Entrevista a Teresa Forcades. Freira catalã aceita o aborto e o casamento gay
publicado em 22 Out 2013
Aos 47 anos, a irmã beneditina Teresa Forcades, com formação em medicina e teologia, divide a vida no mosteiro de St. Benet de Montserrat, a uma hora de Barcelona, com uma participação política intensa, como não tem receio de dizer. É uma das caras do movimento de cidadania Procés Constituent, que está criar o modelo para um estado independente e livre do capitalismo na Catalunha. Vem a Portugal em Novembro, para apresentar o seu livro "A Teologia Feminista na História", agora com tradução portuguesa. Não deixa ninguém indiferente: desde Abril, o movimento catalão reuniu 45 mil militantes. Na internet, há uma petição com 4700 assinaturas que pede à Santa Sé para intervir e repor a paz e calma abalada por Teresa, que defende o aborto ou casamento homossexual. Do Vaticano, diz só ter recebido uma carta em 2009, à qual que respondeu invocando o seu direito à opinião.
Em Setembro a BBC chamou-lhe a freira mais radical da Europa. Gosta deste título?
Nunca gostei de rótulos. Gosto que, em vez de me porem um rótulo, que quem fale de mim seja porque me conhece. Agora, a verdade é que acredito que o Evangelho nos pede uma resposta radical perante a injustiça social. Se é por isso que me chamam radical, porque digo que não se pode servir a Deus e ao dinheiro e hoje temos um sistema económico que coloca acima das pessoas o dinheiro, está certo. É o que sou. É isso que procuro denunciar.
Sente-se a fazer política?
Creio que a palavra política é boa. O que não estou a fazer, nomeadamente na Catalunha, é a criar um partido político. Não me sinto a fazer política partidária, política profissional. Também não sinto que esteja a substituir a minha vocação monástica por uma vocação política. Mas, partindo da minha vocação monástica, assim como todas as pessoas que participam no movimento Procés Constituent têm distintas vocações profissionais, percebemos e defendemos que uma democracia pede a participação política de todas as pessoas. Uma coisa é política partidária e outra, o que quero fazer, é participar em assembleias locais, dar a minha opinião e contribuir para que a vida comum o seja de verdade. Este tipo de mudança nunca pode vir de cima. Para mim o mais importante é que se estruture o poder popular, que nos organizemos para viver realmente em democracia. E precisamos de todos: seja igreja ou não igreja, de todos.
Sentiu necessidade pessoal de participar neste movimento ou fê-lo para mostrar que a igreja também faz parte da sociedade civil?
Entrei para o movimento porque me pediram. Como na Catalunha tenho uma certa popularidade, quando se começa um movimento ter caras conhecidas é importante e fui chamada a dar a cara por ele. Pus a minha popularidade ao serviço de uma causa que considero justa. Não pensei em mais nada, foi espontâneo. Agora sim, dei-me conta de que para muita gente foi uma maneira de pensar que na igreja também há margem para participar nos movimentos de mudança e nos processos democráticos.
Em Portugal vemos padres a comentar política, mas não vemos irmãs, parecem mais escondidas. É também um sinal para as mulheres da igreja?
Sim, isso também é importante para mim. Defendo que as mulheres na igreja devem ter um papel de igualdade em todos os sentidos.
Inclusive poderem celebrar uma missa?
Tenho dito que acredito que, teologicamente, não há nada contrário a isso.
Há uma semana tiveram um momento importante para o vosso movimento, uma concentração.
Sim, tivemos aquilo a que chamámos o primeiro acto central do Procés Constituent, movimento que começou a 10 de Abril. Chamámos a estes primeiros seis meses o ou vai ou racha, não sabíamos se teríamos apoio popular suficiente. Agora entrámos numa nova fase onde o mais importante é termos uma estrutura que nos permita tomar decisões e que nos permita ter influência na política do nosso país. Temos de arranjar uma organização que nos permita afirmarmo-nos e abranger todos. Já somos 45 mil pessoas, somos muitos não é?
Estava à espera de tanta adesão?
Neste acto central reunimos 10 mil pessoas, o que já foi bastante. Mas o que importa é que estamos organizados em quase cem comunidades locais por toda a Catalunha. Agora lançámos uma campanha que se intitula Construímos a República Catalã de 99%, o que exclui uma margem de 1% que é o poder corrupto e instalado. No dia 16 de Novembro vamos ter uma jornada nacional de assembleias em simultâneo e, a 30 Novembro, vamos ter acções de desobediência civil, com um potencial importante de maior mobilização.
