Excerto de homilia sobre Oração e a relação com Deus
Hoje um dos temas das leituras que vamos proclamar é a oração. E a oração que nos diz que a nossa vida é uma vida escutada, o Senhor escuta-nos. Escuta o que dizemos e o que não dizemos, o que somos e o que não conseguimos ser, aquilo que são os nossos sonhos mas também as nossas dúvidas, as nossas hesitações. O Senhor escuta aquilo que nem lhe chegamos a dizer. (...)
Esta é, de facto, a grande força, a grande originalidade dos crentes. É que, para nós, (...) Deus é alguém, Deus é uma presença de amor. (...) E aquilo que nós podemos fazer é comunicar, é entrar em relação, é expormo-nos diante de Deus, é abrirmo-nos na nossa nudez, na nossa vulnerabilidade. É confiarmos tanto que nos entregamos no nosso estar, no nosso falar, no nosso calar, sentindo que Deus é o interlocutor privilegiado das nossas vidas.
O Senhor que criou o universo e os mundos, e o que vemos e o que não vemos, Ele é este “Tu” que eu posso invocar, que eu posso nomear. Por isso, fundamental na oração é o reconhecimento de que Deus é um parceiro da nossa vida, que Deus é um “Tu” a quem nos podemos dirigir. Mas, só há oração verdadeira quando também nós somos um “eu” e sentimos que a nossa vida é também a possibilidade de rezarmos, descobrirmos essa possibilidade dentro de nós.
Às vezes acontece que, sendo cristãos há muitas décadas, há muitos anos ou há pouco tempo, nós ainda não desenvolvemos em nós a capacidade de rezar, nós ainda não descobrimos que somos seres orantes, que temos em nós este dom maravilhoso que é de nos podermos abrir, nos podermos dizer, nos podermos expor em oração.
(...) A verdadeira oração nasce quando nós compreendemos isto: eu sou uma oração, a nossa vida é uma oração. (...) Porque a nossa vida (...) é um grito, é um apelo, é uma chamada, é um estar diante de Deus. Nós somos continuamente na sua presença, e por isso nós somos uma oração. (...) Antes de tudo, a nossa oração é esta tomada de consciência profunda de que nós estamos diante de Deus e do que isso significa. Porque a nossa vida toda é chamada a exprimir-se, a expressar-se com confiança diante de Deus.
E essa relação, que necessariamente é uma relação de amizade e de amor, que é uma relação de um filho para com o Pai, que é uma relação de criatura para com o Criador, que é uma relação de enamoramento, de confiança, que é uma relação fusional e ao mesmo tempo também uma relação na diferença, porque Deus é Deus e nós somos mulheres e homens, nós somos criaturas, é esta relação fulcral que é no fundo o mistério da oração.
(...) A primeira coisa é: antes de querer aprender orações, aprende que o rezar é respirar, aprende que o rezar é estares diante de Deus, é tomares consciência de que Deus está aqui. Ao longo do nosso dia nós podemos fazer momentos de oração em qualquer lado. O que é um momento de oração que nós construímos? É um momento mais agudo, mais intenso da nossa parte, um momento de consciência, uma tomada de consciência de que nós estamos perante Deus e nessa tomada de consciência há uma qualidade de relação, há uma qualidade de comunicação espiritual que se intensifica e que torna aquele momento um momento precioso, torna aquele momento um momento de comunicação. (...)
A verdadeira oração (...) é a oração que hipoteca todo o nosso ser. (...)
É claro, se nós vivermos com o nome de Jesus nos lábios, se nós vivermos a respirar o nome de Jesus isso transforma a nossa vida por completo, transforma-nos, só pode ser. Nós tornamo-nos uma cristofania, tornamo-nos uma manifestação de Cristo, porque Ele está sempre em nós, a oração é uma habitação. (...) Essa habitação não é habitar numa casa, é habitar no interior de uma relação. O Evangelho de S. João, por exemplo, explica a oração como um permanecer, é uma forma de permanecer. São tudo verbos que mostram o quê? Que a oração tem de ter uma continuidade, que a oração não são as fórmulas que nós dizemos. A oração é um estar, é a nossa vida ser aquilo, ser transformada por aquilo. (...)
Por isso, isto que diz Jesus: O que é a oração? A oração é rezar sem desanimar, oração é insistir na oração, oração é uma insistência com Deus. Quer dizer: a oração é a felicidade da repetição, a felicidade da repetição. Nós estarmos e voltarmos a estar, nós exprimirmos, nós cansarmos Deus com a nossa oração, nós cansarmo-nos a nós mesmos com a nossa oração.
(...) Não podemos fazer depender a oração das nossas sensações, se eu sinto oração, se eu não sinto oração, se eu sinto um eco, uma reverberação luminosa. Nós lemos o diário espiritual de Santa Teresa de Calcutá e ela diz que nunca sentiu nada, nunca sentiu nada. Nunca teve nenhuma experiência favorável, nunca sentiu o coração cheio, nunca sentiu a alma a transbordar de luz. Pelo contrário, seca, seca, seca como um carapau, seca, seca, seca; nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada. E às vezes a nossa oração é o nada, nada, nada, nada. Ou, como dizia Santa Teresa de Ávila, outra grande mestra da vida espiritual, ela dizia que rezou anos e anos e a oração sabia-lhe a palha – é como estar a comer palha.
(...) A oração é sobretudo uma prática e aí é que nós falhamos. Oração é concretizar oração, oração não é uma filosofia, oração é rezar. Por isso, vamos pedir ao Senhor que reze em nós e nos ajude a rezar. Nos ajude a rezar a nossa vida, nos ajude a rezar uns pelos outros, nos ajude a louvar.
Na nossa peregrinação a Assis eu fiquei muito impressionado quando me dei conta que, o Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, que é aquele poema maravilhoso: “Senhor, altíssimo sempre eterno, eu te dou graças pelo sol, eu te dou graças pelo calor, pela água…”, S. Francisco de Assis o escreveu enquanto enfermo e praticamente cego. Nós pensamos que uma pessoa que faz um elogio ao mundo, à beleza do mundo, à beleza da criação é um jovem, está apaixonado, está a agradecer tudo aquilo que ele vive. Não, Francisco de Assis estava cego, estava enfermo, estava a meses da sua morte quando escreveu este que é um testamento espiritual inacreditável. Isto também é alguma coisa que só a força da oração nos permite, que é no fundo uma grande liberdade face até aos contextos adversos e uma compreensão de que nada nos falta.
Às vezes andamos com carências enormes, com fomes, com necessidades imaginárias e reais, não importa, a oração enche o nosso coração. A experiência de oração é também a experiência de que nada nos falta e que o encantamento pela vida não depende de estarmos a viver tempos cor-de-rosa, S. Francisco já não via nada e ele via tudo.
Pe. José Tolentino Mendonça, Domingo XXIX do Tempo Comum
Ler na íntegra em Capela do Rato
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