Bill Viola |
Uma fenda no mundo. Do espiritual na arte contemporânea (III)
Uma distância muito grande separa-nos dos povos primitivos. O nosso tempo cultural não pode esconder a sua base de incredulidade, ausência de sentido, a “filosofia materialista”, como lhe chamava Kandinsky. Esta diferença é incontornável: o sistema simbólico onde o artista se move desde o início do século XX é outro. E um marco teológico-filosófico-sociológico fundamental é a declaração da “morte de Deus”. Se no núcleo do pensamento moderno está a morte de deus, tinha que produzir consequências no campo da arte. Uma hora noturna: a nossa geração caminha na noite, escreveu Holderlin; assassinou Deus com as próprias mãos e apagou o horizonte – confirmou Nietzche. Martin Buber preferiu a expressão eclipse de Deus: uma escuridão momentânea. E esclarece: “um eclipse do sol é algo que tem lugar entre o sol e nossos olhos, não no sol mesmo.” (1).
Kandinsky, em 1910, afirmava profeticamente que o seu tempo, marcado pelo materialismo, pelo desespero e pela incredulidade, “prepara-se agora, (...), para mergulhar no vazio.” (2). Este mergulho no vazio, este encontro com o Nada, com a Noite do sentido e não apenas dos sentidos, é determinante para compreender a experiência estética contemporânea. Mergulhar no vazio é expressão niilista ou mística? Não há verdadeira oposição porque a experiência mística subsume, contém e ultrapassa, o niilismo. Nega-o dialecticamente: “o niilismo só se deixa contestar partindo do seu interior, somente das trevas da sexta-feira santa, onde Deus sofre e morre por amor ao mundo, é possível proclamar a vitória da vida e da beleza, porque aquela morte é a morte da morte.” (3). Percebe-se assim que não se chega à luz senão através das trevas, à vida senão através da morte, à fé senão através da dúvida e da prova do ateísmo.
O professor de Estética e Filosofia da Religião Amador Vega afirma mesmo ser necessário “compreender a negatividade na arte moderna como a expressão mais potente da experiência espiritual a que dá lugar a ausência da experiência religiosa.” (4). É sobre a negatividade que agora nos debruçaremos, na análise da obra de Fernando Calhau (1948), preocupada pela passagem do tempo e pela obscuridade.
O tempo e a serialidade. Logo nos primeiros trabalhos de Fernando Calhau encontramos séries de fotografias dos estratos sobrepostos das placas tectónicas, como a memória do mundo aí visível e nessa memória a da nossa própria memória e tempo. E noutras obras o que está em obra é o tempo passagem, o tempo suspenso, o tempo morte. Numa instalação de 1976 coloca lado a lado estas duas possibilidades: a imagem do mar em movimento (filme) e a imagem parada do mesmo mar (slide). E o sentido de estranheza é imenso: uma foi roubada ao tempo, está fora do tempo, e a outra mantém-se na continuidade ininterrupta da vida, na mudança permanente, em devir. A imagem fixa não é deste mundo. Coloca-nos fora: num tempo fora do tempo. Esta oposição do tempo finito e da infinita eternidade está também presente numa série de obras em chapa de ferro, marcado pela ferrugem e a passagem temporal, onde as junções ficam à vista rasgando uma linha vertical – que lembram a obra metafísica de Barnet Newman. Nessas placas de ferro de 1996, a meio, escreveu palavras em neon: Timeless. Dead end. Endless. (Sem tempo. Beco sem saída. Sem fim.). Também nas esculturas expostas na sua última exposição, com Rui Chafes, no Pavilhão Branco em Lisboa, sintomaticamente intitulada Um passo no escuro, essa tensão dos limites corporais-temporais era evidente: para além da palavraTime, setas em néon indicavam em caixas de ferro os limites do objeto, como os limites de um corpo. A fronteira, o fim. Calhau morreria pouco depois.
O negro e a obscuridade têm lugar cativo na obra deste artista: no filme Destruição, de 1975, apresenta um quase programa-resumo-semente da sua obra. Nele apaga-se: vemo-lo arrancar a imagem com se com um pincel cobrisse de negro o ecrã, até que o filme fica todo negro e ele escondido por detrás. Aqui, como em tantos dos seus trabalhos, afirma a recusa da imagem, da figuração, da ilusão. Nega-a. Nada para ver, nada por detrás. Ironia já presente numa série de serigrafias dos anos 70, onde a fotografia de uma ostensiva moldura barroca enquadra uma cruz, um xis, um nada, recusando assim a imagem devida à moldura. O vazio emoldurado.
(...)
