O cristianismo arquivou a sacralidade da arquitectura
Em entrevista publicada na edição de julho/agosto da revista portuguesa "arqa" (n. 108), o docente defende que o arquiteto «é chamado para "interpretar" com a sua própria linguagem criativa o "sagrado" - ou o "santo" - já presente em comunidades e ritos».
Tendo em conta a sua investigação sobre o espaço sagrado e os seus livros "Luoghi di Culto" [Lugares de culto] e "Chiesa e Società in Italia" [Igreja e sociedade em Itália], em que sentido lhe interessa especificamente a questão do sagrado em arquitetura?
Os manuais de História da arquitetura, disciplina que eu ensino, são compostos quase exclusivamente de obras de arquitetura religiosa: dos templos gregos às catedrais góticas, das igrejas do Renascimento às neogóticas, a História da arquitetura parece ser uma história de monumentos dedicados ao culto. Mas quanto espaço é dedicado, pelos mesmos manuais, para compreender o culto e o significado teológico desses edifícios? Quanto as formas dos templos e das igrejas são "filhas" de projetistas, e quanto são "filhas" de seus respectivos clientes, com seus requisitos litúrgicos e simbólicos?
Um segundo aspeto: quando entramos na História do século XX, os lugares de culto apresentados pelos manuais de história diminuem drasticamente, limitando-se quase exclusivamente a obras-primas dos Mestres do Moderno ou, talvez, somente à capela de Ronchamp. No entanto, se olharmos para as nossas cidades, o património construído de igrejas, sinagogas e mesquitas contemporâneas é imenso, e completamente desconhecido e não pesquisado. O que é que aconteceu? Porque é que os lugares de culto se tornaram edifícios comuns, e já não são obras-primas da arquitetura, monumentos? A cultura funcionalista empobreceu os valores teológicos que definiam os lugares de culto, chegando a uma espécie de "funcionalismo litúrgico" quase mudo? Ou será que os projetista não conseguiram mais conciliar os profundos significados dos ritos com a espiritualidade popular?
Em tempos de secularização das sociedades ocidentais contemporâneas, qual o campo de uma arquitetura sagrada?
De um ponto de vista histórico, a idade da secularização das sociedades ocidentais é um fenómeno já ultrapassado: muito pelo contrário, as ciências sociais mostram como existe um "retorno ao sagrado", que pressupõe, no entanto, formas apenas parcialmente atribuíveis às religiões tradicionais do Mediterrâneo (as três antigas religiões monoteístas do "Livro": o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo).
As mesmas religiões tradicionais voltam a manifestar um papel público cada vez mais importante (se pensar nas sinagogas na Alemanha, ou nas mesquitas na França e na Itália), mas também as religiões enxertadas pelos imigrantes não europeus nas nossas cidades (Budistas, Hindus e Sikhs) reivindicam - e com razão - dignos lugares de culto, para afirmar sua identidade. Esses fenómenos, em pleno desenvolvimento, têm implicações profundas para a arquitetura: não é por acaso que o mundo da publicação da arquitetura e o mundo das profissões técnicas voltou a lidar com o "sagrado" a partir do final do século XX, e floresceram as conferências, exposições, prémios etc.
Há uma ambiguidade fundamental que deve, contudo, ser declarada: muitas vezes, no mundo da arquitectura o termo "sagrado" está associado com muita ambiguidade a termos como "silêncio", "isolamento", "contemplação" ou "meditação". Ora, a contemplação e a meditação nunca foram os pressupostos dos lugares de culto das religiões tradicionais do Mediterrâneo: são a comunidade, a assembleia litúrgica, o estar juntos que "formam" a arquitetura, e não uma conceção individualista da relação com a divindade. Além disso, as religiões do Mediterrâneo não sugerem uma relação com uma divindade totalmente transcendente, abstrata, inefável, inatingível, mas falam de Deus na história, trabalhando ao lado de seu povo, e que deve ser buscado na história, não na meditação interior: até mesmo um Deus que se fez homem, no Cristianismo, e do qual comemos na Eucaristia.
