"O cor-de-rosa pode ser uma cor igual às outras"
Reportagem de Fernanda Câncio a 15 de Abril de 2017
"Como se constrói, nas crianças de hoje, a identidade de género? Que está a educação a fazer pela igualdade e pela desconstrução dos papéis "tradicionais" de mulheres e homens? O que é que mudou e o que é que permanece na mesma? Há esperança? Perguntámos a quem sabe: cinco crianças de 9 anos e uma de 10 falam sobre o que é ser menina e o que é ser menino, brincadeiras e profissões, roupas e cores, direitos e deveres. Do que é e do que devia ser
"O melhor de ser rapaz é o futebol." É a primeira resposta que ocorre a Bernardo, 9 anos, cabelo alourado e rosto sorridente. Mas emenda logo de seguida: "Não é bem o futebol porque também há futebol feminino." Afinal, pensando bem, o melhor de ser rapaz é "não termos bebés na barriga e a saírem pelo pipi. E não termos de fazer chichi como uma bisnaga de água. Porque as raparigas fazem chichi como se tivessem uma bisnaga". Faz uma careta. "Fazer chichi em pé é muito melhor."
Concluindo: para o Bernardo o melhor de ser rapaz é não ser rapariga. E o melhor de ser rapariga será o quê? Reflete. "É ser vaidosa. E ser bonita." Um amigo de Bernardo, por sinal também chamado Bernardo, que veio ter com ele ao Jardim da Estrela nesta tarde quente de Primavera, ajuda: "É namorar e não chatear." Porque, explicam os dois, as raparigas da escola "às vezes correm atrás de nós e prendem-nos". E para quê? Risota: "Para nos beijarem." E eles, os rapazes, nunca perseguem as raparigas? "Sei lá. Sim. Gozamos que elas são feias."
"Não há nada bom em ser rapariga"
E como seria ter nascido rapariga, já imaginaram? Fazem cara de quem ficou perplexo: "Sei lá." Mas, se calhar por pensar assim pela primeira vez, o Bernardo louro (o outro é moreno) quer corrigir o que disse antes: "Não há nada de bom em ser rapariga." Até porque "o comportamento típico de rapariga é ser queixinhas, medricas. Ter medo de tudo". Esta visão tão negativa das raparigas convive, no entanto, com a ideia de que elas e eles "devem ter os mesmos direitos" e "não é justo os homens ganharem mais do que as mulheres pelo mesmo trabalho". E se não ganham o mesmo, decide o Bernardo louro, "a culpa é de quem manda, dos diretores, que são parvos". Nunca ouviram falar de um tempo em que as mulheres estavam impedidas de fazer os mesmos trabalhos que os homens, mas "só se foi", acham, "na ditadura." O Bernardo louro conclui: "Foi uma fase chata mas depois veio o 25 de Abril e foi bom." Questionados sobre o porquê de jamais terem visto em Portugal uma presidente da república ou uma primeira-ministra, refletem: "Não querem ser, com certeza. Deve ser por isso que não aparecem; já não é a ditadura."
Mas a igualdade afinal não é para tudo, e a injustiça de os homens ganharem mais pode ser naturalizada: "Quem toma mais conta dos filhos são as mulheres porque são os homens que trabalham mais e ganham mais dinheiro." Quanto a haver ainda países onde as mulheres são impedidas de fazer uma série de coisas, como por exemplo conduzir [caso da Arábia Saudita], "é normal porque são nabas", acha o Bernardo louro. "A minha mãe não presta a conduzir. Não sei porquê, as mulheres têm menos jeito." O Bernardo moreno, porém, discorda veementemente: "A minha mãe é boa condutora."
A dissensão desvanece-se na resposta à pergunta sacramental sobre o que projetam fazer quando crescidos: futebolistas. E quando deixarem de poder jogar futebol por já não serem jovens? O Bernardo louro matuta um minuto, contrariado com a ideia de que pode haver necessidade de encontrar outra ocupação: "Quando já não puder ser futebolista, cantor." Duas profissões que não antecipa para as meninas que conhece, que "gostam muito de tratar de animais". O que, aventa o Bernardo moreno, poderá indiciar um futuro como "tratadoras de golfinhos." Distinções entre os dois grupos que se reiteram nas brincadeiras habituais: "Elas gostam de barbies e assim, nós é a PlayStation."
