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Há uma cultura homofóbica nas Forças Armadas?
Por Bruno Horta
Não há homossexuais assumidos nas Forças Armadas. A hierarquia superior e o ministro da Defesa dizem que a Constituição é cumprida, mas o bispo das Forças Armadas descreve um ambiente discriminatório dentro dos quartéis. Sargentos e oficiais homossexuais falam em "cultura homofóbica" e optam por esconder a sua identidade.
Januário Torgal Ferreira, bispo das Forças Armadas e de Segurança, descreve o ambiente militar que envolve gays e lésbicas: "Sinto que se olha a homossexualidade como uma ofensa de lesa-majestade. Há quem entenda que estas pessoas nem sequer deveriam ser autorizadas a ingressar, porque contaminam a raça e a tribo", diz ao P2. "Nas conversas do dia-a-dia, salpicadas de humor e às vezes de grande sanha, é voz corrente que "qualquer dia isto [homossexualidade] é obrigatório". Oiço também dizer que são pessoas que desprestigiam, porque têm um comportamento desviante e o que fazem é de uma incorrecção hedionda", conclui o bispo, sem querer alongar-se em explicações.
Muita coisa mudou desde a declaração televisiva do coronel Galvão de Melo (1921-2008), da Junta de Salvação Nacional, pouco depois do 25 de Abril de 1974: "A Revolução não foi feita para prostitutas e homossexuais." Desde 2004, o artigo 13.º da Constituição determina que a orientação sexual não pode motivar a discriminação dos cidadãos. As uniões de facto (2001) e o casamento civil (2010) alargaram-se aos homossexuais. E a visibilidade social de gays e lésbicas nunca foi tão forte. Portugal aparece em 13.º lugar na lista Rainbow Europe Country Index, elaborada em 2010 pela associação ILGA-Europe, relativa às garantias legais dadas aos cidadãos homossexuais nos 50 países europeus. Apesar de tudo, será que a identidade destas pessoas é respeitada pela instituição militar? As chefias alegam cumprir a lei, mas, perante perguntas concretas, optam por argumentos vagos.
O P2 pediu aos porta-vozes dos três ramos das Forças Armadas que comentassem as palavras de Januário Torgal Ferreira, o que estes recusaram, sem apresentar justificações. Sobre o mesmo ponto, o ministro da Defesa, Augusto Santos Silva, disse através do assessor de imprensa, Filipe Nunes, que "a organização das Forças Armadas obedece ao preceituado na Constituição e na lei", logo "nenhum militar pode ser discriminado em função da sua orientação sexual."
O que contam um ex-militar e dois militares no activo, que aceitaram falar sob anonimato e desde que não fossem divulgados pormenores sobre a sua situação profissional, por isso alegadamente lhes prejudicar a carreira, sugere a existência de uma segregação tácita contra os homossexuais nas Forças Armadas. Os próprios admitem e adoptam os preconceitos que os rodeiam. "É uma instituição com uma cultura homofóbica, mas acabamos por nos integrar porque é assim que aquilo funciona", diz um oficial gay da Marinha, com menos de 30 anos. "Vivemos num armário que não nos é imposto, mas que é cultural. Quem não o aceita não consegue viver bem nas Forças Armadas", acrescenta um sargento da Força Aérea, com mais de uma década de experiência.
Os porta-vozes do chefe do Estado-Maior de cada ramo das Forças Armadas também foram questionados sobre se há homossexuais assumidos na instituição militar. "A Marinha não tem conhecimento de qualquer dos seus militares que se tenha assumido publicamente, incluindo no interior da instituição", diz o comandante Alexandre Santos Fernandes, porta-voz da Marinha. O tenente-coronel Hélder Perdigão, porta-voz do Exército, e o coronel Mário Gaspar, porta-voz da Força Aérea, também "não têm conhecimento". Quanto aos efeitos de uma possível assunção pública de homossexualidade por parte de militares, responde Alexandre Santos Fernandes que não teria "nenhuns efeitos". O Exército e a Força Aérea dizem que "depende das circunstâncias concretas dessa assunção", mas preferem não detalhar.
Por que motivo não há então homossexuais assumidos entre os 50 mil militares portugueses? "Os aspectos da vida privada dos militares só aos próprios dizem respeito", justifica o Exército. "É uma questão do foro íntimo de cada um", responde a Força Aérea. "A sexualidade de cada indivíduo, seja ele civil ou militar, é um assunto do foro privado", defende a Marinha.
