As coisas do mundo dizem-nos tão pouco...
A vida de 27 Clarissas do Mosteiro de Santa Clara, em Monte Real, cruzou-se “por vontade de Deus”. A mais nova tem 22 anos; a mais velha 86. Em comum têm um mesmo desejo: seguir Jesus da forma mais radical que a Igreja prevê – a clausura.
Lurdes
Tem 28 anos, mas parece que o rosto parou de envelhecer aos 17, quando decidiu sair de casa para se tornar Clarissa.
Deixou a família na Guarda a braços com as perguntas dos amigos e conhecidos. “Que se passou com a Lurdes? Sofreu algum desgosto?” Dez anos depois abre as mãos, conservadas brancas pela quietude da clausura, e garante-nos que seguram o mundo. “Redondo, a girar.” Lurdes vigia-o, reza por ele.
“É feliz?” Responde, quase sem pensar, com outra pergunta: “Não se nota?” Quebrámos a hora do silêncio maior entre as 14 e as 15 horas, para conversar, a sós, na horta. “Claro que tenho saudades lá de fora. De quando ia passear. Gostava de ir à serra da Estrela. Sentia Deus naquela imensidão de terra. Mas cá dentro o mundo é maior.”
Ao jantar, Lurdes é a mais atenta de todas. Observa-nos, sorri quando cruzamos o olhar com o dela. Parece divertida com o ar deslocado e de aflição permanente típico de quem acabou de chegar.
No refeitório só há um objecto de decoração – um quadro da Última Ceia de proporções consideráveis. As mesas e as cadeiras, dispostas em rectângulo, ocupam quase toda a sala.
A encabeçar o desenho está Maria Clara, a abadessa, que, minutos depois do início da refeição, abre uma gaveta pequenina por debaixo da mesa e, surpreendentemente, retira o comando da televisão. Ao jantar assiste-se aos primeiros 15 minutos do telejornal. “As únicas notícias que interessam”, justifica. Mas afinal vêem televisão? Todas se riem da pergunta. “Claro. Para podermos rezar pelo mundo precisamos de saber o que se passa.”
Donzília
Dizem que se afastaram do mundo por tanto o amarem. Rezam, trabalham e vivem numa comunidade silenciosa, longe dos olhares e dos vícios da sociedade. Vinte e quatro horas por dia, prestam adoração ao Santíssimo Sacramento na igreja do mosteiro. Acordam a meio da noite para se revezarem em turnos que duram uma hora. Levantam-se, vestem o hábito, lutam contra o sono e percorrem os enormes corredores sem luz natural que ligam as celas à igreja.
Conhecem a geometria da casa e por isso não precisam de acender as luzes. Enquanto o resto do mundo dorme, as Clarissas caminham, silenciosas, no meio da escuridão. Na igreja, em frente ao baldaquino, ajoelham e ficam em contemplação.
Donzília é, aos 73 anos, a irmã sacristã. Toma conta da igreja quando, às seis da tarde, os fiéis começam a chegar para assistir à missa. É a única que dá a cara. O resto da comunidade habita no coro, na parte de cima da igreja, escondida dos olhares curiosos. Donzília é uma das mais antigas da casa e interpela os fiéis pedindo-lhes que façam as leituras. Rodopia à volta do padre André Batista, que é capelão da base aérea de Monte Real, prepara as hóstias, acende os candelabros.
No final da celebração apaga as velas e recolhe ao coro. As Clarissas esperam que a igreja fique vazia e, até às oito da noite, a hora do jantar, concentram-se nos breviários e desdobram-se em orações e cânticos.
Ana
É pequenina e não parece ter mais de 20 anos. Mas Ana Maria já conta 38 e chegou a Monte Real há nove. Não sabe explicar porquê. “É Ele quem nos escolhe”, diz. Nem sequer era baptizada quando, aos 23 anos, se aproximou da Igreja.
Terminou o curso de Línguas e Literaturas Clássicas na Universidade de Aveiro e quis ser baptizada. Ainda deu aulas de Português e Latim. Passou por Cascais, Serpa, Beja e Santiago do Cacém. No espaço de um mês tomou a decisão que lhe mudou a vida. E começou a procura pelas várias ordens religiosas em Portugal.
Quando encontrou o nome do Mosteiro de Santa Clara na lista, estremeceu. “Anos antes, tinha ligado para as informações à procura de um número de um amigo e, por engano, deram-me o do mosteiro.” Ligou, atendeu a irmã Maria Clara, pediu desculpa pelo engano e o episódio caiu no esquecimento. Nessa altura a vida religiosa era coisa que não lhe passava pela cabeça.