"Algumas gostam de ser rapazes"
Mas há exceções, adverte o Bernardo moreno: "Algumas raparigas gostam de ser rapazes. Como a Matilde [uma colega da escola que, informa a mãe do Bernardo louro, é a melhor amiga do filho], por exemplo." E isso vê-se como? "Gosta muito de futebol. E está sempre connosco e sempre a portar-se mal como um rapaz." O que é portar-se mal "como um rapaz"? "Responde à professora, é mal-educada, bate em tudo e todos."
Se a rapariga que "gosta de ser rapaz" é descrita com admiração, de rapazes que "gostam de ser raparigas" não parece haver notícia. E os dois torcem o nariz à possibilidade de, por exemplo, usarem a cor conotada com elas: "Cor--de-rosa? Não gosto, não é de rapaz." A não ser que, acrescenta o Bernardo louro, se trate de chuteiras. Quer muito umas rosa, como as que viu "no Ronaldo, no Rui Patrício e no Di María". Mas "se a minha mãe aparecesse com uma T-shirt cor-de-rosa eu não usava, claro que não. Porque é de rapariga." Como é que o cor-de-rosa passa de desejado a odiado consoante nos pés ou no tronco, não explica. Mas se calhar é questão de Cristiano Ronaldo aparecer com uma camisola dessa cor e passará a ser um must. Afinal, assevera Lara, a mãe do Bernardo Louro, ele já lhe pediu brincos de mola para levar para a escola, para imitar os seus futebolistas e cantores favoritos, e até já apareceu em casa várias vezes de unhas pintadas. "São as miúdas na escola que lhe pintam as unhas, e ele anda todo contente. Também já me apareceu com eyeliner, rímel..." Ri-se. "Tínhamos medo do que poderia suceder quando levou os brincos, mas disse-nos que os outros miúdos tinham dito que estava muito fixe." Houve algumas reações menos simpáticas - de adultos. "O professor de ginástica perguntou: "Mas agora és paneleiro?"", conta Rodrigo, o padrasto de Bernardo. "E no clube onde ele anda no futebol", acrescenta Lara, "disseram qualquer coisa das unhas também."
O remoque do professor não passou em claro: Rodrigo foi à escola falar com a diretora. "Mas ela disse que não acreditava que o professor tivesse dito aquilo, ou então que se o disse foi na brincadeira." Encolhe os ombros. "Na brincadeira?! Como se aquilo fosse uma brincadeira aceitável. Claro que o professor nunca iria admitir que disse uma tal enormidade." Rodrigo e Lara, ele radialista, 34 anos, e ela empresária, de 32, suspiram. A atitude descontraída em relação aos estereótipos de género é identificável no filho de ambos, um bebé de 2 anos cujo cabelo, preso no alto da cabeça num totó, leva a repórter a provar a renitência dos ditos estereótipos: "É uma menina, não é?" Lara sorri, como quem já se deparou muitas vezes com a confusão: "Não, é o Tristão."
Rodrigo esteve, com Lara, presente durante a conversa com os Bernardos, sempre calado e sem qualquer reação, enquanto dava o lanche a Tristão. Agora que o enteado foi brincar no parque com o amigo, comenta o que ouviu. "Estava com curiosidade de saber o que ele ia dizer. Porque sei que aquilo que nós tentamos passar-lhe em casa é uma coisa, aquilo que ele apanha de outras influências é outra. E o pai dele tem uma visão muito rígida, já aconteceram algumas coisas chatas." Lara dá um exemplo: "Uma vez cortámos-lhe o cabelo um pouco mais curto dos lados e maior em cima, como usa o Ronaldo. Ele estava muito contente, mas quando foi para o pai voltou com o cabelo todo rapado." E, acrescenta Rodrigo, "o Bernardo tem Instagram. É muito fechado e controlado mas, claro, o pai tem acesso e um dia destes o miúdo pôs lá uma foto com as unhas pintadas e comentou: "Só espero que o pai não repare nas unhas." Faz-me lembrar um dia, quando eu era miúdo, em que me disseram: "Larga a Barbie que o teu pai está a chegar." Estava a brincar com a Barbie de outra criança e havia o medo em relação à forma como o meu pai reagiria se me apanhasse com a boneca. É ridículo que passado este tempo todo ainda haja tanta gente a pensar assim."
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