"Não sejam maricas"
António Reis Marcos voluntariou-se para o Exército aos 22 anos. Nasceu em Vilarinho da Castanheira, concelho de Carrazeda de Ansiães, estudou Engenharia Informática no Instituto Politécnico de Bragança, mas o curso correu mal e ele queria independência económica em relação aos pais - por isso alistou-se. "O meu irmão fez o serviço militar obrigatório; de resto, nunca tive nenhum familiar nas Forças Armadas." A recruta e a especialidade, fê-las na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, como voluntário. Só depois assinou contrato. De Mafra foi para Viseu e daí para Vila Real, durante cinco anos. "Nunca tinha experimentado qualquer contacto homossexual. Cheguei a ter uma namorada, mas, como é óbvio, as coisas não funcionavam. A minha orientação sexual estava indefinida em termos de vida futura, mas muito bem definida em termos de desejo. Marcava encontros através da Internet e comecei a aproximar-me daquilo que me interessava. Foi um pouco por causa disso que acabei por pedir transferência para Lisboa. Queria conhecer outras coisas e, no fundo, sabia que na capital era mais fácil ter alguma vida gay." Foi colocado no quartel de Paço de Arcos e, nessa altura, na vida civil, iniciou uma relação estável.
Ainda que mencione algumas dificuldades, este antigo sargento também teve experiências positivas. "Uma vez, contei a um primeiro-sargento. Ele era heterossexual, mas, como trabalhávamos juntos, fui ganhando confiança. Mais tarde, conheci a mulher e os filhos dele. Senti sempre uma abertura muito grande. Eu até brincava e dizia: "Qualquer dia, tens de experimentar". E ele respondia: "Nem pensar, tenho medo de gostar"."
A homossexualidade terá sido irrelevante para a saída de António Reis Marcos do Exército. Mas o à-vontade que acabou por sentir deveu-se ao facto de estar de passagem. "Mesmo assim, sabendo o que sei hoje, acho que ser homossexual não me teria impedido de ascender dentro da instituição, se fosse caso disso. Aquilo tem regras muito definidas e sobe-se com alguma tranquilidade. Só alguém claramente efeminado é que pode ter mais dificuldades."
O oficial da Marinha que aceitou falar com o P2 está de acordo: "Raramente há homossexuais efeminados nas Forças Armadas". "Não sei se se auto-excluem ou são excluídos na selecção. O meio militar é muito machista. O estereótipo do bom oficial é aquele que entende bem as pessoas, que sabe liderar, que tem uma estrutura psicológica à prova de bala. Ser viril e heterossexual são elementos secundários, parte-se do princípio de que já lá estão. É como a boa forma física: é um dado adquirido para a instituição." É isso que leva os militares a esconderem a sua homossexualidade? "Em parte, sim", responde.
O mesmo oficial chama a atenção para um aspecto: "Há uma diferença muito importante entre os oficiais do quadro permanente e militares contratados". Em que termos? "Se se souber que um militar contratado é gay, pode não lhe acontecer nada, porque ele acaba por sair daí a poucos anos ou meses, quando o contrato termina. Já o oficial é um militar que fica na instituição para sempre e só sai se cometer um erro do outro mundo. A única maneira de o subjugar, em caso de homossexualidade, é criar-lhe obstáculos."
Há casos concretos? "Há pouco tempo, um oficial que já tinha bebido uns copos meteu-se com dois ou três cadetes do primeiro ano durante um baile na Escola Naval [na Base do Alfeite, em Almada]. Pode ter sido apenas um mal-entendido, mas consta que ele disse qualquer coisa de cariz sexual. Dias depois, levou com um processo disciplinar em cima. Um processo que não deve falar sobre homossexualidade, porque eles não deixam registo escrito destas situações. É um oficial que, à partida, tem a carreira dificultada nos próximos tempos: mandam-no fazer trabalho administrativo. Nada disto está escrito num regulamento, são procedimentos informais."
Alexandre Santos Fernandes confirma a ocorrência do episódio e diz que houve "aplicação de procedimento disciplinar." Afirma, contudo, que "nunca o apuramento de responsabilidades poderia justificar-se pela orientação sexual do indivíduo, pois essa não é uma preocupação da instituição".
