Nas próximas mensagens procederei a uma selecção das ideias expostas no texto de James Alison para o XXXVII Congresso de Teologia Moral, São Paulo, Setembro de 2013
Um pequeno erro no começo torna-se muito maior no final:
rumos da discussão eclesial sobre a questão gay
1. Introdução
(…) Tenho-me dedicado nos últimos anos à elaboração de um novo paradigma para a evangelização, tendo criado um curso de introdução à fé cristã para adultos. Meu envolvimento, então, com a matéria sobre a qual vocês pedem a minha intervenção tem sido eclesial, espiritual e pessoal: uma questão que incide na vivência de um cristianismo básico no mundo de hoje antes do que uma discussão moral. (…)
Proponho deixar de lado aquela nuvem de sentido, e de disfarce de sentido, que vem com a frase “diversidade sexual” por considerar que abrange demasiados temas para que seja útil num tempo limitado como este – temas onde tanto as realidades biológicas, químicas e neurológicas, quanto as possíveis consequências espirituais e morais delas decorrentes são suficientemente diferentes para que seja realmente uma curiosidade querer falar delas como se de uma categoria única se tratasse.
Em vez disso, vou me limitar (…) à parte LG da sigla LGBTQQ, ou à parte GL da sigla GLS. Ou seja, aquelas pessoas, homens e mulheres, que se sentem principalmente atraídos por pessoas do mesmo sexo. E vou falar disto sendo eu mesmo uma de tais pessoas. Se há uma primeira interpelação eclesial aqui, seria que, a meu ver, o uso correto da primeira pessoa, singular e plural, é muito importante. Uma das coisas que passa por apenas uma mentirinha nos meios eclesiásticos, mas que esconde na verdade algo muito mais grave é o uso de “eles” ou “vocês” em ocasiões quando “eu” ou “nós” seria mais certeiro. Pessoalmente creio que se não sou capaz de honestidade num assunto relativamente pouco importante, como este, então, por quê vou merecer credibilidade quando falo sobre coisas bem mais importantes, como o amor de Deus, a ressurreição dos mortos, ou a presença de Jesus nos sacramentos?
Gostaria, então, de desenvolver para vocês uma meditação sobre três dimensões daquilo que é, na minha opinião, a principal interpelação que faz a questão gay à vida eclesial (…). As três dimensões da mesma interpelação são estas: verdade, veracidade e honestidade. (…)
2. A verdade
(…) Será que existem mesmo pessoas gays? Ou é mais verdadeiro dizer que no universo dos humanos, todos os quais são intrinsecamente heterossexuais, existem alguns que sofrem de uma desordem objetiva que poderia ser chamada de “inclinação homossexual”, ou num falar um pouco mais moderno, “atração pelo mesmo sexo”? Dito de outro modo: será que ser gay se trata de uma variante minoritária não patológica que ocorre regularmente dentro da condição humana, ou será antes que se trata de uma desordem objetiva? Se for o primeiro, uma analogia poderia ser o ser canhoto, onde os atos típicos decorrentes da variante minoritária seriam bons ou ruins conforme as circunstâncias. Se for o segundo, então uma analogia talvez possa ser a anorexia. Todos entenderíamos a anorexia como sendo uma desordem objetiva, uma patologia do desejo cujos comportamentos típicos, se não forem corrigidos, controlados e superados, levam à autodestruição da pessoa.
Bom, sobre este assunto, como vocês sabem muito bem, existe uma clara manifestação das Congregações Romanas, um ensinamento de terceira ordem na hierarquia das verdades, mas que se impõe em toda discussão oficial sobre o assunto. Este ensinamento, que foi acunhado em 1986, reza assim: “é necessário precisar que a particular inclinação da pessoa homossexual, embora não seja em si mesma um pecado, constitui, no entanto, uma tendência, mais ou menos acentuada, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente desordenada”. Ou seja, o ensino comum das Congregações Romanas é clara: “a inclinação homossexual ... deve ser considerada objetivamente desordenada”.
