Texto escrito a convite de Ricardo Passos para o seu livro "Love Box - A Sagração do Profano"
Os homossexuais não são indiferentes à ideia do Amor: também eles o concebem, experimentam, desejam e vivem. Se para alguns esta afirmação não traz nada de novo, para outros é polémica e provocadora. Poderia falar de muitos países e culturas que, nos dias de hoje, continuam a ignorar os direitos universais do ser humano ao torturar, criminalizar, perseguir e matar homens e mulheres pelo simples facto de serem homossexuais. Mas, mesmo em sociedades que fizeram avanços em questões de igualdade de tratamento, reconhecimento, legislação e defesa dos direitos de pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, trans ou intersexuais), o preconceito, a discriminação e o desconhecimento – para não dizer ignorância – estão longe da extinção (tal como a abolição da escravatura não erradicou o racismo e a xenofobia e as leis de igualdade de género não fizeram desaparecer o sexismo e o machismo da sociedade).
Em 2010 saiu na revista do jornal Público uma reportagem de Alexandra Lucas Coelho sobre uma realidade pouco conhecida e pouco falada em Portugal: os cristãos praticantes que são homossexuais. Um homossexual cristão vive neste ingrato limbo de ser considerado “bastardo” ou “profano” tanto pela Igreja como pela comunidade homossexual: na subcultura gay é visto como incompreensível, bizarro e incompatível que se possa ser crente, no meio eclesial católico (e no de outras confissões cristãs) é inaceitável e inconcebível que alguém se assuma e “viva como” gay.
Com vista a preparar esse trabalho a jornalista quis entrevistar-me. O contacto foi feito através de uma amiga que, conhecendo a minha condição homossexual, sabia que eu não abandonara a fé e a participação na vida da Igreja, nomeadamente num grupo de reflexão formado por gays cristãos. Ao ser entrevistado pela Alexandra apercebi-me que era urgente deixar uma porta aberta para homossexuais que viessem a ler a reportagem e, sendo cristãos, não tivessem a “sorte” de terem percorrido – ou encontrado alguém que os ajudasse a percorrer – um caminho de fé onde as dimensões da sua sexualidade e afectividade fossem bem integradas. Decidi então criar o blogue “Moradas de Deus”, que tem como subtítulo “um blogue para cristãos homossexuais que não desistiram de ser Igreja”. Os leitores podem aqui encontrar informação, ferramentas, e publicações relativas a uma questão que, apesar de ser muito pessoal, tem repercussões sociais e gera grande sofrimento e isolamento em muitos e muitas dos que vivem esta dupla condição de ser homossexual e crente.
Como chegar a este ponto de pacificação em que deixa de haver um combate constante e uma medição de forças entre consciência e razão? O que hoje é claro para mim, nem sempre o foi. Todos já teremos ouvido a frase “Ama a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo”. Foi Jesus quem resumiu nesta frase os mandamentos do Antigo Testamento, espelhando nesta forma tão “destilada” uma métrica pela qual a vida de qualquer cristão se deve reger. Mas amar ao próximo como a nós mesmos pressupõe que nos amemos a nós mesmos... Quanta gente vive esta angústia de não se amar a si mesmo?
Na minha experiência, a interiorização deste “ama ao outro como a ti mesmo” começou por uma descoberta simétrica: “ama-te a ti mesmo como amas ao outro”. Posso assumir que o meu caminho de auto-aceitação e de descoberta do auto-amor começou muito naturalmente pela aceitação dos outros, do Outro, da sua diversidade e da sua particularidade. Quando, na vida quotidiana, se vai “trabalhando” a receptividade face ao Outro, aceitando-O como é – abdicando de desejar que seja como nós queremos – a aceitação das suas características (aquilo que lhe é característico) torna-se evidente e natural. A homossexualidade será apenas uma das muitas características dessa pessoa.