Interrogado sobre se há alguma regra não escrita que tenha em vista prevenir a demonstração de comportamentos homossexuais por parte dos militares, o porta-voz da Marinha afirma que "as normas do Regulamento de Disciplina Militar, pelas quais se rege a Marinha, não fazem qualquer referência à orientação sexual dos militares". E remete para os Padrões e Códigos de Conduta, aprovados em 2008 pelo chefe do Estado-Maior da Armada. O documento, de duas páginas, foca, entre outros aspectos, o assédio sexual e estabelece que a Marinha "condena vivamente" tal comportamento. A hipótese de o assédio sexual acontecer entre pessoas do mesmo sexo é ignorada: "Tradicionalmente, o assédio sexual manifesta-se de um indivíduo do sexo masculino sobre um indivíduo do sexo feminino. Contudo, a situação inversa também poderá acontecer", lê-se.
Alexandre Santos Fernandes acrescenta que "a qualidade dos cargos e das funções desempenhadas, o registo disciplinar, as avaliações individuais e a antiguidade no posto" são os principais critérios de progressão na carreira, sustentando que a Marinha "respeita o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição". Não fica explicada a existência ou não de procedimentos informais para lidar com militares homossexuais.
No capítulo das regalias e benefícios sociais, como sejam a assistência médica ou a habitação para militares fora da área de residência (guarnição), nenhum dos entrevistados disse saber de qualquer acto discriminatório contra gays e lésbicas - sejam solteiros, casados ou unidos de facto. Quem coordena a acção social das Forças Armadas é o Instituto de Apoio Social das Forças Armadas (IASFA) e a ele podem recorrer, segundo os porta-vozes dos três ramos, os militares dos quadros permanentes (no activo, reserva e reforma) e o pessoal militarizado das Forças Armadas, assim como os cônjuges, descendentes e ascendentes que estejam a cargo dos militares. "As condições específicas proporcionadas aos militares estão conformes à legislação e são válidas para todos", diz Mário Gaspar.
Um relatório de 2008 da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) indica que "gays e lésbicas ainda enfrentam uma resistência significativa dentro das Forças Armadas, ainda que as chefias militares tenham um discurso contra a homofobia". Intitulado Handbook on Human Rights and Fundamental Freedoms of Armed Forces Personnel, o relatório é assinado por Ian Leigh (Universidade de Durham, Reino Unido) e Hans Born (Centre for the Democratic Control of the Armed Forces, Suíça). "Os militares homossexuais são frequentemente obrigados a trabalhar num ambiente hostil e, por vezes, são alvo de perseguição, devido à sua orientação sexual. Tal perseguição inclui palavras ofensivas, piadas, insultos e, até, violência sexual ou agressões violentas", lê-se. "Uma das formas mais comuns de discriminação inclui políticas ou práticas informais, que podem influenciar a progressão na carreira."
Questão legislativa
O Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFA), lei da Assembleia da República que regula os direitos e os deveres dos militares portugueses, faz tábua rasa da orientação sexual. O número 2 do artigo 18.º estabelece que "o militar não pode ser prejudicado ou beneficiado em virtude da ascendência, sexo, raça, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, situação económica ou condição social". O Estatuto foi aprovado em 1999 (Decreto-Lei 236/99, 25 de Junho). Desde então, sofreu pelo menos oito alterações e rectificações, a última das quais em 2009. A actual redacção do artigo 13.º da Constituição é de 2004. Ainda assim, a orientação sexual nunca passou a constar do número 2 do artigo 18.º. Ao P2, nem os chefes do Estado-Maior de cada ramo das Forças Armadas nem o ministro da Defesa quiseram explicar porquê.Informa a Marinha, por intermédio de Alexandre Santos Fernandes: "A falta de referência à orientação sexual no artigo 18.º do EMFA não poderá ser interpretada enquanto derrogação ao exercício de direitos pelos militares". A Força Aérea e o Exército remetem resposta para o Ministério da Defesa, sustentando tratar-se de "uma questão legislativa que deverá ser colocada à tutela e não a um ramo das Forças Armadas em particular". Interrogado pelo P2, o ministro da Defesa repetiu, através do assessor de imprensa, a mesma frase com que comentara as palavras do bispo das Forças Armadas.
Para a constitucionalista Isabel Moreira, "é especialmente curioso que não seja referida a orientação sexual numa lei referente às Forças Armadas, conhecidas que são pela sua resistência à homossexualidade assumida". Segundo a especialista, "parece ter havido uma vontade clara de não incluir a questão da orientação sexual" no EMFA, visto que desde 2004 houve várias oportunidades para o fazer. "Tal como está, o artigo 18.º concretiza de forma imperfeita o estabelecido no artigo 13.º da Constituição", afirma.