(…) [Os autores de Homosexualitis problema] vinculam indissoluvelmente a intrínseca ruindade dos atos a uma desordem objetiva. E nisso, são pessoas muito mais finas do que aqueles lobos em pele de ovelha que tem abundado no meio de nós nos últimos anos. Tais lobos querem dizer algo assim: “Nós amamos todos os seres humanos, todos são filhos e filhas de Deus. Não temos nada contra as pessoas gays em si, só dizemos que devem se abster dos atos homossexuais. O nosso ensinamento é sobre os atos, e não sobre o ser”. Bom, a pele de ovelha está em “nós amamos todos” e os dentes do lobo se escondem sob “é só se abster para sempre dos atos”, como se fosse possível que os atos pudessem ser desligados da inclinação de uma maneira simples. Graças a Deus, as Congregações Romanas, neste ensinamento, são mais honestas, sendo ou todo ovelha, ou todo lobo, mas nada de híbrido disfarçado. (…) [Elas] sabem muito bem que é um absurdo moral, espiritual e de doutrina católica imaginar que a partir de uma condição neutra ou positiva, podem fluir atos típicos que seriam intrinsecamente ruins. Se aquilo que chamam de “inclinação homossexual” for uma coisa neutra ou positiva, os atos daí decorrentes não poderiam ser intrinsecamente ruins, mas bons ou ruins segundo o uso. As Congregações Romanas são claras: se queremos chamar os atos de intrinsecamente maus, não há como evitar categorizar a condição em si como uma desordem objetiva.
(…) Será que é verdade que ser gay é uma desordem objetiva? Ou será que é antes verdade que é uma variante minoritária e não patológica que ocorre regularmente dentro da condição humana? (…)
Ou ser gay é uma desordem objetiva, ou não é. No caso afirmativo, todos os avanços científicos no mundo da genética, dos neurônios, da química cerebral, da endocrinologia, dos hormônios intrauterinos, da psicologia infantil e assim por diante, tenderão a demonstrar o fato. E todas as evidências de vida testemunhadas pelas pessoas afetadas vão ser sinais da sua verdade: que as pessoas que são gay só levam uma vida sadia, só tendem a florescer, na medida em que tratam esta característica delas como sendo algum tipo de defeito a ser controlado ou superado. Por outro lado, pela evidencia da vida das pessoas que tratam esta sua característica como uma coisa normal, e se empenham em procurar um florescimento por meio de desenvolver esta característica como se fosse uma simples variante minoritária e não patológica, vai ficar cada vez mais público e notório que estas pessoas não são capazes de um florescimento humano e que a suposta autoaceitação delas não é na verdade senão uma forma de autodestruição. Nem todo o autoengano deste mundo vai conseguir abafar a verdade objetiva: (…) aquilo que é termina se impondo, se nos faz presente e resplandece em nosso meio, porque o Criador de todas as coisas está por detrás dele.
E, é claro, as consequências decorrem com exatamente o mesmo rigor no sentido contrário se a verdade não for aquela da desordem objetiva, mas da variante minoritária não patológica. (…) Todos os avanços nos diversos campos científicos acima citados tenderão a mostrar que se trata de uma variante minoritária, não patológica, na condição humana, e que ocorre regularmente. E todas as evidências da vida das pessoas também tornarão público e notório que quem aceitar esta característica dele como algo normal vai florescer na medida desta aceitação de que seu crescimento passa pelo desenvolvimento normal deste elemento da vida. E por outro lado, quem vive no engano, ou autoengano, de imaginar que o seu florescimento só pode se dar apesar desta característica e não com a contribuição da mesma, que deve ser então escondida, abafada, ou até “curada”, esta pessoa se diminui e colabora para a sua autodestruição.
Estamos falando então de uma questão de verdade objetiva. E uma das coisas boas da verdade objetiva é que não depende de nós. Não depende de quem seja melhor no debate, ou mais poderoso, ou mais rico, ou sequer mais inteligente, nem muito menos de qualquer autoridade religiosa. Simplesmente é. Se ser gay é uma desordem objetiva, então todos os supostos lobbies gays no mundo não vão fazer uma mínima diferença em alterar esta realidade, por mais estragos que possam causar antes de reconhecê-lo. E por outro lado, se for o caso que ser gay é uma variante minoritária não patológica dentro da condição humana, então nem os cientistas do exército americano, ou soviético, dos anos 1950, nem os propulsores da chamada terapia reparativa em suas várias versões, os doutores Nicolosi, Van Aardweg, Polaino e Anatrella, nem os exorcismos dos pastores Malafaia ou Feliciano, por exemplo, vão fazer a mínima diferença em alterar a realidade, por mais estragos que possam causar antes de reconhecê-lo. Como seus antecessores aprenderam no caso Galileu, nem o Papa tem o poder de alterar uma realidade objetiva deste tipo.
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