Um artigo que me parece interessante e que me deixa alguma esperança quanto à formação de uma nova geração de padres…
(…) Além do Mestrado Integrado em Teologia, cinco anos de estudos na Universidade Católica Portuguesa com disciplinas de Filosofia, Bíblia, História, Teologia Sistemática e Prática, Línguas, Psicologia e Sociologia, a formação no seminário abrange aulas de música, conferências, cinema, leituras e visitas a exposições.
Compreender a cultura atual
Para usar uma imagem bíblica, diria que é uma espécie de educação para a sabedoria, que pertence ao carácter do ser padre. Sempre foi importante, e hoje é-o ainda mais, que os sacerdotes sejam pessoas sábias em todas as dimensões da vida, cultivando o lado intelectual e afetivo, o estudo individual e o encontro com os que lhe estão próximos, a procura da oração intensa que não esteja desligada de uma vida caritativa verdadeira. Uma das missões do seminário é desenvolver a harmonia de todas as notas que compõem a pauta da vida, contribuindo para que o cérebro não atrofie o coração e o coração não renegue o pensar.
Na continuidade deste grande horizonte da formação cultural, existem desafios concretos no dia-a-dia de quem aqui procura descobrir a vocação e responder-lhe. É nesta perspetiva que se situa a educação e o estímulo para a sensibilidade, o que abrange a capacidade de deixar falar os afetos e o encantamento pela expressão artística. Trata-se de gerar conhecimento e interesse não apenas no sentido técnico, mas sobretudo de desenvolver o gosto por saborear as coisas belas do mundo e do génio humano. E aqui há muito trabalho a fazer porque o universo é um tesouro infinito.
O espanto e o encantamento constituem a primeira atitude de quem ama a sabedoria, isto é, da filosofia, que, em certo sentido, é irmã da mística, dado que esta nasce também de uma atitude de êxtase, do sair de si.
Uma das minhas preocupações é ajudar quem aqui se educa a perceber qual é o nosso momento cultural e a hora que lhe é dado viver. Não se dê o caso de nos prepararmos para viver o mundo que já não é – ou que ainda não é – o nosso. Sondar o que caracteriza a cultura enquanto epifania do que a sociedade vai vivendo, sabendo que, com frequência, as expressões culturais são cristalizações do que se vai fermentando, por vezes de forma escondida e silenciosa.
Por outro lado, e sem querer entrar na polémica dos conceitos, procuramos também dar a descobrir o que é a pós-modernidade, como é que apareceu, o que trouxe de novo, o que trouxe de mau, o que deixou para trás. E, ao mesmo tempo, tentar antecipar o rumo que a sociedade vai tomar, o que é quase uma lotaria.»
Perito em Deus e na humanidade
Testemunhar o Evangelho pela vida, dar a mão aos outros, ser pastor, ou seja, caminhar com outros, tem muito, muito, muito a ver com o conhecer o direito e o avesso da alma humana, saber-lhe as grandezas e as misérias, a capacidade que tem de criar o mais belo e a maior aberração. Não é preciso ir muito longe na História para perceber como é assim. O padre deve saber que o Homem caminha no fio da navalha, entre o céu e a terra, entre as alturas e a profundidade mais abissal. Por isso o padre tem de ser uma ponte que trabalha a partir desta realidade, porque sabe que é enviado a essas pessoas, e não a uma ficção teológica.
Este conhecimento do ser humano tem implicações em termos culturais, porquanto percebemos onde é que a alma se diz. Lemos Dostoievski e encontramos muito da psicologia humana dita em forma de romance; estudamos a filosofia antiga e temos muito do que é o ser humano; e o mesmo acontece se ouvimos Bach ou Arvo Pärt. A teologia e a poesia, a arte plástica e a arte popular constituem montras antropológicas.
Não beatifico a arte pela arte, mas encontro nela muito do que vai no coração humano, o que não significa que comungue com todas as suas perspetivas. Em todo o caso, a arte é uma instância de diálogo com quem se conflitua em termos de mundividência. É preciso educar para o diálogo com a opinião contrária, o que hoje é muito difícil.»
Homem da palavra
Isto implica ser frequentador da palavra, seja da Sagrada Escritura, seja do melhor que a literatura produziu. Aprender com os grandes mestres da palavra a usar a língua portuguesa. Ao limite, e para usar uma imagem, todos deveríamos ser como o Padre António Vieira.
O nosso discurso podia ser quase todo decantado em chave poética porque tem de usar palavras humanas para remeter para além delas. E a poesia é o que mais se aproxima dessa dimensão.
O conhecimento da palavra só se conhece com a leitura, com o interesse, com o decorar. Quanto mais eu leio, mais eu entro no bom uso da língua, para comunicar com beleza. Este é um grande desafio na formação presbiteral. O escritor Octavio Paz dizia que um povo começa a corromper-se quando se corrompe a sua gramática. O povo de Deus também tem a sua gramática, mas temos de a estimar e cultivar, não só para não nos corrompermos, mas também para podermos saber o que dizer.
Hoje, a nossa capacidade de penetração num texto longo é contrariada por uma cultura, muito mais instantânea, do pequeno texto, dos 140 caracteres, que tem as suas virtualidades. Mas convém ter consciência de que esta tendência gera mentes menos dispostas a textos mais longos e reduz o campo lexical. Os padres e seminaristas não estão fora desta dinâmica cultural. À medida que se restringe o meu dicionário pessoal, diminui a minha capacidade de dizer o Mistério. Se isto é assim, trata-se de um fenómeno muito sério e preocupante.
Falar outras línguas é muito mais do que ter novas ferramentas comunicativas. É a capacidade de mergulhar num campo cultural diferente. Se eu sou capaz de falar outras línguas, serei provavelmente mais apto para trabalhar noutros paradigmas culturais. Isto enriquece-me e enriquece a minha capacidade de intervir no mundo.»"
Depoimento: P. Alexandre Palma
Redação: Rui Jorge Martins in SNPC a 16.11.13
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