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A diversidade na Igreja

"A casa do meu Pai tem muitas moradas", diz-nos Jesus no evangelho.

A unidade na diversidade não é sempre aparente na Igreja enquanto povo de Deus, mas é uma realidade em Deus e uma presença na fé cristã desde a sua origem. A Palavra de Deus não é partidária, elitista e exclusiva. O Reino de Deus é como uma árvore que estende os ramos para dar abrigo a todos os pássaros do céu. Cristo não morreu na cruz para salvar uma mão cheia de cristãos. Até o Deus Uno encerra em si o mistério de uma Trindade.

A Palavra de Deus é inequívoca e só pode levar à desinstalação, à abertura ao outro, e a recebê-lo e amá-lo enquanto irmão ou irmã. Ninguém fica de fora, nem mesmo - se tivessemos - os inimigos.

Muitos cristãos crêem nesta Igreja, nesta casa do Pai, corpo de Cristo, templo do Espírito Santo. Mas como esquecer que muitos se sentem "de fora" por se verem rejeitados, amputados e anulados, e afastam-se por ninguém lhes ter mostrado que há um lugar para cada um, com a totalidade do seu ser?

Um blogue para cristãos homossexuais que não desistiram de ser Igreja

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Este blogue é a partilha de uma vida de fé e é uma porta aberta para quem nela quiser entrar. É um convite para que não desistas: há homossexuais cristãos que não querem recusar nem a sua fé nem a sua sexualidade. É uma confirmação, por experiência vivida, que há um lugar para ti na Igreja. Aceita o desafio de o encontrares!

Este blogue também é teu, e de quem conheças que possa viver na carne sentimentos contraditórios de questões ligadas à fé e à orientação sexual. És benvindo se, mesmo não sendo o teu caso, conheces alguém que viva esta situação ou és um cristão que deseja uma Igreja mais acolhedora onde caiba a reflexão sobre esta e outras realidades.

Partilha, pergunta, propõe: este blogue existe para dar voz a quem normalmente está invisível ou mudo na Igreja, para quem se sente só, diferente e excluído. Este blogue não pretende mudar as mentalidades e as tradições com grande aparato, mas já não seria pouco se pudesse revelar um pouco do insondável Amor de Deus ou se ajudasse alguém a reconciliar-se consigo em Deus.

domingo, 1 de abril de 2012

Comparação e imitação: o perigo de seguir um modelo

Viver sem se comparar

Para falar, o homem usa comparações. Não são elas essenciais à descoberta e à expressão da verdade? O próprio Cristo age assim quando quer «revelar» coisas escondidas desde a fundação do mundo. «Com que hei-de comparar o Reino dos céus…?» E Santo Inácio, para que se torne visível o que é invisível, propõe à pessoa que está a fazer retiro uma «composição de lugar» que é uma verdadeira «comparação corporal»!

Contudo, se tem de comparar, o homem deve reconhecer que comparar-se é entrar no jogo mortal da rivalidade e da inveja. Para nos encontrarmos a nós mesmos, devemos renunciar a todo o modelo, isto é, num primeiro sentido: «aquilo que se reproduz por imitação. Latim: “modulus” medida… por analogia pessoa, objecto… que merecem ser imitados.» (Grand Larousse encyclopédique de 1963).

A imitação é um conceito que, para ser bem compreendido e vivido, deve ser convertido, sobretudo quando se trata «de imitar Jesus-Cristo». Seguir Jesus-Cristo é passar para além do mimetismo para deixar viver o desejo. Quando Cristo nos diz: «Amai-vos como eu vos amei», o como é analógico, respeita a diferença; segundo bons exegetas, dever-se-ia traduzi-lo «segundo a medida do meu amor». E cada um segundo a medida da sua graça! Com efeito, Cristo é único e inimitável. Aliás, há vários «modelos» no Evangelho. Qual escolher? O da Galileia ou o de Jerusalém? Temos opção?

Paradoxalmente é renunciando a toda a imagem imitável, mesmo à de Jesus Cristo, que nos tornaremos nós próprios, e conseguiremos assemelhar-nos àquele cuja imagem somos chamados a reproduzir (Romanos 8, 29). (…)

Assim, sem sacralizar nenhuma via, mesmo que ela seja excelente, chegaremos àquela que as «ultrapassa a todas»: a via do amor verdadeiro.

