Um artigo que me parece interessante e que me deixa alguma esperança quanto à formação de uma nova geração de padres…
"A Semana dos Seminários de 2013, dedicada ao tema "Para que Cristo se forme em nós", termina este domingo, 17 de novembro. Para conhecer é entendida a formação os candidatos ao sacerdócio no domínio da cultura, conversámos com o padre Alexandre Palma, de 35 anos, prefeito do Seminário dos Olivais, em Lisboa.
(…) Além do Mestrado Integrado em Teologia, cinco anos de estudos na Universidade Católica Portuguesa com disciplinas de Filosofia, Bíblia, História, Teologia Sistemática e Prática, Línguas, Psicologia e Sociologia, a formação no seminário abrange aulas de música, conferências, cinema, leituras e visitas a exposições.
Compreender a cultura atual
«Uma das muitas preocupações e solicitações que compete a uma casa formadora de padres é a de ser um espaço que ajude a dar à luz homens cultos para o mundo e para a Igreja. Cultos não apenas no sentido livresco, mas também noutras dimensões, como a oração, a experiência eclesial comunitária, a atividade pastoral e o estudo. Dar à luz pessoas que procurem uma certa profundidade e que, por isso, não se satisfazem com a superficialidade.
Para usar uma imagem bíblica, diria que é uma espécie de educação para a sabedoria, que pertence ao carácter do ser padre. Sempre foi importante, e hoje é-o ainda mais, que os sacerdotes sejam pessoas sábias em todas as dimensões da vida, cultivando o lado intelectual e afetivo, o estudo individual e o encontro com os que lhe estão próximos, a procura da oração intensa que não esteja desligada de uma vida caritativa verdadeira. Uma das missões do seminário é desenvolver a harmonia de todas as notas que compõem a pauta da vida, contribuindo para que o cérebro não atrofie o coração e o coração não renegue o pensar.
Na continuidade deste grande horizonte da formação cultural, existem desafios concretos no dia-a-dia de quem aqui procura descobrir a vocação e responder-lhe. É nesta perspetiva que se situa a educação e o estímulo para a sensibilidade, o que abrange a capacidade de deixar falar os afetos e o encantamento pela expressão artística. Trata-se de gerar conhecimento e interesse não apenas no sentido técnico, mas sobretudo de desenvolver o gosto por saborear as coisas belas do mundo e do génio humano. E aqui há muito trabalho a fazer porque o universo é um tesouro infinito.
O espanto e o encantamento constituem a primeira atitude de quem ama a sabedoria, isto é, da filosofia, que, em certo sentido, é irmã da mística, dado que esta nasce também de uma atitude de êxtase, do sair de si.
Uma das minhas preocupações é ajudar quem aqui se educa a perceber qual é o nosso momento cultural e a hora que lhe é dado viver. Não se dê o caso de nos prepararmos para viver o mundo que já não é – ou que ainda não é – o nosso. Sondar o que caracteriza a cultura enquanto epifania do que a sociedade vai vivendo, sabendo que, com frequência, as expressões culturais são cristalizações do que se vai fermentando, por vezes de forma escondida e silenciosa.
Por outro lado, e sem querer entrar na polémica dos conceitos, procuramos também dar a descobrir o que é a pós-modernidade, como é que apareceu, o que trouxe de novo, o que trouxe de mau, o que deixou para trás. E, ao mesmo tempo, tentar antecipar o rumo que a sociedade vai tomar, o que é quase uma lotaria.»
Perito em Deus e na humanidade
«Nos últimos tempos há uma ideia que me tem acompanhado: ser padre tem muito de ser exegeta [intérprete] da humanidade. De um padre espera-se que seja perito das coisas de Deus, o que é uma aspiração legítima. Mas o nosso ministério também tem algo de ser perito nas coisas do Homem. Como dizia o papa Paulo VI, a Igreja é perita em humanidade. E João Paulo II, na sua primeira encíclica, "O Redentor do Homem", diz claramente que o Homem é o caminho da Igreja. Estas afirmações podem causar hoje alguma suspeita por se pensar que equivalem a uma redução da Igreja ao domínio antropológico. Mas trata-se de uma antropologia pensada teologicamente. Admito que possa haver algum risco, mas este não é uma fatalidade. Nós pensamos o ser humano a partir do verdadeiro Homem, que na fé cristã é Jesus, como se lê no n.º 22 da "Gaudium et spes" [constituição do Concílio Vaticano II sobre a Igreja no mundo atual].