Mesmo as palavras que definem a arquitetura enfatizam a precedência da comunidade, tanto na contemplação individual, quanto na alegada "sacralidade" de um lugar: "ekklesia" (igreja, chiesa, église, iglesia ... ) é a comunidade dos cristãos; "synagein" (sinagoga) é o gesto de convergir juntos para o ato de adoração; "masjid" é o lugar onde o muçulmano se recolhe para as diárias orações rituais. Se nos concentrarmos no cristianismo, para alguns teólogos ainda é errado usar o termo "sagrado", que, na sua etimologia indica uma "separação" entre a divindade e a humanidade, um gesto um tanto violento para o homem: o cristianismo, pelo contrário, veio apenas para quebrar as divisões entre o "sagrado" e "profano" que caracterizaram as religiões pagãs, proclamando a salvação a todos, para superar o "templo", entendido como "a casa de Deus". O cristianismo arquivou a "sacralidade" da arquitetura, afirmando a vocação para a "santidade" das pessoas. As igrejas não são "casa de Deus", mas "Casa do Povo de Deus", casa da comunidade chamada pelo Senhor para celebrar em união. A "liturgia" é um ato público, e não individual, muito menos individualista.
Se, em seguida, novas formas de religiosidade - lançada pela história, pelo compromisso e pela sociedade - quiserem lugares individualistas de contemplação e meditação, então os arquitetos certamente serão capazes de responder a estas novas exigências. Além disso, o "sagrado" pode ser a característica distintiva das arquiteturas não só para o culto: às vezes, as verdadeiras arquiteturas "sagradas" das nossas cidades são os museus ou salas de concerto; mas porque não considerar "sagradas" também as casas, onde as famílias se reúnem à noite para viver os poucos momentos de intimidade?
No âmbito das suas valências profissionais e disciplinares, qual o papel do arquiteto na construção dos lugares sagrados?
Em primeiro lugar, é preciso declarar o que "não é" o papel dos arquitetos: os projetistas não devem "inventar" novas ideias de "sagrado", mas responder com o que a comunidade necessita. O arquiteto é chamado para "interpretar" com a sua própria linguagem criativa o "sagrado" - ou o "santo" - já presente em comunidades e ritos, que devem ser escrupulosamente conhecidos e respeitados. É o rito que "plasma" o espaço: ao arquiteto, no entanto, pede-se para fazer "único" cada lugar de celebração, mergulhando este na história do sítio e da comunidade, e não tentando fazer o lugar abstrato ou inefável. É possível identificar alguns padrões recorrentes segundo os quais os arquitetos constroem as casas para as comunidades.
Vou dar alguns exemplos da história recente das igrejas cristãs. Após o Concílio Vaticano II (da abertura do qual nos lembramos os 50 anos) afirmou-se, por exemplo, o modelo da "casa-igreja": a liturgia tem sido proposta como experiência doméstica, próxima, prevalece o sentido mais profundo da sacralidade da casa, da família, da mesa em torno da qual as pessoas se reúnem para celebrar a ceia do Senhor. Para comunidades grandes e mais animadas, vigorou o modelo de "igreja-vila", no qual a sala litúrgica, a paróquia, as salas de reuniões e os campos de jogos assumem uma forma acolhedora, quente, aberta para a cidade e para o contexto.
Outras comunidades pediram aos arquitetos um relacionamento mais profundo com a sacralidade da natureza, ou - melhor - a paisagem quotidiana percebida como uma área em que a história das pessoas altera o ambiente natural criado pelo Senhor. Finalmente, existem atitudes em que queremos reafirmar a identidade das comunidades, com edifícios estereométricos, "monumentos" (do Latino "moneo", lembrar), volumes puros e abstratos, "igrejas-monólitos": mesmo nesses casos, no entanto, não é geometria desenhada no arcano esotérico, mas projetado para as comunidades reais, históricas, que desejam ser reconhecidas nas áreas de "sprawl" [disseminação] urbana.
In arqa
publicado por SNPC a 12.01.14
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