«Senhor, e que vai ser deste…?
Se eu quiser… que tens tu com isso? Tu, segue-me!» (João 21, 21-22)

[Editorial do n.º 133 Janeiro de 1987 da revista CHRISTUS]

Imitar e seguir

No filme Viridiana, de Buñuel, uma jovem noviça é levada, por razões de família, a deixar o convento. Depois da sua saída, tenta imitar com exactidão no mundo aquilo que ela tinha ouvido e aprendido no convento da vida exemplar de Jesus. Reúne mendigos à volta dela, dá-lhes de comer e quereria fazer deles um grupo de devotos. Contudo, a «santa empresa» falha e provoca precisamente o contrário daquilo que a jovem mulher se propunha. Produz-se uma explosão de violência à qual a própria benfeitora escapa a muito custo.

A questão posta por este filme de Buñuel não é artificial; uma observação atenta descobre alguma coisa análoga na vida dos santos. Antes da sua conversão, Inácio de Loyola era um cavaleiro ambicioso e um soldado. Ferido em combate, entusiasmou-se, sob a influência de uma vida dos santos, por um ideal novo, e pôs-se a copiar, a partir do exterior, o género de vida de São Francisco e de São Domingos, e tentou mesmo superá-los aos dois por meio do rigor das mortificações corporais. Tudo correu bem durante alguns meses, depois desencadeou-se uma crise que o mergulhou numa perturbação profunda e que cresceu até à tentação do suicídio. A imitação de um ideal a partir do exterior tinha resultado muito rapidamente nele numa auto-agressão maciça. Não foi senão graças a um claro discernimento dos efeitos devastadores do seu zelo cego e a uma nova experiência do Espírito que ele foi libertado desse estado insuportável e perigoso. Por esta reviravolta da sua maneira de pensar (espécie de «segunda conversão»), Inácio aprendeu a distinguir entre imitar a partir do exterior e seguir segundo a condução do Espírito. Mais tarde, ele devia desenvolver o método dos Exercícios a partir desta visão central.

O mecanismo da imitação

René Girard analisou minuciosamente, utilizando grandes romances da literatura universal, a relação que existe entre a imitação/mimésis e a agressão. Ele mostra, com o testemunho dos grandes escritores, que os homens não se bastam a si próprios, aspiram a realizar-se mais e imitam desejos que lhes são alheios, porque eles próprios não sabem o que poderia dar-lhes a felicidade ardentemente desejada. Todas as espécies de modelos fascinantes podem suscitar a imitação, mas ela nasce, no fim de contas – antes de todo o julgamento e de toda a comparação – de uma «imediatidade quase-osmótica»[1] com essa imagem ideal que entra por acaso numa vida. Como este desejo é uma cópia de um desejo alheio, ele é espontaneamente dirigido para o bem que o modelo já procura alcançar. Se o bem for limitado, o conflito é inevitável porque dois desejantes não podem possuir o bem de uma maneira igual. Tal é a origem da célebre estrutura triangular do desejo que desempenha um papel determinante não só nas relações eróticas mas também na luta pelo poder e mesmo em todo o lugar em que se trate de influência e de relações.

As análises de Girard permitem compreender que da admiração, e mesmo da união «quase-osmótica» com um ideal, podem nascer espontaneamente conflitos e rivalidades, sem que uma intenção consciente perversa ou uma agressão congénita devam entrar necessariamente em jogo. A imitação fundada na admiração leva à rivalidade pelo seu dinamismo próprio. Estas mesmas análises mostram além disso que a continuação do conflito é determinada pela mimésis porque a hostilidade incipiente leva também à imitação. Assim a rivalidade pode facilmente crescer até à agressão consumada e à violência. Nesta questão, representações abstractas e ideias estranhas à vida desempenham também frequentemente um papel de modelos. Por exemplo, o Dom Quixote de Cervantes tinha perante o seu olhar interior, em todas as suas acções, o rei Artur dos romances de cavalaria. Esta imitação, a bem dizer, não o desviava para a violência física, porque o seu modelo/adversário (o rei Artur) estava demasiado distante e era absolutamente impossível combatê-lo fisicamente uma vez que ele não existia senão nos livros; mas Dom Quixote movia-se num mundo irreal e ele foi levado a lutar contra moinhos de vento.

