7. Saída do impasse
E é isso mesmo: na medida em que achamos que nesta situação de vivência eclesial, não há nada para ser perdoado, é só insistir nas definições de sempre com maior rigor frente a um mundo perverso cada vez menos disposto a nos ouvir. Deste modo, só conseguimos atiçar o skandalon até o ponto onde a nossa perda de razão fica evidente para todo mundo menos para nós. Assim ficamos ainda mais escandalizados ao percebermos como os outros consideram tabu irracional aquilo que chega a ser para nós pedra de toque da nossa sacralidade. Por outro lado, na medida em que reconhecemos que tem algo para ser perdoado, quer dizer solto, permitido a fluir, e que somente na medida em que nos deixamos perdoar é que vamos perceber a realidade daquilo que é, assim veremos o skandalon se esfumar e vamos ficar livres.
Repito isto, porque é um dos segredos do cristianismo que a Igreja muitas vezes consegue esconder de si própria. O principio da realidade flui a partir da vítima que nos perdoa, e que nos dá o poder de segui-la sendo perdoados e espalhando o perdão, fazendo dos lugares escuros e aparentemente tóxicos da vergonha e do escândalo, lugares onde podemos morar pacificamente, e por isso, começar a detectar e descrever sem medo aquilo que realmente está acontecendo. Aquele que diz “Eu sou a verdade, o caminho e a vida, ninguém vem ao Pai a não ser por mim” soprou nos apóstolos o Espirito Criador mandando-os perdoar, e é aquele Espírito que nos leva a toda a verdade, e nos assegura que a verdade nos libertará.
Ou seja, o primeiro passo para sair do skandalon que é a atual vivência eclesial do assunto gay é se deixar perdoar. E o segundo passo, que flui automaticamente do primeiro é na medida em que começamos a nos descobrirmos perdoados, e por isso capazes de caminhar com maior leveza de espírito em meios perigosos, onde só o perdão nos dará a capacidade de não nos preocuparmos pela perda de reputação e assim por diante, a perdoar aqueles que ainda ficam escandalizados e por isso são pessoas violentas, ainda filhos da ira, que não entendem bem as forças cruéis do desejo escandalizado que as agitam. Os escandalizados não serão capazes de deixar de mentir, de atacar, de acusar, se pensando justos ao fazê-lo, e agindo até com maior ferocidade na medida em que perceberem a liberdade e a tranquilidade alheia. Com o escandalizado, nunca entrar em debate. Ao escandalizado se perdoa sem que ele o peça, pois não sabe o que faz, e porque, não o perdoando, ficamos com o risco de sermos contagiados pelo mesmo escândalo.
O terceiro passo, e é um grande privilégio da fé católica, é poder ver com aquela racionalidade tranquila de quem passou pela perda de tudo, e ainda se descobriu mantido em vida, como é que esta pequena abertura para uma antropologia mais verdadeira não é (…) uma ruptura da fé, ou uma brecha na bela totalidade da vivência católica, mas, ao contrário: é o seu desenvolvimento, a partir de dentro, mais orgânico. É uma daquelas coisas que do lado de fora parece um obstáculo, e por isso uma pedra a ser rejeitada, mas pelo lado de dentro, percebe-se o seu vínculo íntimo com a pedra angular. Ou seja, uma vez que a gente está além do escândalo, a gente olha para atrás e percebe que o pleno reconhecimento da humanidade das pessoas gays foi, e está sendo, o desenvolvimento mais íntegro da vivência cristã, seguindo muito exatamente aquilo que Jesus nos prometeu. Curiosamente, este desenvolvimento integralmente cristão tem sido liderado por pessoas que pouco sabiam o quanto eram cristãs a ousadia, a humildade e a perseverança delas, e tem sido obstruído por pessoas que pouco sabiam que a rigidez, o escândalo e a desonestidade delas nada de cristão tinham. Um fato assim deveria ser motivo de vergonha para nós que levamos o nome de cristão, porém só pode ser motivo de surpresa para quem não tiver dedicado o mínimo de tempo a ler os Evangelhos...
