A propósito da recente morte do antigo bispo de Setúbal D. Manuel Martins, partilho um artigo de Setembro passado em modo de homenagem
Morre um bispo, vai morrendo meia Igreja
Marcelo Rebelo de Sousa na análise aos “católicos progressistas”.
"Quando no dia 19 de Abril assisti à apresentação do livro de Joaquim Franco e António Marujo sobre o Papa Francisco (Papa Francisco - A Revolução Imparável, Manuscrito, 2017), não esperava grande reflexão por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, que apresentava a obra. A simples presença do Presidente da República na inspiradora igreja do convento dos dominicanos, em Lisboa, era por si só motivo de aglomeração de gentes. Era já um facto inegável e um momento especial. Mas nada me faria prever uma mensagem que fosse além do que seria normal dizer sobre a pastoral de um jesuíta auto transformado em Francisco.
Mas como o melhor da vida são as coisas inesperadas, a apresentação do livro feita pelo Chefe de Estado fez jus ao que de melhor tem o professor Marcelo Rebelo de Sousa. Católico, conhecedor da realidade da sua Igreja, ator e personalidade atenta a esse universo e a toda a sociedade civil, Marcelo rapidamente complementou a sua reflexão sobre o Papa Francisco com uma reflexão sobre os autores, a forma apaixonada como abordaram este Papa e, acima de tudo, o próprio catolicismo nacional.
Teria sido muito bom se muitos bispos tivessem assistido à única e irrepetível aula de Marcelo sobre Cristianismo Contemporâneo e, em especial, sobre catolicismo e sociedade no Portugal contemporâneo. Se todos o sabemos conservador, de direita, o que ele afirmou foi de uma sobriedade, de um esclarecimento, de uma capacidade de entender o tecido social e a sua relação com as instituições, verdadeiramente única.
Que os autores do livro se posicionavam do lado dos que aguardavam do Papa ainda mais reformas, ainda mais posições a favor das questões sociais, das problemáticas que a Igreja tem vindo a adiar, isso era claro para Marcelo, tal o era para todos os que, em sintonia, assistimos à sessão. Mas Marcelo foi mais longe. Ao olhar intelectualmente para os autores, para o Joaquim Franco e para o António Marujo, fazendo a ressalva das suas jovens idades, colocava-os na genealogia dos católicos progressistas da década de sessenta do século passado.
E ao alinhar estes dois jornalistas com essa plêiade de intelectuais católicos, e de esquerda, valorizava de forma clara, explicitando-o, o lugar social da luta de esquerda dentro de uma Igreja que não pode ser monolítica. O ponto alto, para um quase êxtase místico de muitos que não esperavam ouvir isto, foi quando o católico e conservador Presidente da República afirmou que hoje faz falta, à Igreja e à sociedade, o incómodo, a luta desses católicos comprometidos com um discurso político de esquerda. E a Igreja está mais pobre na medida em que esse grupo vindo das décadas de sessenta e de setenta se vai erodindo, vai perdendo gente e espaço social, vai sendo menos influente. Essa via de pensamento e de atitude faz falta à Igreja Católica, afirmava Marcelo Rebelo de Sousa.
E hoje, essa via faz ainda mais falta. Faleceu talvez a voz mais consequente dos chamados católicos de esquerda, o “Bispo Vermelho”. É claro que a vitalidade de pensamento da Igreja Católica em Portugal tem várias outras vozes de consenso com a rutura, que não se preocupam por se aproximarem das margens, por fazerem novo pensamento fora da tradição e do imobilismo que gera o conservadorismo. Podemos ler Frei Bento Domingues, o.p., tal como o fazemos com Anselmo Borges. Podemos ter sempre a voz também incómoda e até irreverente de Januário Torgal Ferreira, bispo emérito das Forças Armadas e de Segurança, ou de Frei Fernando Ventura. Mas retomo Marcelo Rebelo de Sousa na sua ímpar capacidade de analisar a complexidade social.
Se as sociedades são diversas, se as interpretações dos Textos Sagrados são, também elas, diversas, então a unanimidade nunca será saudável em horizonte religioso, qualquer que ele seja. Marcelo Rebelo de Sousa deu-nos duas lições nessa sessão. Por um lado, que faz falta a diversidade, especialmente quando ela funciona como alarme social para nos fazer pensar e agir. Mas, por outro, deu-nos uma segunda lição: que a diversidade é sempre positiva e deve ser valorizada. Quem dera que os católicos de esquerda tivessem hoje mais peso, disse Marcelo.
Hoje têm, de facto, menos peso, numa Igreja que precisa destas vozes que nos estremeçam e nos retirem da letargia. Seja na Igreja Católica ou noutra confissão, seja em casa, na família ou no trabalho.
Ser conformado é a pior das sinas.
Coordenador da área de Ciências das Religiões da Universiade Lusófona"
In Público, 26 de Setembro de 2017
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