No dizer desta especialista, a questão técnica é a seguinte: "Em 2004, a orientação sexual passou a ser considerada uma categoria suspeita nos termos da Constituição, ou seja, qualquer lei geral que discrimine em função da orientação sexual é à partida inconstitucional. A legislação laboral, quando reproduz os princípios do artigo 13.º, deve estar conforme à Constituição, por uma questão de exequibilidade". No entanto, mesmo que isso não aconteça, como no caso do EMFA, diz a constitucionalista que "não implica obviamente que um trabalhador possa ser discriminado".
Heterossexualidade social
Quanto ao facto de os militares estarem sujeitos a restrições ao "exercício de alguns direitos e liberdades", como estabelece o número 1 do mesmo artigo 18.º, nada significa nesta questão, segundo Isabel Moreira. "Seria absurdo invocar a restrição de direitos para justificar a homofobia. Há cargos, como o de Presidente de República, ou médico ou juiz, que também implicam restrições de direitos. Os juízes, por exemplo, estão proibidos de acumular funções. Quando a lei restringe determinados direitos em função da actividade profissional, está a dizer que todas as pessoas estão aptas a desempenhar aquela profissão, mas quem a desempenha prescinde do exercício de certos direitos. O que a lei não está certamente a dizer é que uma pessoa, por ser mulher ou homossexual, não pode exercer uma profissão."
Quer isto dizer que a homofobia está ausente da instituição militar ou que não é uma questão de relevo? O sargento da Força Aérea reconhece que há discriminação, mas desvaloriza-a: "Durante a recruta, por exemplo, os instrutores costumam dizer "mexam-se, seus maricas" ou "são todos umas meninas". A recruta funciona por estímulos, tem de ser agressiva e enérgica, tem de haver berros que formem o estímulo, não pode ser com explicações detalhadas e serenas, senão não resulta. Também se diz "parece que são todos surdos" e não acho que isso signifique que quem dá a ordem está a discriminar as pessoas deficientes." O oficial da Marinha que falou com o P2 assume-se para si mesmo como homossexual. A família mais próxima sabe. E ele já teve namorados. No entanto, não frequenta bares ou discotecas gays, com medo de ser reconhecido e assim comprometer a carreira profissional. Dentro da instituição, expõe uma heterossexualidade social. "Apreciar mulheres nas conversas com os meus camaradas faz parte da tradição. Sei que não pode ser de outra forma, mas o mundo civil também não é muito diferente. Quantos políticos [homossexuais] assumidos há em Portugal?", questiona.
O porta-voz da Marinha assegura que a instituição "não obriga ninguém a fazer-se passar pelo que quer que seja" e explica que "os comportamentos do militar que não digam directamente respeito à sua condição enquanto tal, e que não afectem ou respeitem às suas funções ou ao trabalho desempenhado, não importarão à instituição, salvo nos casos em que a relação funcional seja afectada".
Ao conhecimento de Paulo Côrte-Real, presidente da ILGA - Portugal, associação de defesa dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais e transgénero (LGBT), nunca chegaram queixas de militares homossexuais. "O silenciamento imposto pelo preconceito dificulta denúncias", justifica aquele responsável. "Por vezes, esse silenciamento não é identificado enquanto prática discriminatória por não haver uma política explícita" de discriminação por parte das Forças Armadas.
A única prática discriminatória legal, admitida por sucessivos Governos, foi a da "psiquiatrização" da homossexualidade - em sintonia com o que, durante anos, era opinião vigente na comunidade médica mundial. Na era do serviço militar obrigatório, vigoraram cinco portarias e um decreto-lei contendo "tabelas de inaptidão e incapacidade", usadas nas juntas médicas e centros de selecção (inspecção). Cada ramo das Forças Armadas tinha as suas tabelas, algumas de antes do 25 de Abril. Continham extensas listas de doenças, malformações, deficiências e problemas físicos ou psíquicos. Em relação aos homossexuais, eram usados os termos "personalidades psicopáticas", "anormais sexuais", "invertidos" (Portaria 709/73, assinada por José Pereira do Nascimento, secretário de Estado da Aeronáutica). Na mesma tabela, consideravam-se inaptos os impotentes, os gagos e os inconformistas. Em textos posteriores, a homossexualidade passou a ser chamada "transtorno da personalidade" e "desvio sexual" (Portarias 28/89 e 29/89, assinadas por Eurico de Melo, ministro da Defesa).
