Cito um texto do Pe. José Tolentino Mendonça como homenagem a este homem:
O VAZIO VERDE
Um dia, quando se fizer a história do catolicismo português que nos é agora contemporâneo, há-de ver-se, em toda a clareza, que um dos seus actores magistrais foi, afinal, um frade e poeta, quase clandestino, que morreu esta manhã em Lisboa. Chamava-se José Augusto Mourão, e pertencia à Ordem dos Dominicanos. Nasceu em Vila Real em 1947, e construiu uma inscrição absolutamente invulgar na universidade e na cultura portuguesas. Foi professor na Universidade Nova de Lisboa, especializando-se no campo da semiótica, e prestando uma contínua atenção a expressões de vanguarda que transformam os próprios dispositivos da criação (por exemplo, as mutações da literatura na época de cibernética ou as diversas formas de hipertextualidade ou de hiperficção que a nossa alta modernidade tem gerado). Aí deixa uma obra que, sob muitos aspectos, se pode considerar seminal e profética.
Mas ele transportou também o mesmo espírito de profecia para aquela que é a opera magna da sua existência: a impressionante ponte (apetece escrever a “impossível ponte”) que ele, quase marginalmente, desenha entre o campo da fé e o da razão, entre a liturgia e a poética, entre a regra e o desejo. Por alguma razão, ele nunca foi um criador confortável, nem para o campo católico, nem para os parâmetros da cultura dominante. Os ouvidos crentes só a custo se abriam, porque ele operava com uma gramática inusual e exigente, buscava metáforas vivas, que é como quem diz, novas metáforas. Do mesmo modo, ele nunca obteve a visibilidade que certamente merece da parte da cultura. A sua poesia é, por exemplo, litúrgica, coisa que, em Portugal, é imediatamente catalogada de género menor. E alguns dos seus textos mais fundamentais são homilias: ora, as últimas homilias que a cultura portuguesa ouviu foram as do Padre António Vieira! Talvez um dia se reconheça a originalidade e a marca deste homem e se possa então valorizar o que ele hoje nos deixa em herança. Para já sentimos o grande vazio que a sua morte representa, que, como aponta o título do seu primeiro livro de poemas, somos desafiados a viver como um “Vazio Verde”.
José Tolentino Mendonça
Sem comentários:
Enviar um comentário