A Paixão de São Julião Hospitaleiro
Em 1877 foram publicados os "Três Contos", de Flaubert, que integram "A Lenda de São Julião o Hospitaleiro". Trata-se de obras de grande maturidade, o que não será com certeza estranho a algumas das características mais importantes de "A Lenda..." - a sua grande concisão, a brevidade, a velocidade narrativa e a grande intensidade, intensidade poética, emocional e, potencialmente, dramática. Para além de fontes escritas, um motivo expresso de inspiração terá sido um vitral da catedral de Rouen, que descreve a vida do santo. Este detalhe é importante do ponto de vista da interpretação, como é sugerido, aliás, no próprio texto ("E eis a história de São Julião o Hospitaleiro, tal como, mais ou menos, se encontra num vitral de igreja, na minha região").
Em 1912, na Bretanha, Amadeo de Sousa-Cardoso copiou a pincel o texto de Flaubert e acompanhou essa cópia de ilustrações. O resultado foi um sumptuoso livro, cuja edição fac-similada foi publicada pela Fundação Gulbenkian. Foi este livro que esteve na origem imediata do espetáculo concebido e encenado por António Pires.
A adaptação dramatúrgica do conto de Flaubert, feita por António Pires e por Maria João Cruz, segue a estrutura tripartida do texto original, com que se faz a narração da vida de Julião: o seu nascimento num ambiente de paz e de riqueza, a sua aprendizagem da escrita e das artes e, principalmente, da caça. É a partir desta especial relação com os animais que se revela o carácter desequilibrado do jovem invulgarmente dotado e que o vai levar ao assassínio dos pais. Na terceira e última parte da história, Julião renuncia ao mundo e conquista a santidade com uma voluntária atitude de autossacrifício.
Na comparação com a obra de Flaubert, o espetáculo perde alguma da miraculosa celeridade daquela. A adaptação introduz registos dialogais, comentários e reflexões que estão ausentes da obra original. Algumas destas alterações poderiam ter sido evitadas, mas são feitas com cuidado e legitimidade. Os figurinos não são particularmente felizes, no seu carácter entre o fantástico e o alusivo (ao texto de Flaubert?, aos desenhos de Amadeo de Sousa-Cardoso?), mas o cenário de João Mendes Ribeiro é totalmente eficaz na sua simplicidade, assim como os excelentes vídeos de João Botelho, falsamente mas eficazmente naturalistas. A música de Paulo Abelho e João Eleutério é eficaz, salvo quando articulada com palavras cantadas, com acidentes prosódicos infelizes. A coreografia e os bailarinos são equilibrados.
Uma das maiores virtudes do espetáculo reside, contudo, para além da ideia original, no excelente trabalho de actores, com destaque para Graciano Dias, Marcello Urgeghe - Julião e Pai, respetivamente - e, muito especialmente, Maria Rueff, que aqui mostra, uma vez mais, que o teatro dito 'sério' é o seu elemento natural; a sua belíssima voz, a sua praticamente impecável dicção e elocução, a sua sóbria presença são um trunfo maior desta realização. É um espetáculo bem sucedido, um caso de simbiose entre o corpo, a palavra, a música, o movimento e a imagem visual. Ou entre arte e moral.
"A paixão de São Julião Hospitaleiro" está em cena no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, até 23 de Janeiro.
Por João Carneiro, In Atual (Expresso), a 15 de Janeiro de 2011
publicado por SNPC a 16 de Janeiro de 2011
http://www.snpcultura.org/vol_a_paixao_de_sao_juliao_hospitaleiro.html
Ler mais em São Luiz
http://www.teatrosaoluiz.pt/catalogo/detalhes_produto.php?id=213
Ler a Lenda de São Julião Hospitaleiro e ver as ilustrações de Amadeo de Sousa-Cardoso
http://www.snpcultura.org/tvb_a_lenda_s_juliao_hospitaleiro.html
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