Deixam-na fazer esse tipo de acções no mosteiro?
Bom, tive de consultá-los antes de começar. Falei com o bispo e com a minha comunidade e, não estando todos de acordo, estão de acordo que se sinto que isto é um chamamento a algo que devo fazer, não me querem impedir.
Mas sente-o como um chamamento?
Quando mo pediram não saiu de mim. O que fiz foi levar esse pedido a oração, como tudo, e através do meu discernimento senti a responsabilidade de dizer que sim. Estou no movimento não como responsável final, mas como alguém empenhado em tornar esta voz cada vez maior.
O bispo deve ser uma pessoa aberta...
O bispo é um homem de paz, uma pessoa que não entende a sua tarefa de pastor como autoritária mas de serviço.
Sente a mesma empatia com o Papa Francisco?
Creio que o Papa Francisco tem dado sinais de esperança mas, ao mesmo tempo, muito conscientes de que há uma estrutura na igreja que é contrária a mudanças no sentido de justiça. Creio que na igreja temos um défice de democracia real, quero dizer, somos muitas pessoas mas as decisões são tomadas por poucas. Estou com os olhos e ouvidos abertos na esperança de que o Papa Francisco consiga avançar. Mas para mim o importante é que, quer na igreja, quer na sociedade, termos mais justiça social nunca será um movimento de cima para baixo. O Papa Francisco só vai poder fazer mudanças se se aliar com as pessoas de baixo que há muitos anos as pedem. O Papa Bom, João XXIII, fez mudanças com o concílio Vaticano II mas não as fez sozinho. Pode fazê-lo porque durante todo o século XX houve muitos movimentos, como o da reforma litúrgica ou da nova teologia, com pessoas que falavam publicamente e pediam uma aproximação da igreja católica à modernidade. Foi essa base que João XXIII impulsionou no seu papel de Papa. Acho que é nessa posição que está Francisco: não será ele a gerar mudanças. Até porque acredito que, de cima para baixo, só vêm más mudanças, como vemos hoje nos cortes sociais que estamos a ter nos nossos países. Francisco se o fizer vai fazê-lo porque há uma base na igreja católica que há anos pede mudanças.
É um apelo silencioso?
Silencioso e muito na oração. Trabalho com as mãos, com o coração e com a mente. Isto a que chamamos oração é um mistério profundo. Quando falo das pessoas que trabalharam nos últimos anos por mudanças, não falo só das que se reuniram em comissões, que produziram textos e fizeram manifestações públicas. Falo muito das pessoas que no seu coração e na oração pedem mudanças.
Como é que a igreja pode mudar no sentido de apoiar mais a sociedade?
Acho que é essencial a reforma intraeclesial. Hoje há muitas pessoas que se emocionam com os evangelhos e têm um respeito profundo pela figura de Cristo. Mas esbarram logo contra estruturas da igreja impossíveis, que não conseguem aceitar. Por isso acho que o primeiro dever da igreja para com a sociedade é oferecer a mensagem de Cristo sem acrescentar coisas supérfluas.
Por exemplo?
Esta estrutura que obriga, por exemplo, a ter de fazer uma liturgia numa sala previamente consagrada. Pode fazer-se uma liturgia num bosque, mas alguns bispos não o permitem. Qualquer limitação que exista nesse sentido não vem no evangelho. Por exemplo, que os sacerdotes não possam celebrar a eucaristia com divorciados e um divorciado não possa comungar. A comunhão e qualquer outro sacramento não deve ser negado nunca a ninguém.
Nem a divorciados, nem a homossexuais?
Era o que faltava, a ninguém e desde que o peçam. Agora, bom, se for o Pinochet, alguém que comete crimes claros e públicos de que não se arrepende, aí veria uma possibilidade de negação. Agora pessoas que pensam de forma distinta, homossexuais, divorciados ou pessoas que abortaram, nunca se lhes deve negar um sacramento.
Defende mesmo o casamento homossexual. Com que fundamento?
O matrimónio é um sacramento que viabiliza o amor fiel e pessoal entre dois. Penso que sempre que um casal se ama de forma sincera e fiel, deve poder celebrar esse amor como sacramento, quero dizer, como sinal de amor de Deus. Se a possibilidade de procriar fosse um requisito para o sacramento, não deveria ser permitido casar mulheres pós-menopáusicas e isso a igreja sempre o permitiu.
