dos Inocentes - um excelente duelo de titãs entre Antony Hopkins e Jodie Foster -, no qual um homossexual psicopata conduz a trama, ou Instinto Selvagem (com Sharon Stone e Michael Douglas), onde a lésbica mais dócil é uma serial killer. Com esse quadro, O Banquete de Casamento e Essa Estranha Atração despontam com uma positividade que começa a ser compreendida e absorvida por diretores e roteiristas. Lucram os "iguais" e, também os "diferentes".
WILLIAM AGUIAR é membro do Grupo de Gays e Lésbicas do PT. O texto acima foi originalmente publicado na revista Teoria&Debate nº 26 (set/out/nov 1994)
© 1994 – Editora Fundação Perseu Abramo
© 2005 – SOMBRAS ELÉTRICAS
in sombras elétricas
LONG-SHOT: CINEMA E SEXUALIDADE(S), À LUZ DO MIX BRASIL 2005.
O BOOM GAY E LÉSBICO
Uma onda do que se convencionou chamar "politicamente correto" invadiu a sétima arte e, sem preocupar-se com a moral e os bons costumes, revelou o amor que os mais conservadores não ousam dizer o nome.
Antes do boom gay e lésbico das últimas duas décadas no cinema, a homossexualidade estava presente em cenas e diálogos camuflados, ou em situações inteiras. Por exemplo, vamos encontrar cenas carregadas de homossexualidade em 1960, na superprodução Spartacus. A seqüência do banho que o escravo Antonius (Toni Curtis) dava em seu senhor (Sir Laurence Olivier), enquanto escutava uma não inocente declaração sobre gostar ou não de caramujos ou ostras, foi cortada na época. Somente depois de 23 anos, os interessados puderam se deliciar com a cena do banho (e outras tantas), principalmente quando o senhor olha para seu escravo e afirma "gostar das duas coisas". Dificilmente é encontrada nas locadoras a versão sem cortes. Vale a pena procurar, pois os olhares e manifestações de carinho entre os dois permanecem até as cenas finais.
Da sutileza, o cinema passa para o (não menos bom) escracho dos anos 80 e 90. A comédia Essa Estranha Atração (Torch Song Trilogy), apesar do título em português, não é preconceituosa e mostra a relação entre homens, vivenciada por Arnold (Harvey Fierstein), Alan (Mathew Broderick) e Ed (Brian Kerwin). A parte dramática da fita fica por conta da relação de Arnold com sua mãe (Anne Banckroft), a morte de um de seus companheiros e, principalmente, da imagem sempre solitária do protagonista.
Outra comédia interessante é O Banquete de Casamento. Um jovem chinês, radicado nos Estados Unidos (Nova Iorque) é pressionado pelos pais, que moram em Taiwan, a contrair matrimônio. Os pais não sabem que o jovem já é casado no "mercado paralelo". Com um homem. Este é apenas um pequeno detalhe, é claro. O filme fica interessante quando o chinês resolve casar-se com uma inquilina sua, que conhece a situação mas aceita a farsa porque precisa de um green-card. O que ninguém esperava era a vinda dos pais do noivo para o casamento e, desgraçadamente, que fosse feito de acordo com as tradições chinesas, em que é oferecido um banquete no qual os noivos ficam à mercê das brincadeiras dos amigos. O desenrolar é leve e até o que seria considerado um "Deus nos acuda" (a dúvida em dizer ou não aos pais a orientação sexual) tem um tratamento especial, que não deixa transparecer a tensão que uma situação como essa provocaria.
A maioria dos filmes que abordam ou fazem alguma referência a isso não são apenas do gênero comédia. Basta citar como exemplo uma produção recente chamada Traídos pelo Desejo (Vanity). Outro filme em que o título nada tem a ver com a história. Ninguém ali é traído pelo desejo e sim pelo preconceito. O mérito do filme, na verdade, fica por conta da brilhante Miranda Richardson, que interpreta uma terrorista do Exército Republicano Irlandês (IRA). O que seria uma relação apaixonada, entre um dos guerrilheiros e um cabeleireiro, serve como pano de fundo para uma trama ideologicamente reacionária. Deve ter agradado muito pouco aos guerrilheiros do IRA e, também, aos militantes de organizações de esquerda que conseguiram compreender o sentido da parábola do escorpião, que funciona como reflexão ética das atividades revolucionárias radicais, perfeitamente estendida a todas as outras que não indicam a mesma solução para os problemas das sociedades capitalistas. A homossexualidade retratada no filme foi alardeada pela Academia de Hollywood como sendo a grande questão da festa do Oscar. Vale a pena lembrar que na festa da premiação, o ator que interpreta o travesti esteve presente, mas só conseguiu entrar pela porta dos fundos e não pela principal, por onde todas as outras pessoas "normais" costumam entrar. Parece que em casa de ferreiro...
Os filmes citados estão longe de mostrar, em termos quantitativos, o volume de obras em que a homossexualidade é abordada. Os que retratam a homossexualidade feminina são muito difíceis de serem encontrados nas locadoras e muito mais difícil é encontrar aqueles que não relacionam a homossexualidade com algum desequilíbrio psíquico, como é o caso de O Silêncio dos Inocentes - um excelente duelo de titãs entre Antony Hopkins e Jodie Foster -, no qual um homossexual psicopata conduz a trama, ou Instinto Selvagem (com Sharon Stone e Michael Douglas), onde a lésbica mais dócil é uma serial killer. Com esse quadro, O Banquete de Casamento e Essa Estranha Atração despontam com uma positividade que começa a ser compreendida e absorvida por diretores e roteiristas. Lucram os "iguais" e, também os "diferentes".
WILLIAM AGUIAR é membro do Grupo de Gays e Lésbicas do PT. O texto acima foi originalmente publicado na revista Teoria&Debate nº 26 (set/out/nov 1994)
© 1994 – Editora Fundação Perseu Abramo
© 2005 – SOMBRAS ELÉTRICAS
in sombras elétricas
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