Se Calhau problematiza a utilização da imagem, negando-a, o artista norte-americano da mesma geração, Bill Viola (1951), parece enaltece-la, interrogando-a nos seus excessos. Utilizando como meio a imagem em movimento (muitas vezes em câmara lenta, o que nos impõe outro modo temporal que não o da perceção humana habitual), Bill Viola, pioneiro da vídeo-arte, coloca na sua obra alguns dos problemas antropológicos anteriormente abordados: a relação que estabelecemos com o mundo e a sua perceção, o problema da morte e a sua articulação com a vida, a experiência de um tempo deslizante, automático e rápido que é necessário fazer parar.
As instalações e os vídeos de Viola apresentam um profundo manancial simbólico, a que não é estranho a formação budista do autor, o conhecimento da história das religiões e da arte e mística cristã – por isto tantas vezes é criticado por corresponder a uma certa formulação sincrética espiritualista de tipo New Age. A utilização da água e do fogo, a apresentação da morte e do nascimento, a relação entre a luz e as trevas. E nos últimos anos a referencia e citação de outras obras da arte cristã. Os títulos de algumas das suas obras são já reveladores dos seus interesses: “O quarto de S. João da Cruz”; “Passagem”; “A cidade dos homens”; “O portão dos anjos”; Santuário”; “Céu e terra”; “Rezar sem cessar”; “Pneuma”; “A saudação”; “O mensageiro” e mais recentemente a instalação “Cinco anjos para o milénio”. A propósito da relação das suas obras com a experiência religiosa afirmou: “julgo que a relação (...) tem a ver com um conhecimento, uma tomada de consciência ou reconhecimento que há qualquer coisa em cima, atrás, por baixo, do que está à frente dos nossos olhos, daquilo que a nossa vida diária foca. Há uma outra dimensão que sabes que está lá, que pode ser a fonte do conhecimento real, e a procura de me ligar com isso e identificá-lo é o ímpeto para fazer estas experiências e o meu trabalho.” (5).
Bill Viola explica que foi através das tradições orientais, hindu e budista, que descobriu as raízes místicas da sua própria tradição cristã: os padres do deserto, os gnósticos do cristianismo primitivo, Mestre Eckart, S. João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, e obras como A nuvem do não saber: exemplos da via negativa, apofática. E cita Mircea Eliade para lembrar que “o sagrado é uma parte da estrutura da consciência e não um estádio na evolução da consciência. Ou seja, não houve uma época em que as coisas eram mais espirituais do que hoje. (...) Vivemos numa época que não o reflete ou encoraja ou foca da maneira que outras culturas o fizeram no passado onde a religião era dominante. Mas não significa que não esteja lá.” (6)
Conclusão
Os caminhos da arte são múltiplos, e se podemos dizer que toda a obra de arte é espiritual porque resulta de uma ação espiritual, de um ato humano superior, procurámos investigar obras que abrem mundos ou fendem este. Que refletem sobre o segredo inviolável do real. E, nos poucos exemplos aqui apresentados, foi possível perceber como são tantas as possibilidades abertas neste último século: desde o regresso à renúncia primitiva – que nunca é um verdadeiro regresso, senão seria esvaziado de alma; passando pela atenção redentora ao quotidiano – experimentar a intensidade da vida nos gestos simples, nos objetos ou atos comuns; até à apresentação de uma arte apofática, que da negatividade faz caminho e não muro, aproximando alguns percursos artísticos contemporâneos da mística tradicional.
Há quase um século, Wassily Kandinsky, nosso guia nesta deambulação, escreveu que as boas obras “defendem a alma de toda a vulgaridade. Mantêm-na numa certa tonalidade, como o diapasão às cordas de um instrumento” (7) . Se o mundo quotidiano nos pode enquistar, tornar desafinados – para usar essa metáfora musical fundamental para o pintor russo e para a sua arte abstrata – a obra de arte deve esticar as cordas da alma para que o som correto, espiritual, se mantenha e nos mantenha. Afinar-nos, é esse o objetivo da arte.
(1) Martin Buber, Eclipse de Dios, México, FCE, 1993, p.48
(2) Kandinsky, Do espiritual..., p.22
(3) Bruno Forte, A porta da Beleza, p.69
(4) Amador Vega, Arte y Santidad. Cuatro lecciones de estéticapofática, Pamplona, Universidade Publica de Navarra, 2005, p.52
(5) Bill Viola in David Ross e Peter Sellars, Bill Viola, New York, Whitney Museum of American Art, 1998, p.143
(6) Ibidem, p.147
(7) Kandinsky, Do espiritual..., p.23
Paulo Pires do Vale
Comunicação na Semana de Estudos de Teologia, UCP, Lisboa, 2007
01.04.09
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