As Testemunhas de Jeová, a transfusão sanguínea e a literalidade da interpretação bíblica
Elas apresentam-se com obstinação às portas de nossas casas (exemplares na sua perseverança), com a Bíblia numa mão e a revista "Sentinela" na outra: as Testemunhas de Jeová são uma presença efetiva no nosso horizonte religioso. E também aparecem nas colunas dos jornais quando um juiz retira um dos seus filhos menores à jurisdição paternal porque os seus pais recusam que seja praticada a transfusão sanguínea. Deixando de lado o valor do seu fundamentalismo bíblico e a sua longa história (desde o século XIX), quais são as principais reservas que os católicos lhes podem opor, reservas exprimidas sem demasiado pudor ecuménico?
Vou responder «sem pudor ecuménico» à questão porque o diálogo com as Testemunhas de Jeová está em crise devido à dificuldade em encontrar um ponto de vista comum. Imaginar a Bíblia como base para troca de perspetivas? É através desse caminho que se desenvolve o ecumenismo entre as diversas Igrejas e confissões cristãs. Mas também aqui as Testemunhas de Jeová colocam um obstáculo difícil de ultrapassar com uma questão de princípio e de método.
Impõem-se algumas explicações. Muitos estão persuadidos de que se trata de um problema de tradução bíblica mais ou menos manipulada, argumento com algum fundamento. As Testemunhas partem desde logo de um elemento injustificável com o seu próprio nome, porque "Jeová" é uma aberração linguística que supõe transcrever o nome divino "Jhwh", que os judeus substituíam por "'Adonai", "Senhor", para evitar pronunciá-lo (a pronunciação mais antiga era, provavelmente, "Jahweh").
Além disso, a versão bíblica italiana das Testemunhas de Jeová baseia-se no inglês, e não no original hebraico e grego. Não há nenhum especialista qualificado e rigoroso em exegese bíblica nas Testemunhas de Jeová. Por isso, há numerosas modificações discutíveis nos textos. Por exemplo: «Tomai e bebei. Isto "significa" o meu corpo» (há aqui uma interpretação livre do texto original).
Poderíamos multiplicar os exemplos destes "retoques" em traduções de qualidade menor, mesmo na versão americana, base das outras versões. A verdadeira questão, todavia, não reside aqui: as Testemunhas têm um método de leitura que é inaceitável logo à partida. Trata-se do "fundamentalismo" que nós evocámos [cf. tópico "Questões de fé para crentes e não crentes"].
Recordemos os princípios dessa leitura fundamentalista. Ao ignorar que a Bíblia, Palavra de Deus, se exprime através de palavras humanas e está ligada a uma história, uma cultura, um tempo, um meio humano e ao seu desenvolvimento (por outras palavras, está ligada à incarnação), as Testemunhas limitam a sua leitura à ressonância das palavras, em vez de acolher o valor que elas têm.
Não é difícil demonstrar que o número 12 na linguagem semita é um símbolo de plenitude e 1000 é a imensidão; os 144 000 eleitos do Apocalipse (7, 4) são uma alusão às 12 tribos de Israel que chegaram à plenitude, o povo de Deus que alcançou a salvação definitiva, enquanto que as Testemunhas de Jeová o entendem como o número real e matemático dos eleitos.
Esta leitura literal e fundamentalista da Bíblia pode ter consequências muito graves, apesar da boa fé de quem a recebe; pense-se na interdição da transfusão sanguínea. É verdade que no Antigo Testamento se encontra a interdição de tocar e de "comer" o sangue de uma criatura viva; contudo, na linguagem e cultura do Oriente, o sangue era o sinal da vida, realidade intangível e marcada pelo selo divino (cf. Génesis 9, 6 ou Levítico 17, 10-14). A interdição não é mais do que o respeito e a proteção da vida, qualquer que seja. A transfusão protege e favorece precisamente a vida, evidência paradoxalmente negada por uma leitura literal ou fundamentalista que teme infringir o preceito bíblico.
Sem eufemismo, as Testemunhas de Jeová, que conhecem muitas vezes a Bíblia de maneira aproximativa, selecionam as passagens segundo o seu interesse. Para serem coerentes, seria necessário que dessem uma interpretação literal aos textos violentos, poligâmicos e datados (como o geocentrismo) das Escrituras.
Na maior parte dos casos, elas servem-se de um número restrito de citações isoladas, tiradas do seu contexto, e, de acordo com as necessidades, interpretadas livremente, e já não de maneira literal. Por exemplo, no Génesis (1,1): «No princípio, Deus criou o céu e a terra». Aos seus olhos, o céu é uma metáfora que evoca a revolta dos anjos suscitada por Lúcifer, enquanto que a terra designa metaforicamente Adão e Eva. É uma leitura confusa e embrulhada, tão rígida como evanescente e alegórica, que ignora a sucessão dos textos, os desmembra e os reúne de acordo com as necessidades.
Só é possível sorrir ao ver a junção de três passagens autónomas e de épocas diferentes, o livro de Daniel (4, 7-23), o Apocalipse (12, 6.14) e o livro de Ezequiel (4, 6), para justificar o ano de 1914 como o do fim do mundo - data prolongada com outros estratagemas de interpretação, a fim de salvar a face.
Com tal escolha de princípio e de método, é muito difícil, para não dizer impossível, dialogar de maneira construtiva, tanto ao nível dos fiéis como ao nível dos biblistas sérios, católicos, ortodoxos, protestantes ou laicos.
Card. Gianfranco Ravasi
Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura
Publicado em SNPC
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