Entretanto, um colega de Latim apaixonou-se por ela. Nunca conseguiu corresponder-lhe. Um dia conheceu um advogado que lhe disse: “Ana, gosto de ti, mas não consigo tocar-te e não sei porquê.” Nunca mais se viram. Agora não tem dúvidas de que “foram sinais de Deus” a indicar-lhe o caminho.
No início queria ser missionária. “Mas quantas pessoas iria ajudar? Na clausura, pela oração, consigo interceder pela humanidade inteira”, acredita. Pouco antes de chegar a Monte Real ganhou uma bolsa para uma pós-graduação na Grécia. Mas nem isso a convenceu.
“As vocações não são nenhum bicho-de-sete-cabeças nem são histórias místicas”, explica a abadessa, Maria Clara. “São escolhas racionais e dolorosas, porque as famílias não aceitam, especialmente no primeiro momento.”
Quando Maria Fernanda decidiu abandonar a carreira do ensino, aos 22 anos, a mãe telefonou para todos os mosteiros para saber onde estava. Quando conseguiu a morada do de Monte Real, “apareceu cá, arreliada”, mas acabou por aceitar a escolha da filha. “E fui eu que lhe vali quando ela morreu”, recorda Maria Clara.
Maria Clara
A abadessa, eleita por voto secreto pela comunidade, faz parte do grupo inicial de quatro mulheres que acompanharam Maria Teresa, a fundadora, quando se mudou do Mosteiro do Louriçal para abrir uma nova casa em Monte Real. Tinha 19 anos e um namorado. Décadas mais tarde reencontraram-se. Ele casado, ela de hábito. “Disse-me que não me tinha esquecido, mas eu disse-lhe que não pensava voltar atrás.” Perguntou-lhe se era feliz. Ela disse que sim. “Eu sei. Percebi assim que te vi passar.” Foi a última vez que se encontraram.
Arriscamos a pergunta: e viver sem sexo, como é? “Tentamos elevar o lado espiritual. Nenhum caminho na vida é perfeito e completo. Mas aqui há uma relação espiritual com Deus que suplanta todas as dificuldades. Aliás, toda a relação de amor entre um casal suplanta a ligação física, e é isso que há com o meu marido, que é Deus”, responde. “Dizem que vivemos em clausura, mas lá fora é que se vive enclausurado. É-se escravo do trabalho, do dinheiro, de preocupações que aos nossos olhos não significam nada.”
E o próprio recolhimento tem limites. As Clarissas podem sair em caso de doença grave de um familiar e estão autorizadas a receber visitas no locutório, uma sala à entrada do mosteiro, dividida a meio por um pequeno muro. É aí que recebem também pedidos particulares de orações. Ultimamente, a maioria chega pela internet. E nenhum é recusado.
Nos 37 anos de história do mosteiro, as Clarissas deram abrigo a mulheres vítimas de violência doméstica, atenderam pedidos de ajuda desesperados a meio da noite. “Como uma mulher que se preparava para se suicidar na praia da Vieira”, recorda Maria Fernanda. Não negam esmola a quem lhes bate à porta e chegaram a dar guarida, durante nove anos, a um homem que aparentemente não tinha nada, logo a seguir ao 25 de Abril.
Quando morreu descobriu-se que era dono de vários prédios em Lisboa. Deixou-lhos em testamento, mas repudiaram o documento. Apesar disso, a comunidade não recebe qualquer subsídio da Igreja, por isso têm de trabalhar. Venderam os trabalhos de costura, até há bem pouco tempo, a uma loja em Lisboa. “Mas a crise chega a todo o lado e o acordo caiu por terra”, explica a abadessa.
A principal fonte de rendimento é a pequena hospedaria, contígua ao mosteiro. Mas o negócio é sazonal – os turistas só chegam a Monte Real no Verão, para a praia ou para as termas. Todos os meses há despesas. “Só para a Segurança Social vão mais de mil euros.”
Para poderem tratar destes assuntos, e apesar de viverem em clausura, quatro Clarissas têm autorização do Vaticano para sair quando for necessário. E gostam? A resposta é categórica: não. “Quando saio só quero voltar para casa o mais depressa possível. As coisas do mundo dizem-nos tão pouco...”
Rosa Ramos (i) / SNPC
Para saber mais sobre as clarissas:
http://www.clarissasmontereal.com/
http://clarissasmontereal.blogspot.pt/
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