A escritora Inês Pedrosa qualificou esta quinta-feira de «desassossegada» a relação que Fernando Pessoa manteve com a Bíblia e o padre José Tolentino Mendonça recordou as «marcas de leitura» daquele texto presentes na poesia pessoana. A questão da fé não era «acessória» para o autor do 'Livro do Desassossego', referiu à Agência Ecclesia a diretora da Casa Fernando Pessoa, instituição lisboeta que acolheu esta quinta-feira a primeira sessão do ciclo"A Bíblia, coisa curiosa".
«Era um homem completamente viciado em enigmas e por isso nunca se fixou numa religião, como nunca se fixaria a nada», lembrou Inês Pedrosa, acrescentando: «Foi muita coisa em simultâneo e em catadupa», pelo que «nunca poderia dizer “Eu sou deste dogma”, dado que não saberia se amanhã acordaria assim». Pessoa «tinha a noção do sagrado, como acho que os grandes artistas têm sempre», salientou a responsável, e embora «não se possa dizer que fosse católico», era todavia “um homem de fé”.
Para Inês Pedrosa, a evocação de Jesus que «desce do céu e vem brincar connosco» constitui um texto «realmente bíblico e sublime»: «Esse momento é particularmente forte e mostra bem o brilho» que a figura de Cristo tinha para Fernando Pessoa. O menino Jesus «rebelde, luminoso e salvador» evocado pelo heterónimo Alberto Caeiro em “O Guardador de Rebanhos” constitui um excerto que para Inês Pedrosa «faz parte da Bíblia».
A iniciativa que a Casa Fernando Pessoa organiza em parceria com a Faculdade de Teologia da Universidade Católica pretende alargar o debate sobre a fé para além das igrejas e instituições eclesiais.
«A intenção do padre Tolentino quando se aproximou de nós foi trazer a fé para a sociedade civil», assinalou Inês Pedrosa, para quem a «função» da Casa Fernando Pessoa é suscitar a discussão «sobre assuntos que não estão a ser debatidos». A escritora considera que «a reflexão da fé é importante e particularmente interessante nos tempos de hoje, muito marcados por extremismos e por uma certa apatia do mundo ocidental» em relação a ela.
Tolentino Mendonça lembra que Fernando Pessoa, através do heterónimo Álvaro de Campos, adjetivou a Bíblia de «coisa curiosa», uma forma que o poeta madeirense diz ser «muito acertada» para falar dos livros que a compõem.
«A Bíblia está na gestação de cultura, sendo comentada não apenas por teólogos e exegetas, mas também por músicos, poetas e pintores», realçou o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.
Na catequese quaresmal pronunciada este domingo, o cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, sublinhou que as «interpretações individuais» da Bíblia «que se afastem do sentir da Igreja, enfraquecem a fé pessoal chegando a adulterá-la gravemente».
Esta declaração não implica fechar os textos bíblicos a quem está fora da Igreja: «O sentido pleno da Bíblia brilha na comunidade litúrgica» mas essa convicção «não exclui as infinitas leituras que se podem e devem fazer», sustentou Tolentino Mendonça.
O ciclo de conversas, que prossegue este mês com poetas, teólogos e psicanalistas, pretende «mostrar como há uma multiplicidade de acessos ao texto bíblico que testemunham como ela continua a ser um texto sedutor e cujo charme continua a tocar o coração das mulheres e dos homens do nosso tempo», explicou o sacerdote.
Rui Martins
In Agência Ecclesia, publicada por SNPC
In Agência Ecclesia, publicada por SNPC
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