O provedor de Justiça Meneres Pimentel declarou, em Maio de 1999, numa entrevista ao Diário de Notícias, que aquelas portarias eram "constitucionalmente intoleráveis", apesar de estarem alinhadas com a Classificação Nacional das Deficiências, elaborada pelo Conselho Superior de Estatística, um órgão do Estado. No Verão daquele ano, o primeiro-ministro António Guterres fez aprovar, e o Presidente da República Jorge Sampaio promulgou, o Decreto-Lei 291/99, que revogava todas as "tabelas de inaptidão" e criava uma nova. A questão homossexual fora central para a revogação: "[As tabelas] não respeitam a última revisão da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde" (OMS), lê-se no preâmbulo, em referência directa à retirada da homossexualidade da lista de patologias mentais, em 1990 (com efeitos a partir de 1994, como informa o site oficial da OMS).
O decreto de Guterres seria regulamentado por portarias de 1999, 2000 e 2001. Não é possível apurar quantos portugueses, à luz daquelas tabelas, foram considerados incapazes ou quantos se declararam homossexuais para não cumprirem o SMO. "Informação de carácter reservado", argumenta o Exército. "Dados sujeitos a sigilo médico", diz a Força Aérea. A Marinha, pelo comandante Alexandre Santos Fernandes, concretiza: "Os arquivos relativos aos processos de recrutamento são mantidos apenas durante seis anos, como legalmente determinado". Ou seja, os últimos processos, relativos a 1999, terão sido destruídos em 2005.
Terminada a era da conscrição, e das "tabelas de inaptidão" com referência aos homossexuais, terá a passagem ao regime de contrato e voluntariado estabelecido uma discriminação não assumida semelhante à da política "Don"t Ask, Don"t Tell" nos EUA? Entre 1994 e 2010, os militares norte-americanos estavam proibidos de revelar, dentro ou fora de serviço, a sua orientação sexual, porque isso alegadamente punha em causa a coesão e a disciplina. Ninguém lhes perguntava nada, eles mantinham-se calados e só por flagrante ou denúncia seriam exonerados. Foi o que aconteceu a mais de 13 mil militares, até 2009, de acordo com uma sentença de um tribunal federal da Califórnia, de Setembro do ano passado. Em Dezembro, o Senado deu o último passo de um longo processo que levou à revogação daquela política, tal como prometera o Presidente Barack Obama na campanha eleitoral de 2008.
Nenhum dos três militares entrevistados foi alguma vez questionado pela instituição sobre a sua orientação sexual. Os dois no activo não se assumem, nem tencionam fazê-lo. "As chefias não interferem na vida pessoal dos militares. Nunca um chefe me perguntou com quem durmo ou vou sair, nem nunca fez comentários", garante o sargento da Força Aérea. "E isto por uma razão simples: há uma grande distância entre as três categorias que compõem as Forças Armadas: oficiais, sargentos e praças. Um oficial não tem afinidade com um sargento ou um praça, e vice-versa, o que é normal e ajuda a manter a autoridade. A única coscuvilhice que existe é entre pares. Na messe, ouve-se comentar que esta é casada e anda a sair com aquele, tal como se ouve que um ou outro pode ser homossexual. É normal, acontece em qualquer local de trabalho."
"Talvez a desvalorização das dificuldades possa corresponder a homofobia interiorizada por parte dos militares", defende o psicólogo Nuno Nodin, mestre em Psicologia da Saúde e professor da licenciatura em Psicologia do Instituto Piaget. "As Forças Armadas parecem ter valores muito conservadores e estes militares, sendo homo ou bissexuais, podem querer estar em sintonia com o contexto, constrangendo a assunção plena das suas dimensões mais íntimas." Que efeitos pode tal atitude ter? "Uma grande autovigilância sobre o que se diz ou faz. Mesmo que a pessoa entre numa rotina e não se esforce tanto, isso tem um peso grande", explica Nuno Nodin. "Implica um desgaste mental, mesmo que a pessoa não tome consciência disso. A angústia ou a depressão podem verificar-se. Ou não. Depende de muitos factores. Um militar gay que tenha um contexto profissional adverso mas, por exemplo, uma relação afectiva satisfatória estará, à partida, mais equilibrado."
Numa frase, o jovem oficial da Marinha assina a conclusão: "Fazemos tudo o que os outros fazem, mas não nos mostramos por inteiro; não se pode dizer que estejamos sob pressão, para isso era preciso que eles soubessem o que somos."
In Público Maio 2011
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