Girard analisa também, em relação com a mimésis, os problemas da auto-agressão. Um modelo que sente que um desejo admirador e imitador aspira à mesma coisa que ele, adopta habitualmente uma conduta hostil a seu respeito. Normalmente, ele não fica apesar disso menos um modelo. É por isso que a sua tendência agressiva contra o «discípulo» é copiada também por este. Deste modo o imitador – numa união «quase-osmótica» com o seu modelo que se vira contra ele - é levado a «lutar» contra si mesmo. Fenómenos tais como o sadismo e o masoquismo podem encontrar assim uma explicação elucidativa.[2]

Estas análises da mimésis tornam muito explícitas as primeiras experiências religiosas de Inácio, porque o cavaleiro basco, depois da sua conversão, parece ter-se extraviado de duas maneiras no mecanismo da imitação. Por um lado, ele imitava os aspectos exteriores austeros do género de vida e as mortificações corporais dos santos que lhe tinham surgido como modelos novos e ele punha-se a tratar duramente o seu próprio corpo. Por outro lado, o velho ideal cavaleiresco, segundo o qual é preciso «superar» e «suplantar» os outros, continuava a actuar nele. Por isso é que ele queria fazer ainda mais do que os seus modelos novos e as suas rudes mortificações corporais. Deste modo ele foi arrastado para uma dupla dureza e «agressão» contra si próprio, e teve de experimentar que, no fim de contas, crescia nele a tentação do suicídio.

O mecanismo da mimésis ajuda a compreender de uma maneira nova tanto os personagens de romances como muitas experiências tiradas das vidas dos santos. Poder-se-ia ilustrar também a sua importância considerável com exemplos triviais como os da publicidade televisiva, porque esta publicidade não elogia, em geral, produtos isolados de todo o contexto, mas mostra pessoas sedutoras que desempenham a função de modelos e possuem o produto em questão. Deste modo é suscitado no telespectador o desejo secreto de ter o mesmo objecto. Os especialistas da publicidade parecem portanto ter descoberto instintivamente esta lei da mimésis da qual Girard fez uma análise sistemática. Mas, para o nosso tema, o que é mais significativo é que, graças a uma inteligência mais penetrante do mecanismo da mimésis, textos bíblicos capitais se tornam mais eloquentes.

A via de Cristo e a imitação

«O Reino de Deus está próximo.» Jesus inaugura a sua vida pública com esta mensagem. Antes de tentar converter os homens a um comportamento novo, indica-lhes um bem novo, o Deus próximo, capaz de satisfazer completamente a sua aspiração mais profunda e que não provoca nenhuma rivalidade, porque Ele está pronto a dar-se a todos sem limite. Os homens, no fundo do seu coração, não têm de se colocar sob uma lei nova ou sob um modelo novo, mas de perceber uma realidade nova, de se deixarem abrir a ela e determinar por ela. Jesus proclamava que o Pai celeste era um Deus intimamente próximo dos homens e que se interessava pelos pecadores com amor. Para poder reconhecer neste «Pai» o verdadeiro Deus, é preciso seguramente romper com a atracção instintiva dos modelos terrestres.

É por isso que Jesus, pela sua mensagem do poder de Deus muito próximo, exigia também aos homens uma transmutação radical daquilo que é considerado como um modelo segundo os olhos do mundo (Bem-aventuranças). Face aos ricos ele coloca os pobres, face àqueles que riem os que choram, face aos guerreiros e aos combatentes vitoriosos os mansos e os artífices da paz. No lugar dos que o mundo admira instintivamente, ele elogia os homens normalmente considerados sem valor. Deste modo ele tenta abrir para novas experiências e dar novas possibilidades de vida.

No Antigo Testamento fazia autoridade o princípio «olho por olho, dente por dente» (Êxodo 21, 24). Não era um princípio de dureza cruel como frequentemente o pensam, mas uma máxima de moderação sensata num mundo de pecado. Com efeito, os homens tendem por si mesmos para represálias sem limites, como bem o mostra o Génesis com as personagens de Caim e de Lamec que tinham por princípio vingar-se sete vezes, até setenta vezes sete (Génesis 4, 23). Jesus não se afastava somente de Caim e de Lamec; pela sua mensagem ele visava mesmo mais do que a lei das represálias únicas e comedidas, e atacava assim o mecanismo da mimésis. Com efeito, aí onde segundo o princípio «olho por olho, dente por dente» se responde a uma má acção com uma retaliação proporcionada, aí reina a imitação que, por si – apesar da tentativa de sábia moderação -, não tem fim, estando cada um persuadido de que não foi ele quem começou com o mal, mas que ele deve apenas «exercer represálias» contra uma anterior má acção do seu adversário. A escalada no mal não pode pois ser superada na raiz senão se o mecanismo da imitação for revelado e se resistirmos desde o início à sua secreta atracção.

