Creio num Deus que dança
Nietzsche deixou escrito, sublinhando bem a negativa, que não acreditaria num Deus que não dance. Muitas vezes, mesmo se colocado noutro ponto de vista, me apetece ajuntar: eu também. De facto, aquilo que parece ser apenas um severo emblema para a suspeita da não-existência de Deus, pode, ao contrário, tornar-se em proclamação crente da sua presença no tempo.
Acredito num Deus que dança: isto é, num Deus que não se isenta do devir, nem permanece neutral em relação às nossas histórias. Acredito num Deus imiscuído, engajado, detetável até pelo impreciso radar dos sentidos, suscetível de ser invocado pelos motores de busca das nossas persistentes interrogações ou do nosso silêncio. Deus não está unicamente para lá da fronteira do pensável e do dizível: está também aquém; nós vivemos no espanto interminável da sua presença; e as nossas palavras, por pobres que sejam, constituem pontes de corda lançadas sobre a amplidão do seu mistério.
Como me revejo nessa página terrível e extraordinária que Elie Wiesel escreveu, no romance “A noite” (e, de facto, quantas noites a nossa Fé é chamada, todas as horas, a atravessar?). Atrevo-me a reproduzi-la aqui:
«Os S.S. pareciam mais preocupados, mais inquietos do que o costume. Enforcar uma criança diante de milhares de espectadores não era coisa qualquer. O chefe do campo leu a sentença. Todos os olhos estavam fixos no menino. Ele mantinha-se lívido, quase calmo, mordendo os lábios. A sombra da forca projetava-se sobre ele.
Dessa vez, o lagerkapo negou-se a servir de carrasco. Três S.S. o substituíram.
Os três condenados subiram para as suas cadeiras. Os três pescoços foram introduzidos nos nós corrediços ao mesmo tempo.
- Viva a liberdade! – gritaram os dois adultos.
O pequeno, calado.
- Onde está o bom Deus, onde está Ele? – alguém perguntou atrás de mim.
A um sinal do chefe do campo, as três cadeiras foram derrubadas.
Silêncio absoluto em todo o campo. No horizonte, o sol estava a pôr-se.
- Descubram a cabeça! – berrou o chefe do campo. Sua voz era rouca. Quanto a nós, estávamos chorando.
- Cubram a cabeça!
E começou o desfile. Os dois adultos já não viviam. Mas a terceira corda não estava imóvel: tão leve, o menino ainda vivia…Por mais de meia hora ele ficou assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando diante dos nossos olhos. E tínhamos de olhá-lo bem de frente. Ainda estava vivo quando passei diante dele. Atrás de mim, ouvi o mesmo homem perguntar:
- E então, onde está Deus?
E senti em mim uma voz que lhe respondia:
- Onde está Ele? Ei-Lo – está aqui, nesta forca».
Crer num Deus que dança implica reconhecê-lo suspenso da corda das vítimas de todos os tempos, pregado ao silêncio do sofrimento injustificável, amordaçado por todas as formas de violência que se abatem sobre o homem. Crer num Deus que dança é crer que na nossa noite, entregues à solidão e aos seus terrores, nós não estamos sós. Como não estamos sós na ronda da nossa esperança. Deus faz da sinfonia inacabada do nosso júbilo a primeira palavra da sua alegria.
José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias (Madeira), publicado em SNPC
In Diário de Notícias (Madeira), publicado em SNPC
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