De que carne se fez Deus?
O que se comemora no Natal não é algo outro que não a humana e terrena consubstanciação do amor de Deus pelo mundo e pelos seres humanos na forma da carne. Repetimos, na forma da carne. O bebé Jesus não é um espírito com carne, um fantasma que se reveste de matéria, o bebé Cristo é carne. E por tal, rigorosamente por tal, é vida, a Vida.
O literal advento de Deus na forma da humana carne é o momento culminante do ser: não há ser mais perfeito do que este. Os anjos nunca tiveram um Deus que fizesse o equivalente a “incarnar” em forma de anjo. E os anjos, segundo o forte mito cristão, bem disso necessitam, pois é da sua estirpe o tentador. Mas não há incarnação do bebé Jesus para as criaturas-anjo em carne-de-anjo, pois esta última não existe.
Melhor, há uma incarnação, mas é no modo da colateralidade da assunção da plena forma humana: este ato, em humana carne, é dado ao todo do criado, mas é dado na forma precisa da carne. Não numa outra qualquer. Significativo. Porque não há uma outra qualquer. Só o ser humano possui carne.
Desta carne não se encontra no talho, salvo no talho da humana perversidade histórica, quando a carne humana sacrifica a carne humana. Como se fez ao menino Cristo em tempo pascal.
Mas a carne humana do menino já homem assim sacrificado, incarnando a morte, revisitou o mundo em que nascera, amara, fora morta.
Só há Páscoa como Segundo Natal. O Natal só termina, isto é, só começa na madrugada do retorno da carne ao mundo que a vira nascer, crescer – em sabedoria e graça – e morrer. Os Natais, Primeiro e Segundo, significam o nascimento, crescimento, morte e ressurreição da carne. Mas significam, sobretudo, que a carne, se morre, não é aniquilada: é Cristo-amor que desce aos infernos, não é um fantasma ou uma ideia de Cristo que o faz. Não há, nesta descida, um «que», há um «quem» e não há «quem» sem carne, não um «quem» humano, e Cristo é sempre plenamente humano ou não é Cristo.
É a carne de Cristo, que é o seu amor em forma humana – a carne de Cristo é a forma humana do seu amor –, que desce aos infernos; é ela que, é ele que, nela, ressuscita, trazendo as marcas da perversidade da morte, morte que a carne assume, transfigura, anula como ato retransfigurado, como marca incarnada da vitória da vida. A vida do ressuscitado assume e transporta consigo a morte, parte fundamental da vida. Só os mortos ressuscitam: é preciso morrer para que se possa ressuscitar.
Natal é a sagração, a eucaristização da carne. O espírito de Deus desprofaniza definitivamente a matéria. Uma vez incarnada por Deus, a matéria torna-se, toda ela, sagrada.
Não é, pois, na matéria que reside o mal do mundo. É na relação carnal do ser humano com ela.
Qual é a minha relação com a matéria?
Sigo o paradigma divino do menino-Deus, assim a santificando ato após ato? Ou sigo o paradigma da besta, assim a pervertendo, ato após ato?
Que mundo é o meu, o da sagrada carne de Jesus ou o do profano cadáver, não do que me transcende, mas de mim mesmo?
Neste Natal, escolha-se, sabendo que, desde há cerca de dois mil anos, não há já desculpa.
Bem-vinda Santa Carne!"
Américo Pereira, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
SNPC
Mas a carne humana do menino já homem assim sacrificado, incarnando a morte, revisitou o mundo em que nascera, amara, fora morta.
Só há Páscoa como Segundo Natal. O Natal só termina, isto é, só começa na madrugada do retorno da carne ao mundo que a vira nascer, crescer – em sabedoria e graça – e morrer. Os Natais, Primeiro e Segundo, significam o nascimento, crescimento, morte e ressurreição da carne. Mas significam, sobretudo, que a carne, se morre, não é aniquilada: é Cristo-amor que desce aos infernos, não é um fantasma ou uma ideia de Cristo que o faz. Não há, nesta descida, um «que», há um «quem» e não há «quem» sem carne, não um «quem» humano, e Cristo é sempre plenamente humano ou não é Cristo.
É a carne de Cristo, que é o seu amor em forma humana – a carne de Cristo é a forma humana do seu amor –, que desce aos infernos; é ela que, é ele que, nela, ressuscita, trazendo as marcas da perversidade da morte, morte que a carne assume, transfigura, anula como ato retransfigurado, como marca incarnada da vitória da vida. A vida do ressuscitado assume e transporta consigo a morte, parte fundamental da vida. Só os mortos ressuscitam: é preciso morrer para que se possa ressuscitar.
Natal é a sagração, a eucaristização da carne. O espírito de Deus desprofaniza definitivamente a matéria. Uma vez incarnada por Deus, a matéria torna-se, toda ela, sagrada.
Não é, pois, na matéria que reside o mal do mundo. É na relação carnal do ser humano com ela.
Qual é a minha relação com a matéria?
Sigo o paradigma divino do menino-Deus, assim a santificando ato após ato? Ou sigo o paradigma da besta, assim a pervertendo, ato após ato?
Que mundo é o meu, o da sagrada carne de Jesus ou o do profano cadáver, não do que me transcende, mas de mim mesmo?
Neste Natal, escolha-se, sabendo que, desde há cerca de dois mil anos, não há já desculpa.
Bem-vinda Santa Carne!"
Américo Pereira, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas
SNPC