É justamente o que Jesus pede com esta palavra decisiva: «Não oponhais resistência ao mau» (Mateus 5, 39). Com isso Ele não queria de maneira nenhuma incitar a entregar-se passivamente ao malvado visto que Ele mesmo travou um «combate impiedoso» contra as forças de perdição. A sua exortação dirigia-se contra a tendência espontânea dos homens para se oporem ao mal no mesmo plano e com as mesmas armas – tendência que não é outra coisa senão uma das múltiplas variantes da mimésis. Tanto tempo quanto ela dominar, toda a tentativa de moderação sensata está ameaçada e espreita-nos o perigo da vingança renovada sete vezes e setenta vezes sete. Afastando claramente este mau excesso, Jesus fala do excesso do amor e convida os seus discípulos a um perdão renovado setenta vezes sete (Mateus 18, 22), portanto a um comportamento que de modo nenhum se deixa arrastar, pela maldade quase sem limites do adversário, para «contramedidas» que se lhe assemelhem.

Não foi com palavras apenas que Jesus preveniu contra o perigo das retaliações imitadoras: ele teve também de enfrentar até ao fim este problema na sua própria vida. Como Ele se apresentava com poder e, pelo seu comportamento, tornava visível em sinais o mundo novo do seu Pai celeste, Ele podia suscitar em muitos uma confiança nova. Com as suas palavras sublimes e os seus sinais de salvação ele resplandecia de glória, fascinava e tinha sucesso entre o povo. Ele também era secretamente admirado pelos dirigentes (cf. João 11, 47ss.) ao mesmo tempo que foi rapidamente sentido como um concorrente. E justamente, a sua conduta plena de poder e de fascínio provoca ainda mais essa rivalidade que Ele queria superar na sua raiz. Nisto se manifesta o poder dissimulado do mal que, por meio da mimésis, pode incendiar-se também contra o seu contrário.

Nesta rejeição de Jesus, a mimésis desempenhava um papel determinante sob um outro ponto de vista, como bem o mostra sobretudo o Evangelho de São João. Depois da narrativa da actividade pública de Jesus, ele tem esta reflexão: «Embora Jesus tivesse realizado diante deles tantos sinais portentosos, não acreditavam nEle… Apesar disso, até entre os chefes, muitos acreditaram nEle, mas não o confessavam por causa dos fariseus, para não serem expulsos da Sinagoga, pois amavam mais a glória dos homens do que a glória de Deus» (João 12, 37-43).

Aquilo que neste texto é chamado «glória» (consideração), coincide largamente com aquilo que nós considerámos até aqui nos vocábulos de «mimésis» e de «imitação». Aquele que se deixa levar pela aspiração à glória, conforma-se, no seu agir, com a atitude daqueles que, na sociedade em que estão, já usufruem do reconhecimento social e são considerados como modelos para muitas pessoas. Esta «lei» funciona também no povo ao qual Jesus se dirigia, e funciona em prejuízo dEle. Graças à sua conduta sublime, Ele irradiava na verdade uma autoridade e muitos voltavam-se para Ele; mas havia ainda uma outra autoridade, a dos Fariseus que tinham desempenhado até então o papel de dirigentes. A partir do momento em que estas autoridades entravam em conflito, as pessoas tinham de se determinar e seguiam o partido que era reconhecido desde há muito tempo e que instintivamente admitiam que a grande maioria do povo seguiria no futuro. Quem usufrui da glória é imitado, e quem é imitado por muitas pessoas adquire uma glória suplementar. Assim nasce um turbilhão a cuja atracção, normalmente, as pessoas podem dificilmente escapar.

Esta atracção funcionava também contra Jesus. A sua força aparece claramente no comportamento dos mais próximos dos seus discípulos. Tanto tempo quanto Ele foi senhor dos seus movimentos, a impressão que Ele produzia sobre eles era tão forte que ela podia neutralizar todos os poderes contrários. A partir do momento em que Ele foi preso, a sua «glória» exterior desapareceu e os seus discípulos caíram sob a influência do poder nascido da glória dos Fariseus. O pastor foi ferido e as ovelhas dispersaram-se (Mateus 26, 31). Só os encontros com o Ressuscitado e a descida do Espírito Santo puseram de novo fim a esse fascínio com novas e profundas experiências.