O quarto passo, descobrindo-nos, sem mérito nosso, por dentro da dinâmica orgânica do Evangelho é nos dar conta de que a fé católica sempre previa possibilidades deste tipo. O ensinamento católico com respeito a Fé e a Razão, a Graça e a Natureza, mantido nos conselhos de Trento, Vaticano I e II, e ensinado com particular lucidez pelo Bento XVI nos facilita muito a tarefa de sair dum escândalo que é muito mais forte para grupos que não tem este ensinamento. Pois, uma vez que é o ensinamento constante da Igreja que a razão humana, por débil que seja, não ficou totalmente danificada na queda, e por isso ainda é capaz de aprender a verdade, mesmo que por caminhos árduos e onde avançamos só em meio a muitos erros; e que a natureza humana, e junto com ela o desejo humano não é radicalmente depravado, mas em si uma coisa boa, mesmo que vivido por todos nós de uma forma distorcida e debilitada; uma vez lembradas estas coisas, então podemos entender que é absolutamente conforme à nossa fé o poder aprender, ao longo do tempo e de maneira árdua, que alguma coisa que parecia ser um defeito da natureza humana não o é e que aquilo que se pensava uma condição viciada ou patológica não o é. Devido justamente a esta compreensão, a fé católica entende que Deus, porque nos ama, não proíbe coisas de maneira caprichosa, só proíbe aquilo que nos faz mal. Quando se pensava que ser gay era um defeito numa natureza humana intrinsecamente heterossexual, então não se colocava em questão que a proibição fosse para o nosso bem. No momento em que se descobre que, antes, ser gay diz respeito a uma variante minoritária e não patológica na condição humana, então automaticamente fica claro que aquilo que se pensava ser uma proibição divina não é, e nunca foi, tal. É e foi um tabu humano, parte daquele mundo de ignorância e violência que ainda não tinha aprendido a respeitar a dignidade, a beleza, e a capacidade para o florescimento de diversos membros da raça humana. Mas que agora, e como parte integrante da Boa Nova, estamos descobrindo que ser humano é uma aventura maior e mais rica do que se pensava antes.
8. A catolicidade do caminho proposto
Quero insistir nisto, porque significa que o descobrimento da condição não patológica do ser gay, um autêntico descobrimento de tipo antropológico, um autêntico ganho para a humanidade, não é um ataque frontal a uma doutrina da Igreja. Ao contrário, é parte de um mecanismo absolutamente normal, e interno à vida da Igreja, pelo qual chegamos a perceber um conflito entre duas doutrinas que antes não pareciam ter nenhum conflito entre elas: a doutrina acerca da fé, da razão, da natureza e da graça, por um lado, e a proibição absoluta de todo ato de amor entre pessoas do mesmo sexo, por outro. As duas doutrinas de fato têm um conflito, se aquilo que chegamos a perceber e apreciar ao seguir a primeira doutrina, que é, de toda evidência, central para a visão católica do mundo, nos leva muito obedientemente a relativizar e finalmente a rejeitar, como sendo expressão de um tabu, a segunda doutrina. A primeira doutrina nos teria ensinado que a segunda não pode ser de origem divina, sendo que é incompatível com a benevolência e a sabedoria do Criador ter querido frustrar por meio de uma proibição absoluta o desenvolvimento e crescimento normal de uma condição que ele mesmo teria se comprazido em introduzir na nossa experiência de filhas e filhos dele. A bondade ou ruindade dos atos de amor entre pessoas do mesmo sexo dependeria de seu uso, como é de fato a experiência das pessoas gays, e os critérios para isto deveriam ser aprendidos por nós, guiados por aquela inapagável tendência em nós para a verdade que a Igreja tanto preconiza e à qual tantas pessoas gays e lésbicas têm dado testemunho na face de tanta rejeição eclesiástica.
Acho que vale a pena lembrar disto: como o ensinamento da Igreja vem de Deus, quando descobrimos um erro, é evidente que aquilo não era, na verdade, o ensinamento da Igreja. E os que insistiam que era, resultaram ser os que foram na verdade pouco leais à Igreja, preferindo uma aparente continuidade tingida com erro a uma vivacidade sempre mais ricamente portadora da verdade. (Cf Marcos 7, 13
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