Para um homossexual, amar-se a si mesmo passa invariavelmente pela aceitação da sua própria condição homossexual ou homoafectiva que, idealmente, o leva a viver a sua sexualidade de uma forma mais integrada e saudável – deixa de viver em negação ou reprimido, dominado pelo medo, sentimento de culpa ou vergonha. A aceitação da minha própria homossexualidade foi um percurso longo e menos evidente do que a aceitação da homossexualidade nos outros. Passou pela aceitação da minha totalidade, como um Ser totalmente criado e amado por Deus – se Deus é criador e me ama, não terá criado nem escolhido amar apenas uma parte “conveniente” de mim. Ocorreu uma espécie de “conversão”: outrora o meu amor por Deus surgia ainda toldado e limitado pelo receio e por escrúpulos, agora manifesta-se no próprio acolhimento e descoberta do Seu amor incondicional, completo, inclusivo e libertador. Foi fazer a transição entre um conceito fundado na minha própria capacidade ou incapacidade, força de vontade, fraqueza e estoicidade – uma atitude que, contrariamente ao que seria expectável, era pouco receptiva à Graça e à transcendência de Deus – e uma abertura radical a este amor gratuito e generoso de Deus. Um amor completo, fecundo e pleno, que sacia, sem condições, um amor por tudo aquilo que eu sou – alma, espírito, razão, sensibilidade, afectividade, corpo, sexualidade... Um amor que se incarna em mim, que não aprisiona, que me deixa voar, que quer que eu seja. Compreender este amor de Deus, levou-me a tentar amar-me como sou e não como idealizava ser, permitiu-me passar do plano das ideias e dos ideais para o plano da realidade. Saber que sou amado por Deus torna-me, assim, mais real. E este amor torna-me livre.
Muitas vezes, nesta etapa do caminho do auto-reconhecimento, um homossexual cristão depara-se com uma realidade visível da Igreja que não corresponde exactamente à sua vocação primordial de Mãe que congrega, ama e acolhe. O discurso mais oficial da Igreja é omisso, moralista, obcecado pelo carácter genital do acto sexual e alheado da riqueza da afectividade, do cultivo de um amor e da construção de uma vida em comum entre duas pessoas homossexuais. A voz da Igreja que mais se faz ouvir soa a inflexível, desrespeitadora, castradora e arrogante. E é aqui que um homossexual cristão se vê a repensar a pertinência de permanecer na Igreja. Muitos decidem então afastar-se, por sentirem que não são integralmente amados, queridos, estimados, escutados, apoiados, incluídos e acolhidos.
No meu caso nunca pesei seriamente esta questão. Sou crente e valorizo ter sido dotado de inteligência e de sentido crítico: procuro viver de forma esclarecida e consequente. Há muito que compreendi que a minha maior responsabilidade não é estar na Igreja, é ser Igreja. Eu preciso tanto da Igreja quanto ela precisa de mim, de todas as minhas características, dons e talentos. Sem mim a Igreja ficaria mais pobre, menos criativa, menos solidária, menos alegre, menos cultural, menos sensível, menos activa, menos inquieta, menos curiosa, menos exigente, menos aberta, menos acolhedora, menos artística, menos comunicativa, menos contemplativa, menos prática, menos gay... Faço falta à Igreja e, felizmente, vou tendo confirmações disso.
Em Portugal há padres e freiras que acompanham pessoas homossexuais cristãs. Enquanto os documentos oficiais da Igreja vão a passo de caracol, vão-se multiplicando as intervenções de figuras da hierarquia e de teólogos que incitam a uma urgência, seriedade e aprofundamento na reflexão sobre estas matérias. Termino com a tradução de alguns parágrafos da página de Internet da arquidiocese de Los Angeles, que me parecem ser uma lufada de ar fresco ao abandonarem o tom moralista do discurso da Igreja – que subestima e profana a dignidade dos cristãos homossexuais e a sacralidade do seu amor:
“Dentro da nossa Comunidade Católica existem muitas pessoas que são gays e lésbicas […] A Igreja ensina que uma orientação lésbica ou gay, por si só, não é pecado. Qualquer católico(a) que descobre que é lésbica ou gay continua a ser membro da Igreja e é chamado a participar na vida paroquial como qualquer outro católico. A pessoa que é gay ou lésbica não é menos que outro membro da Igreja e é chamado(a) a participar nas alegrias, dificuldades e desafios dos ensinamentos católicos sobre a sexualidade humana. A Igreja lamenta os distanciamentos e afastamentos que lésbicas e homossexuais experimentaram. O nosso ministério procura “aliviar” mal-entendidos ou diferenças e procura construir uma ponte de entendimento e de apoio para lésbicas e gays, suas famílias e seus amigos. […] Respeitaremos os seus direitos de privacidade e acolhê-lo(a)-emos como acolheríamos a Cristo.”
Rio Azur, autor do blogue Moradas de Deus
Sem comentários:
Enviar um comentário