O Espírito Santo e a imediatidade dos modelos

Se o poder atractivo da imitação é tão grande é porque os modelos actuam no fim de contas antes de toda a reflexãoconsciente e antes de toda a comparação consciente, e porque eles determinam as aspirações e a avidez segundo uma imediatidade quase-osmótica. Esta imediatidade permite compreender por que razão as palavras de Jesus deixaram de actuar logo que a acção da sua pessoa foi contestada como modelo a imitar. As suas palavras não puderam exercer uma acção nova senão aí onde uma imediatidade nova – a presença do Espírito Santo – destruiu o fascínio quase-osmótico dos modelos. Graças à experiência do Pentecostes, os discípulos puderam vencer o respeito humano que encontra a sua fonte no jogo do modelo e da imitação.

Ao mesmo tempo, eles aprendiam também a reconhecer com mais profundidade que o Deus pregado por Jesus não é um ídolo ao lado de outros ídolos e que ele não cativa de modo nenhum os homens por meio do fascínio violento do divino. Não tendo ele próprio, no momento da maior aflição humana, nem combatido nem vencido os seus adversários por meio da força exterior, mas tendo-se oposto a eles pela sua Palavra e com toda a liberdade interior, Jesus revelava que o seu Pai era um Deus da liberdade incondicionada. Este Deus da liberdade torna possível a liberdade verdadeira das suas criaturas, porque ele supera, pelo seu Espírito, o respeito humano, o fascínio do colectivo e dos chefes reconhecidos, e a autoridade rígida da letra pretensamente «santa».

O Espírito do Pai desmascara também a verdadeira natureza do «espírito adverso», de «Satanás». A forma mais subtil da mimésis opera aí onde, não uma criatura mas uma «imagem» do próprio Deus, age à maneira de um modelo e suscita a imitação por avidez. Este problema exprime-se em linguagem simples na narrativa da queda original. Dando um mandamento ao primeiro casal humano, Deus mostra-se aí como o senhor do bem e do mal. A voz do tentador, que intervém precisamente a seguir, é uma voz que quer imitar esse Deus, porque ela não sussurra a Eva nada de diferente do desejo de conhecer, como Deus, o bem e o mal. O espírito sedutor e satânico faz-se passar pois pelo espírito da imitação de Deus por avidez.

O Novo Testamento fala claramente, também ele, desse espírito. Na parábola dos maus vinhateiros, mostra-se por exemplo que os caseiros se atiram contra os servos do senhor da vinha e os expulsam ou matam. O motivo para uma tal acção torna-se perfeitamente claro quando surge o próprio filho do senhor da vinha. Então os malvados dizem abertamente um ao outro que querem apoderar-se da herança pela força (Marcos 12, 1-12). Como, segundo a estrutura dos evangelhos, Deus é ele mesmo o senhor e Cristo o seu filho, a parábola descreve os homens que surgem no papel de malvados vinhateiros como seres que querem imitar Deus na sua qualidade de senhor da vinha e Cristo na sua função de herdeiro, para como eles disporem da vinha. «Aquilo que os vinhateiros fazem é o pecado primordial da mimésis, do desejo de querer ser igual a Deus, da hostilidade contra Deus que desencadeia a violência.»[3]

O cúmulo do pecado está portanto exteriormente muito próximo da santidade e o mal não tem ser próprio mas não é outra coisa senão uma imitação do bem. Ele gera a inveja, o espírito do mal manifesta-se antes de mais como esse espírito satânico que imita Deus e transforma-se, desde a vinda de Cristo, em espírito do anticristo que imita o Salvador.[4] Esta táctica subtil, esta arte da vigarice e da distorção não podem ser descobertas nem vencidas apenas por modelos exteriores. Somente o Espírito que introduz completamente na verdade, e está mais intimamente e mais imediatamente próximo dos homens do que qualquer modelo exterior alguma vez poderá estar, é capaz de separar a verdade da aparência ilusória.

Imitar e seguir

Não é necessário entender a crítica da imitação no sentido de que deveria recusar-se todo o modelo para o agir humano e tentar viver na pura espontaneidade. O próprio Girard não tira de modo nenhum essa conclusão da sua análise da mimésis, da rivalidade e da violência. Ele diz pelo contrário: «Os Evangelhos e o Novo Testamento não pregam uma moral da espontaneidade. Eles não pretendem que o homem deva renunciar à imitação; eles recomendam imitar o único modelo que não corre o risco de, se nós o imitarmos verdadeiramente como as crianças o imitam, se transformar por nós em rival fascinante[5]

