Por António Marujo, 1 de Setembro de 2012
O cardeal Carlo Maria Martini, o ex-arcebispo de Milão que durante vários anos foi um dos nomes mais fortes como "candidato" à sucessão de João Paulo II e que morreu esta sexta-feira, disse na sua última entrevista que a Igreja Católica está "200 anos atrasada" em relação ao tempo presente.
A edição deste sábado do jornal Corriere della Sera divulga aquela que foi a última entrevista do cardeal, que há dez anos sofria de Parkinson. Na conversa, gravada no mês de Agosto, o cardeal diz que "a Igreja está cansada... e os nossos lugares de oração estão vazios". E acrescenta, de acordo com a BBC, que a Igreja deve reconhecer os seus erros e escolher um caminho de mudança, a começar pelo Papa.
Martini morreu esta sexta-feira ao princípio da tarde, horas depois de a diocese de Milão ter anunciado o agravamento do seu estado de saúde. Foi o actual arcebispo de Milão, o cardeal Angelo Scola, quem deu a notícia da morte do eminente intelectual e especialista da Bíblia, que defendia uma atitude da Igreja mais aberta e compreensiva do mundo contemporâneo.
O cardeal escreveu dezenas de livros e textos, traduzidos em muitas línguas (vários deles em português), entre os quais "Em Que Crê Quem Não Crê" (ed. Gráfica de Coimbra), um diálogo com o filósofo Umberto Eco. Num dos últimos, "Colóquios Nocturnos em Jerusalém" (ed. Gráfica de Coimbra), diz: “"Sim, desejo uma Igreja aberta, uma Igreja cujas portas estejam abertas à juventude, uma Igreja com horizontes vastos. A Igreja não se tornará atraente por adaptações ou por ofertas tíbias. Eu confio na palavra radical de Jesus, nessa palavra que temos que traduzir para o nosso mundo como ajuda para a vida, como Boa Nova que Jesus quer trazer."
Na entrevista publicada pelo Corriere della Sera, Martini – cujo funeral se realiza segunda-feira – dizia, referindo-se ao catolicismo: "A nossa cultura envelheceu, as nossas igrejas são grandes e estão vazias e a burocracia aumenta, os nossos ritos religiosos e as vestes que usamos são pomposos."
Apesar de ter sido sempre crítico de várias posições oficiais da Igreja, Martini era muito respeitado na instituição católica. A sua inteligência e brilhantismo, a que aliava a forma subtil de manifestar as suas posições, não seriam estranhos a esse facto. Quer João Paulo II, que o nomeou para Milão em 1980, quer o actual Papa, com quem se encontrou em Junho, sempre confessaram a sua admiração pelo cardeal.
A Rádio Vaticana, conta a agência Ecclesia, recordou esse último encontro entre o Papa e o seu "amigo jesuíta" – Martini integrava esta ordem. O cardeal admitiu, já nessa altura, que se vive "um momento muito difícil para a Igreja".
Nesta manhã de sábado, Bento XVI enviou um telegrama ao cardeal Scola, manifestando a sua tristeza pela notícia da morte e acrescentando que Martini realizou um "competente e fervoroso serviço" à divulgação da Bíblia, "abrindo cada vez mais a comunidade eclesial aos tesouros da Sagrada Escritura".
Afastamento das pessoas
Outra das críticas que Martini fazia era a aspectos da encíclica Humanae Vitae, sobre a regulação dos nascimentos, na qual se fixa a ideia de que a Igreja não admite o uso do preservativo. Esse documento, de Julho de 1968, levara "ao afastamento de muitas pessoas", dizia Martini, que defendia que o preservativo pode ser usado como um "mal menor".
Na entrevista agora publicada pelo jornal italiano, dada a um padre jesuíta, o cardeal disse ainda que, a menos que a Igreja adopte uma atitude mais acolhedora em relação às pessoas divorciadas, ela perderá as futuras gerações. A questão, acrescentava ainda, segundo a BBC, não é se os casais divorciados podem receber a comunhão na missa, mas como é que a Igreja pode ajudar as pessoas em situações familiares complexas.
Desde a manhã de hoje, milhares de pessoas passam diante do corpo do cardeal, na catedral de Milão, onde Martini foi arcebispo mais de duas décadas.
No seu último livro, sobre a figura do bispo, o cardeal diz que aquele deve ser antes de mais "íntegro, honesto, leal, capaz de não mentir nunca, paciente, misericordioso, pronto a oferecer esperança a quem sofre, mas, acima de tudo, um homem verdadeiro, capaz de ouvir a todos, mesmo não crentes, separados, divorciados e homossexuais".
O bispo, acrescenta ainda, deve estar "atento aos pobres, aos encarcerados, aos doentes, aos estrangeiros", mas também a quem é obrigado a viver fora da Igreja "como os separados, os divorciados e os homossexuais". Citado pelo La Repubblica, o cardeal acrescenta no livro: "Mesmo salvaguardando o princípio de que o matrimónio é único e indissolúvel, muitos separados e divorciados têm um novo companheiro e uma nova família com filhos. Eles devem ser ouvidos, merecem atenção, porque é como estar diante dos náufragos aos quais é preciso fazer todo o possível para que não se afoguem."
Acolhimento de homossexuais
A AFP recorda outras posições de Carlo Maria Martini, como a denúncia da "tentação" de alguns católicos em refugiar-se em novos movimentos católicos que se tomam como "valor absoluto", transformando-os em "verdadeiras ideologias".
O cardeal Martini considerava "desejável" uma "evolução" em relação ao celibato dos padres, sem que a Igreja Católica tivesse de renunciar completamente a essa disciplina. Martini foi também dos primeiros a falar da importância de um novo concílio – a magna assembleia de todos os bispos do mundo. Martini considerava que o Vaticano II, cujos 50 anos se completam este ano, estava já ultrapassado em vários aspectos.
A falta "dramática" de padres, o papel da mulher na Igreja e na sociedade, a sexualidade, as relações com os ortodoxos e o ecumenismo em geral, bem como a relação entre a democracia e as leis morais, eram temas para os quais Martini propunha novas abordagens da Igreja e a necessidade de debate num novo concílio.
Nascido em Turim, em 15 de Fevereiro de 1927, Carlo Martini era membro da Companhia de Jesus. Biblista de formação, foi designado pelo Papa Paulo VI como reitor do Instituto Bíblico, onde esteve até 1978. Desempenhou depois as mesmas funções na Universidade Pontifícia Gregoriana, até ser momeado arcebispo de Milão, a maior diocese da Europa, onde esteve durante 22 anos. Entre 1986 e 1993, foi também presidente do Conselho das Conferências Episcopais da Europa. Em 2000, recebeu o prémio Príncipe das Astúrias em Ciências Sociais.
Em Milão, entre muitas outras coisas, incentivou iniciativas de diálogo com não-crentes e de acolhimento de homossexuais. Em 2002, quando completou 75 anos e deixou a diocese, foi viver para Jerusalém. Acabou por voltar a Milão em 2008, por causa do agravamento das suas condições de saúde.
Um padre idoso citado pela AFP mas que quis manter o anonimato, anunciara também a morte de Martini aos jornalistas diante da casa dos jesuítas onde o cardeal residia, afirmando: "Era um grande homem, um grande erudito que nos deixou muitos ensinamentos e um homem de Deus."
In Público
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