A sua posição em relação ao aborto é também controversa.
Penso que não se deve impor a nenhuma mulher que continue a gravidez. Acho que a atitude que respeita a liberdade da mulher é a mais próxima da forma como acredito que Deus nos trata. Agora, insisto, isto não é porque eu acho que o aborto não tenha importância. Para mim tem importância. Agora eu não quero que a mulher que pensa de forma diferente de mim seja obrigada a continuar a gravidez. Não digo que é igual fazer ou não um aborto, acho que é preciso ajudar a mãe a tomar uma decisão em favor da vida mas respeitando a sua última decisão.
Mas como é que esse respeito se concilia com o mandamento da igreja não matarás?
Trata-se de um conflito entre dois direitos fundamentais: o direito à vida e o direito à autodeterminação. Nunca um ser humano deve ser considerado um meio para salvar a vida de outra pessoa ou grupo de pessoas. O ser humano é sempre um fim em si mesmo, nunca um meio. A minha pergunta é: porque é que não se obriga um pai que tenha um rim compatível a doá-lo para salvar a vida do seu filho? Qual é o princípio moral católico que permite que isso não lhe seja imposto? Porque é que esse princípio não é aplicável no caso da mãe?
Tem problemas com o Vaticano com estas posições?
Em 2009 recebi uma carta da Congregação para a Doutrina da Fé e respondi com uma explicação que está publicada num livro "Diálogos com Teresa Forcades". [Pediram-lhe que manifestasse publicamente a sua adesão à doutrina católica e Forcades disse que respeita o magistério da igreja, mas tem direito a manifestar opiniões contrárias.]
Ainda pratica medicina?
Não. No mosteiro fiquei encarregue da enfermaria mas ultimamente tenho feito alguns estudos e estou a escrever sobre a medicalização da sociedade. É uma forma de continuar ligada.
O que é que a preocupa?
Não só o excesso de medicalização a que assistimos nas nossas sociedades mas sobretudo esta ideia de que os problemas das pessoas se tratam com comprimidos. Veja-se o tratamento da hiperactividade das crianças: temos 10% das crianças medicadas, com medicamentos cuja forma de actuação é parecida com a cocaína. Nos EUA temos uma percentagem de 45% dos jovens que já foram diagnosticados, em algum momento da vida, com depressão. E medicados. Aceito que alguns tenham problemas, mas 45% é impossível, seria uma epidemia.
Isto é falta de quê?
De muitas coisas. Antes achava-se que era normal passar pela idade da estupidez na adolescência. A pessoa começa a pensar fora do núcleo familiar, apaixona-se pela primeira vez, desafia os pais. É normal que tenha dias em que está em baixo. Agora uns pais dizem "anima-te, é normal", outros dizem logo que é preciso ir ao psiquiatra. As famílias têm cada vez menos tempo, o estilo de vida cada vez reduz o tempo entre pais e filhos.
Quando era jovem, pensou em ser freira mas rejeitou essa ideia por causa do celibato. Só entraria para o mosteiro depois dos 30. O que mudou?
Na adolescência pensava que não podia ser feliz se não tivesse um companheiro. Hoje aceito que a vida de comunidade também tem as suas compensações. É diferente da vida de casal, mas desde que sou freira não quer dizer que não tenha experiências de enamoramento. Agora de cada vez que me apaixonei, foi uma comoção. A pessoa é apanhada desprevenida, mas tem de trabalhar isso, sempre entendendo que o que Deus quer a felicidade e não a repressão.
Era capaz de viver em clausura?
Eu vivo em clausura, mas na ordem beneditina temos a clausura constitucional, em que podemos sair. Há outro tipo de clausura que nunca vivi que é a clausura papal, instituída em alguns conventos femininos no século XVI e onde tudo é imposto de fora, não podem sair. Não acho bem.
Tem planos para vir a Portugal em breve?
Sim, em Novembro. Vou apresentar o meu livro e participar num congresso sobre teologia feminista, nos dias 14 e 15.
No seu Facebook há muitas críticas à austeridade. Trata de uma mensagem também nesse sentido?
Vejo a austeridade como algo positivo por isso o que desejo é que se mude o nome das medidas impostas pela troika europeia aos países que não cumprem os seus critérios de convergência económica: não são medidas de austeridade, são medidas de criminalidade. Impõem sanções aos cidadãos com rendimentos mais modestos e desviam o dinheiro, via resgates bancários, para os mais ricos.
In Jornal I
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