Esta citação é importante, mas ela permanece ambígua, porque também há, como o mostra o exemplo da Viridiana de Buñuel assim como as experiências de numerosos santos, uma forma de imitação de Cristo que se mantém exterior e que finalmente não supera a rivalidade, mas que não conduz senão a uma forma mais subtil da violência. Girard também conhece esta possibilidade. É por isso que ele escreve, pouco depois da passagem precedentemente citada: «Seguir a Cristo é renunciar ao desejo mimético».[6] Muito tempo antes de Girard, Dietrich Bonhoeffer, no seu livro Nachfolge, põe em evidência a diferença que existe entre imitar e seguir a Cristo. Contrariamente à tradição protestante do sola fide sola gratia que conduziu muitas vezes à ideia de uma «graça a baixo custo»[7] ele sublinha frequentemente a necessidade de seguir o modelo de Cristo na sua própria vida e de obedecer aos seus mandamentos. Encadeando com Lucas 14, 26 onde Jesus exorta os seus discípulos a «odiar» pai, mãe, mulher, filhos, etc., Bonhoeffer mostra de maneira convincente que o verdadeiro discípulo de Cristo deve ultrapassar «a relação imediata com o mundo»[8] - a «imediatidade quase-osmótica» de Girard. Face aos mal-entendidos da tradição católica, ele sublinha mesmo que o «seguimento» de Cristo deve ser dirigido pelo apelo de Cristo e pela fé, e que não é permitido enganar-se a seu respeito considerando-o uma actividade ética. Neste caso, ele (o seguimento, seguir a Cristo) recomeçaria de imediato a suscitar formas subtis de rivalidade com Deus e com os outros homens.

Jesus não colocou na linha da frente as acções exteriores, mas viveu uma experiência nova de Deus; passando pela tentação, ele decidiu-se plenamente por este Deus, e anunciou-o aos homens apresentando-o como Pai deles, «Abba». Olhando para este modelo, nós não temos, nós também não, de copiar primeiro uma ou outra das suas acções mas temos de nos dispor a viver uma experiência nova de Deus e a determinarmo-nos a partir dela, a partir do momento em que esse dom nos é concedido. Esta experiência, sob a sua forma concreta, é única em cada homem e pode, por esta razão, ultrapassar a «pressão mimética». É justamente a entrada nos horizontes abertos pelo modelo Jesus que abre um espaço em que cada ponto de vista é único.

Se prestarmos atenção a todo o caminho seguido por Cristo, torna-se claro por outro lado que ele não viveu apenas a experiência nova de Deus, mas que, nele, o próprio Deus vem até aos homens e comunica-se a eles. Deus já não se manifesta somente como um senhor que exige obediência – e desse modo suscita secretamente rivalidades -, mas apresenta-se como essa insondável e inconcebível liberdade que consente na liberdade humana e que, feito homem, a encontra sob um aspecto que lhe é plenamente conforme.

Mais ainda: Deus revela em Cristo não somente a sua humildade e o seu amor pelos homens mas, na hora da perseguição, expõe-se também à liberdade humana tornada sua rival e percorre o caminho da cruz como um caminho de extrema auto-humilhação. Ele oferece assim um modelo que se opõe em tudo à mimésis por avidez e à rivalidade. Contudo, mesmo este modelo eminente pode ser mais uma vez totalmente invertido. Ele pode, por exemplo, suscitar em alguém a tentação de realizar pelas suas próprias forças uma auto-humilhação igual à de Deus. A humildade mascara então um orgulho satânico.

A acção exemplar do dom de si e do sacrifício pode ser desligada de Cristo, adoptada isoladamente como modelo e imitada. L. Poliakov, no segundo tomo de A Causalidade diabólica[9] que trata da história russa, dá exemplos impressionantes desse orgulho do sacrifício que já não tem nada a ver com o caminho de Deus. O grande historiador do anti-semitismo mostra aqui que papel desempenhou, nos revolucionários nihilistas do século XIX, o «sagrado negativo»[10] . Muitos – sobretudo entre os que tinham sido seminaristas -, primeiro influenciados pelo pensamento cristão do sacrifício e mais tarde perdidos no ateísmo, imitavam aspectos da espiritualidade cristã e esboçavam uma imagem do revolucionário ideal que renuncia a toda a felicidade pessoal e empenha totalmente a sua vida pela causa da revolução. No seu romance Os demónios, Dostoievsky descreveu de modo magistral este «sagrado negativo»; na sua narração do «Grande Inquisidor», ele também desenhou uma outra figura que quer imitar Cristo – contra ele – pretendendo, como ele, sob a sua própria responsabilidade última e na solidão, carregar o pecado e as fraquezas do povo.

