Este texto é de autoria de Frederico Lourenço, foi publicado na sua página de Facebook e foi-me autorizada a sua utilização neste blogue.
Deus – nos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen
"No dia 2 de Setembro deste ano, tive o grato prazer de participar numa conversa íntima (só que diante de 400 pessoas) sobre a obra poética de Sophia de Mello Breyner Andresen. Os meus interlocutores eram Ana Luísa Amaral e Miguel Sousa Tavares. Fomos admiravelmente moderados por Anabela Mota Ribeiro. O auditório da Biblioteca Almeida Garrett (Porto) encheu-se para nos ouvir – e tanto a Ana Luísa como o Miguel deram pistas extraordinárias para a compreensão da poesia de uma autora que, cada vez mais, se revela aos falantes de língua portuguesa como criadora de uma obra que, na sua aparente e desarmante simplicidade, está, como a de Mozart, ao nível do maior conseguimento artístico em termos absolutos.
A minha intervenção centrou-se sobretudo no tema «Sophia e Deus». Há muito tempo que esta pista para a compreensão da sua obra me atrai e fascina. Mas não é uma clave de leitura evidente. Na verdade, quem faça a extraordinária viagem da alma que é ler, de fio a pavio, as mais de 900 páginas da Obra Poética de Sophia de Mello Breyner Andresen na excelente edição da Assírio & Alvim, rapidamente chega a esta conclusão: nos poemas da genial autora não faltam «deuses». Mas «deus» é uma palavra que encontramos com muito menos frequência. E as vezes em que por «deus» se pode entender «Deus» são mesmo raríssimas.
No entanto, a obra poética de Sophia está cheia de Deus. Quantas vezes é enunciada a palavra «Deus» na «Arte da Fuga» de Bach? O facto de a resposta ser «zero» não significa que a «Arte da Fuga» não tenha como sujeito, tema e objecto «Algo» que só podemos enunciar por meio da palavra Deus.
Deus é ubíquo na obra poética de Sophia, porque é a sua aparente ausência que denuncia a sua presença. Num livro publicado em 1958, a autora escreve «és sempre um deus que nunca tem um rosto / por muito que eu te chame e te persiga» (Mar Novo).
Já antes, num livro publicado em 1947, lêramos uma das mais assombrosas definições de Deus que eu conheço: «Deus é no dia uma palavra calma / um sopro de amplidão e de lisura» (Dia do Mar).
Para Sophia, Deus não está ausente do mundo: está dentro dele, em cada milímetro quadrado do mundo. Basta estarmos atentos para captarmos a presença de «esse deus que se oferece, como um beijo, nas paisagens» (Dia do Mar).
Deus é o visível, é a imanência do real. Amá-lo significa amar a realidade, o visível: o «amor pelas coisas visíveis» e o canto poético que as celebra actuam como «oração em frente do grande Deus invisível» (Livro Sexto). Amar a Deus é amar o real.
Cinco anos após a publicação de Livro Sexto, foi-nos dado a ler em Geografia (1967) este credo extraordinário: «não trago Deus em mim mas no mundo o procuro / sabendo que o real o mostrará» (Geografia).
A relação entre o plano divino e o plano humano é vista como um enigma de sugestão e de silêncio: «Escuto e não sei se o que oiço é silêncio ou deus» (Geografia).
Que deus é este? É o Deus criador do céu e da terra? Em Geografia, lemos «o universo não brota das mãos de um deus do gesto e do sopro de um deus da alegria e da veemência de um deus».
É o Deus trino dos cristãos? «O Deus uno de desvios nos protege» (Ilhas)
É um Deus que nos dá a vida eterna? A única resposta de Sophia é: «Buscamos um deus que vença connosco a morte.... pois caminhamos nos cadafalsos do tempo» (Geografia).
Dentro deste deus não estarão deuses anteriores ao Deus cristão? Dioniso, «deus que nos deste a vida e o vinho» (Poesia, 1944)? E Apolo, «deus puro... deus sem espinhos e sem cruz» (Dia do Mar)?
Mas o Deus cristão também é puro. O que O separa do nada é a palavra. E não é o teólogo que tem poder sobre ela, mais sim o poeta, o aedo, «o recitador... que entoa a veemência pura da palavra, / Fronteira de puro Deus e puro nada» (O Nome das Coisas)
Numa obra poética exígua em igrejas cristãs, mas rica em templos gregos, afinal onde Deus está é cá fora – não é na igreja, não é no templo.
Porquê? Porque «a casa de Deus está na terra onde os homens estão» (Poemas Dispersos).
E perguntemos de novo: porquê? «Porque Deus nos criou para a alegria» (Poemas Dispersos)"
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