Testemunhar o Evangelho pela vida, dar a mão aos outros, ser pastor, ou seja, caminhar com outros, tem muito, muito, muito a ver com o conhecer o direito e o avesso da alma humana, saber-lhe as grandezas e as misérias, a capacidade que tem de criar o mais belo e a maior aberração. Não é preciso ir muito longe na História para perceber como é assim. O padre deve saber que o Homem caminha no fio da navalha, entre o céu e a terra, entre as alturas e a profundidade mais abissal. Por isso o padre tem de ser uma ponte que trabalha a partir desta realidade, porque sabe que é enviado a essas pessoas, e não a uma ficção teológica.
Este conhecimento do ser humano tem implicações em termos culturais, porquanto percebemos onde é que a alma se diz. Lemos Dostoievski e encontramos muito da psicologia humana dita em forma de romance; estudamos a filosofia antiga e temos muito do que é o ser humano; e o mesmo acontece se ouvimos Bach ou Arvo Pärt. A teologia e a poesia, a arte plástica e a arte popular constituem montras antropológicas.
Não beatifico a arte pela arte, mas encontro nela muito do que vai no coração humano, o que não significa que comungue com todas as suas perspetivas. Em todo o caso, a arte é uma instância de diálogo com quem se conflitua em termos de mundividência. É preciso educar para o diálogo com a opinião contrária, o que hoje é muito difícil.»
Homem da palavra
«O padre foi e será cada vez mais um homem da palavra. O mecânico tem um conjunto de ferramentas na oficina, o médico tem um bisturi e um estetoscópio; o padre trabalha com gestos rituais e com as palavras. A nossa grande ferramenta é o uso da palavra. Na catequese, na pregação, numa reunião, estamos sempre a ser chamados a usar a palavra em público. Palavra que é Cristo, em primeiro lugar, e depois Palavra traduzida em palavras. O ministério presbiteral é o ministério da tradução. A nossa missão é traduzir Deus para os homens e os homens para Deus. Este é um serviço da palavra através do discurso, da exegese, da hermenêutica, do saber ouvir e do saber dizer.
Isto implica ser frequentador da palavra, seja da Sagrada Escritura, seja do melhor que a literatura produziu. Aprender com os grandes mestres da palavra a usar a língua portuguesa. Ao limite, e para usar uma imagem, todos deveríamos ser como o Padre António Vieira.
O nosso discurso podia ser quase todo decantado em chave poética porque tem de usar palavras humanas para remeter para além delas. E a poesia é o que mais se aproxima dessa dimensão.
O conhecimento da palavra só se conhece com a leitura, com o interesse, com o decorar. Quanto mais eu leio, mais eu entro no bom uso da língua, para comunicar com beleza. Este é um grande desafio na formação presbiteral. O escritor Octavio Paz dizia que um povo começa a corromper-se quando se corrompe a sua gramática. O povo de Deus também tem a sua gramática, mas temos de a estimar e cultivar, não só para não nos corrompermos, mas também para podermos saber o que dizer.
Hoje, a nossa capacidade de penetração num texto longo é contrariada por uma cultura, muito mais instantânea, do pequeno texto, dos 140 caracteres, que tem as suas virtualidades. Mas convém ter consciência de que esta tendência gera mentes menos dispostas a textos mais longos e reduz o campo lexical. Os padres e seminaristas não estão fora desta dinâmica cultural. À medida que se restringe o meu dicionário pessoal, diminui a minha capacidade de dizer o Mistério. Se isto é assim, trata-se de um fenómeno muito sério e preocupante.
Falar outras línguas é muito mais do que ter novas ferramentas comunicativas. É a capacidade de mergulhar num campo cultural diferente. Se eu sou capaz de falar outras línguas, serei provavelmente mais apto para trabalhar noutros paradigmas culturais. Isto enriquece-me e enriquece a minha capacidade de intervir no mundo.»"
Depoimento: P. Alexandre Palma
Redação: Rui Jorge Martins
in SNPC a 16.11.13