O «Grande Inquisidor» não é somente um personagem de romance. Foi também um personagem muito real durante numerosos séculos da história cristã. Os inquisidores de carne e osso nunca quiseram aliás ser anticristãos. De comum acordo com os cruzados e os combatentes da fé, muitos dentre eles testemunhavam mesmo, pela sua vida, uma espiritualidade intensa e acreditavam, pela sua luta contra «heréticos» e «bruxas», seguir o caminho de Jesus. No entanto, outras forças estavam em acção neles. Arriscar a sua vida tentando matar outros homens, ou travar um combate espiritual quando se imita o juízo de Deus e se exige a vida dos outros, isto pouco, e mesmo nada, tem a ver com o espírito do sacrifício de Cristo que não matou outros homens – como também não a si próprio, como o pensa Manuel de Diéguez[11] -, mas se expôs, com um amor dos inimigos livre de toda a violência, ao ataque dos seus adversários e superou desde o íntimo as suas más acções pelo seu amor.

Que a ideia da cruzada e da inquisição tenha podido, contudo, regular o pensamento e a acção dos cristãos, mostra que a mimésis por avidez pode também actuar sob o manto da piedade. Isto mostra também o mal que a avidez foi capaz de gerar em nome de Cristo. É por isso que, seguir verdadeiramente a Cristo, é determinante que o discípulo, antes de todo o agir próprio, acredite totalmente naquilo que Deus fez por ele em Cristo e que ele se deixe pautar por isso. Não são os nossos actos heróicos que podem proteger a imitação de Cristo das perversões subtis, mas somente a fé no Deus que dá e perdoa, e a convicção vivida de que ele se antecipa sempre ao nosso esforço com uma graça inconcebivelmente grande.

Enquanto a voz do tentador, na narração do Paraíso, sussurra aos homens para imitarem Deus por sua livre iniciativa, Jesus-Cristo, no discurso depois da Ceia do Evangelho de S. João, garante aos seus discípulos que recebeu tudo do seu Pai e tudo transmitiu (João 14, 11-14, 26; 15, 15; 17, 7s., 21-24). Se Deus apenas tivesse dado aos homens um dom qualquer e não o dom de si mesmo, o homem não teria sem dúvida alguma nenhum direito a um «mais»; as suas aspirações supremas permaneceriam insatisfeitas, e a impotente rivalidade para com o Criador assim como a tentação satânica de o imitar não deixariam de ter uma aparência de «justificação». Mas porque Deustudo deu aos homens e porque, pelo seu Espírito, ele quer introduzi-los na sua própria vida divina, eles podem tornar-se «como Deus» num sentido muito mais realista do que a ilusão prometida pela voz tentadora da mimésis. Assim se desmascara o extremo absurdo da mimésis por avidez que quer apoderar-se por si mesma daquilo que Deus quereria dar por livre vontade.

A misteriosa unidade do homem

A imediatidade «quase-osmótica» dos modelos mostra intensamente que os homens não se bastam a si mesmos em nenhum domínio do seu ser, mas que têm em tudo e totalmente necessidade dos outros. O livro do Génesis descreve uma forma positiva deste enviar para outrem, quando conta que Deus deu a Adão uma «ajudante» e que os dois vieram a ser «uma só carne» (Génesis 2, 18-24). Mas esta forma de unidade não podia impedir um desejo mais profundo, como o mostra a narração da queda. A história de Israel também atesta que a mimésis por avidez, a rivalidade e a violência não podem ser superadas apenas pela atracção dos sexos um pelo outro. O profeta Miqueias faz mesmo uma advertência: «mesmo àquela que dorme nos teus braços não abras a tua boca» (Miqueias 7, 5). O ser humano não pode ser verdadeiramente feliz a não ser que, sem entrar ao mesmo tempo em conflito com o seu «tu» que o satisfaz plenamente (Deus ou ser humano), o seu coração «de pedra» se transforme em coração de «carne» (Ezequiel 36, 26). Sucede que este «coração de carne» é, no fim de contas, o coração trespassado de Jesus-Cristo que, na força do Espírito, está totalmente aberto a Deus e que, ao mesmo tempo, pode ser recebido pelos fiéis na comunhão. Este «tu» é mais interior aos homens do que o seu próprio eu («Não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim», Gálatas 2, 20), por isso ele pode ajudá-los a acolher um «tu» sem rivalidade, porque é ele mesmo o verdadeiro «tu» que satisfaz completamente. Pela comunhão do Corpo de Cristo que sofreu, edifica-se esse corpo que comporta cabeça e membros (1Coríntios 12, 14). Neste corpo, a unidade com este Deus e a unidade dos homens entre si é tão grande que todo o verdadeiro desejo humano é finalmente saciado e a problemática damimésis é superada na raiz, porque o bem que satisfaz plenamente está mais imediatamente próximo dos homens do que todos os modelos exteriores, que nunca o podem estar. A questão da imitação revela-se, no mais profundo, ser assim uma indicação dada sobre o mistério da unidade inconcebível dos homens entre si e com Deus.

