5. O grande escândalo
Nos termos de Bateson é um double bind perfeito: se falar a verdade, você fica de fora (do grupo); e se não falar a verdade, fica de fora (do sentido para o qual existe o grupo). Então muitos integrantes da Igreja preferem ficar num espaço ambíguo, uma espécie de Don’t ask, Don’t tell onde tudo é cinzento. Mesmo sem falar da miséria psíquica que este ambiente produz, nem dos relacionamentos disfuncionais e inapropriados que nele abundam, isto é evidentemente o ambiente mais propício para todo o tipo de chantagem.
(…) A vivência eclesial desta questão merece mesmo o nome de escândalo, não no sentido jornalístico, mas no sentido estrito, de um mecanismo que é pedra de tropeço, algo que atrai e repele a seus integrantes ao mesmo tempo, atando-nos em ritmos de desejo insuportáveis de viver com e insuportáveis de viver sem. É um escândalo vivido na carne própria (…) e tende a se reproduzir como escândalo nos inocentes que são induzidos a formar parte deste mundo escandalizado. Este processo de ficar atado num “skandalon” leva à paralisia do coração, passo muito próximo à perda da alma. Mas é aqui onde me parece que entra no jogo aquele terceiro elemento da interpelação que mencionei ao começo, a da veracidade.
(…) Se estamos diante de um “skandalon” (…) que creio ser o do Evangelho, procurar (…) entalar as pessoas escandalizadas entre a “verdade” e a “honestidade” é mais uma maneira de nos deixarmos cozinhar pelo inexorável fogo baixo da acusação. Ora, a qualidade da acusação é que só atiça e estreita os nós do escândalo, mas não oferece nenhuma saída dos seus laços.
Por isto, gostaria de oferecer para vocês algumas observações sobre a dimensão da veracidade neste campo. A minha tarefa, como cristão, como padre, e como teólogo, não é atiçar os laços do escândalo, mas reconhecendo sem fingimento o skandalon por aquilo que é, procurar desatar aqueles nós, oferecendo caminhos pelos quais seja possível sair de tanta dor e autodestruição.
6. A veracidade
(…) Falo do processo pelo qual o grupo humano e os seus integrantes chegam a adquirir uma disposição estável de se deixar ajustar àquilo que realmente é, e poder falar a respeito. (…)
(…) Gostaria de sublinhar que sair de um escândalo não é um processo puramente intelectual. De fato, funciona muito mais ao nível do desejo que nos estrutura do que naquele nível relativamente secundário que é o do raciocínio. Dou-lhes um exemplo. Recentemente um Bispo amigo meu foi chamado pelo Vaticano para responder por uma pastoral gay na diocese dele. Os acusadores tinham outros motivos para incomodar o Bispo, mas acusar um bispo de demasiado liberal no assunto gay é sempre uma boa arma no campo minado do amor cristão. O Bispo me consultou a respeito, e eu disse para ele aquilo que digo para vocês: que, havendo seguido os estudos durante anos, a meu ver, trata-se de uma variante minoritária não patológica e que ocorre regularmente na condição humana, com as consequências normais que disto decorrem. O Bispo, muito inteligentemente, e não querendo depender numa questão de evidência científica da opinião de um mero teólogo que é também um homem pessoalmente envolvido no assunto, procurou os principais médicos, psicólogos e cientistas da diocese dele, um por um, e perguntou qual era o parecer deles na matéria. E todos, sem exceção, disseram para ele a mesma coisa. Então, durante a entrevista dele no Vaticano, ele levantou esta questão, sugerindo que estamos diante de um fato já aceito pacificamente no universo científico. Os seus interlocutores romanos informaram ele que não era para ele ser enganado deste jeito, e que a pretendida cientificidade deste fato é simplesmente o resultado de um lobby gay muito poderoso e influente.
Agora, espero que vocês vejam a diferença entre as duas maneiras de proceder. Por um lado tem alguém que está disposto a perder a reputação dele no grupo que o sustenta, ao reconhecer a possibilidade, mas não a certeza, de que a realidade talvez seja diferente do que pensava. Por isto ele se dá o trabalho de estudar o assunto, confiante de que, seja qual for o resultado da pesquisa, a verdade é aquilo que nos faz bem, e que é muito exatamente uma parte do exercício do dom da Fé confiar em que Deus nos mostrará aquilo que é realmente bom para nós se estivermos dispostos a correr o risco de nos percebermos errados. Ou seja, por um lado alguém se encontrou com suficiente liberdade no meio do grupo dele como para se permitir o exercício da virtude da studiositas como parte do caminho para se ajustar à verdade das coisas.
Por outro lado, temos uma pessoa ou grupo de pessoas de tal modo escandalizadas pela possibilidade de que a verdade objetiva não esteja conforme aquilo que deve ser, segundo o entendimento deles do ensino da Igreja, que resolvem o problema por meio de uma teoria de conspiração. “Só os médicos e psicólogos que estão de acordo conosco são aceitáveis. Se existem muitas pessoas alegando que estamos diante de uma verdade de tipo científico discordante do nosso ensinamento, mas que agora é pacificamente aceita pela imensa maioria dos estudiosos, então a explicação é que um poderoso grupo de malfeitores teria adulterado a ciência a favor do autoengano deles.” Espero que dê para perceber que uma teoria da conspiração deste tipo é o equivalente intelectual da premissa da bruxaria causadora da tempestade, e é um empecilho perfeito à possibilidade da veracidade. Quem se aferra a uma causalidade social acusadora desta maneira nunca vai ter acesso à possibilidade do conhecimento científico, (…) nem das ciências modernas que estão nos permitindo entender a orientação sexual. Ou seja, o pensamento escandalizado é justamente o oposto do caminho da veracidade. Nos mantém longe da possibilidade de nos ajustar àquilo que realmente é e menos ainda de poder falar a partir de dentro daquele processo de ajuste.
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