Raymond SCHWAGER, s.j. – Innsbruck, Áustria
tradução de Jorge Mendonça

[1]René Girard, To double business bound. Essays on Literature, Mimesis and Anthropology. The John Hopkins University Press, Baltimore and London, 1978, p.89.
[2] René Girard, Mensonge romantique et vérité romanesque. Paris, 1961, pp. 181-196.
[3] R. Pesh, Das Abendmahl und Jesu Todesverständnis, Herder Verlag, 1976, p. 106.
[4] Cf. R. Schwager, «Der Sieg Christi über den Teufel», Zeitschrift für katolische Theologie, 103 (1981), pp. 156-177.
[5] René Girard, Des choses cachées depuis la création du monde.Recherches avec J. M. Oughoulian et Guy Lefort. Paris, 176, p. 452.
[6] Ibid., p. 453.
[7] Bonhoeffer começa a sua obra constatando que «a graça a baixo custo é a inimiga mortal da nossa Igreja… A graça a baixo custo é a graça considerada como uma mercadoria a saldar, o perdão com desconto, a consolação com desconto, o sacramento com desconto… A graça a baixo custo é a graça considerada enquanto doutrina, enquanto princípio, enquanto sistema…» D. Bonhoeffer, op. cit., p. 19.
[8] D. Bonhoeffer, op.cit., p. 68.
[9] L. Poliakov, La Causalité diabolique. Du joug mongol à la victoire de Lénine, 1250-1920. Paris, 1985.
[10] Ibid., pp. 119, 132, 135, 138, 141s, 152.
[11]Manuel de Diéguez, L’Idole monothéiste. Paris, 1981. O autor não pode ver senão, no acto sacrificial de Cristo, uma subtil e perversa imitação dos sangrentos sacrifícios humanos.

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Sinto-me privilegiado por ter encontrado na Igreja um lugar vazio, feito à minha medida. É certo que tê-lo encontrado (ou encontrá-lo renovadamente, pois não é dado adquirido) foi também mérito da minha sede, do meu empenho, de não baixar os braços e achar, passivamente, que não seria possível. Passo a contextualizar: a comunidade onde vou à missa é pequena e acolhedora, e podia bem não o ser. Ao mesmo tempo, sentia um desejo grande de reflexão de vida cristã e encontrei um casal (heterosexual) que tinha a mesma vontade. Começámo-nos a reunir semanalmente numa pequena comunidade de oração e reflexão que, apesar de crítica, nos tem ajudado a sermos Igreja e a nela nos revermos. Paralelamente, face ao contínuo desencanto em relação a algumas posturas e pontos de vista de uma Igreja mais institucional e hierárquica, tive a graça de encontrar um grupo de cristãos homossexuais, que se reuniam com um padre regularmente, sem terem de se esconder ou de ocultar parte de si.

Sei que muitos cristãos homossexuais nunca pensaram sequer na eventualidade de existirem grupos cristãos em que se pudessem apresentar inteiros, quanto mais pensarem poder tomar parte e pôr em comum fé, questões, procuras, afectos e vidas.

Por tudo isto me sinto grato a Deus e me sinto responsável para tentar chegar a quem não teve, até agora, uma experiência tão feliz como a minha.

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As imagens que ilustram as mensagens são retiradas da Internet. Quando se conhece a sua autoria, esta é referida. Quando não se conhece não aparece nenhuma referência. Caso detectem alguma fotografia não identificada e conheçam a sua autoria, pedimos que nos informem da mesma.

As imagens são ilustrativas e não são sempre directamente associáveis ao conteúdo da mensagem. É uma escolha pessoal do autor do blogue. Há um critério de estética e de temática ligado ao teor do blogue. Espero, por isso, que nenhum leitor se sinta ofendido com as associações livres entre imagem e conteúdo.

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