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As dez heresias do catolicismo actual
por Anselmo Borges para DN em junho e julho de 2016
"Heresia vem do grego háiresis, com o significado de parcialidade. Ora, pode acontecer que uma parcialidade se absolutize de tal modo que já não deixa espaço para elementos imprescindíveis da identidade cristã. É neste sentido que o jesuíta J.I. González Faus, um dos teólogos vivos mais sólidos e cristãos, escreveu um livro intenso com o título em epígrafe, para desmontar as dez heresias que inconscientemente foram tomando conta da teologia e da vida, arruinando a identidade cristã. Será o nosso guia também nas duas próximas semanas.
1. Primeira heresia: "Negação da verdadeira humanidade de Jesus." Como reconhecer em Jesus "uma psicologia humana como a nossa: sujeita ao erro e à ignorância ou à fraqueza, à angústia, ao medo ou à sensação de fracasso"? O problema está em que já se tem uma ideia prévia de Deus e estas características parecem incompatíveis com a dignidade divina. Mas qual é a consequência? Ao exigir que, em Jesus, Deus corresponda à imagem que temos dele, acabamos por impedir que Jesus revele efectivamente Deus. São Paulo, esse, percebeu, ao escrever que o Deus que anunciamos é "loucura para os sábios e escândalo para as pessoas religiosas". Afinal, a noção de dignidade divina deve ser concebida em consonância com a ideia humana ou a partir do exemplo de Jesus? "Eu, Senhor e Mestre, dei-vos o exemplo, lavando-vos os pés.".Jesus, de condição divina, escreve São Paulo, "apresentou-se como um entre outros", "sendo rico, fez-se pobre por nós, a fim de enriquecer-nos com a sua pobreza", mostrando que a verdade de Deus é o seu amor na autenticidade e fidelidade.
2. Vinculada à primeira, a segunda heresia: "Negação da eminente dignidade dos pobres na Igreja."De facto, a negação da verdadeira humanidade e humilhação do Messias leva a não preocupar-se com os humilhados, os pobres, atribulados, famintos, refugiados ou presos, embora seja com eles que Jesus em primeiro lugar se identificou. O Papa Francisco tem razão, voltando a uma Igreja pobre para os pobres.
O que lemos no capítulo 25 do Evangelho segundo São Mateus, referente ao Juízo Final? Todos são julgados pela maneira como reagiram diante do Deus presente no necessitado, no faminto, no nu, embora o não soubessem: "O que fizestes a um destes mais pequeninos foi a mim que o fizestes." Este passo do Evangelho é abissal, pois nele não temos um ensinamento em primeiro lugar ético mas teológico, um ensinamento sobre Deus, como ele se comporta e é: não é possível falar sobre Deus sem a sua relação com os seres humanos, a começar pelos mais desamparados. "É falso todo o Deus cuja glória não seja a vida do homem." Também está na Primeira Carta de São João: "Se alguém possui bens deste mundo e, vendo o seu irmão passar necessidade, não o socorre, não pode estar nele o amor de Deus."
3. Terceira heresia: "Falsificação da cruz de Cristo." "O que foi que condenou Jesus a uma morte tão atroz? Foi Pilatos? Foram os escribas e fariseus? Não, meus irmãos, não. Foi a Justiça divina que nunca quis dizer "basta" até que o viu expirar sob este suplício. O Salvador bondoso agonizava suspenso no ar por três cravos, derramava lágrimas de sangue, sangrava por todos os lados. Mas a Justiça divina, inexorável, dizia: "Ainda não." A sua doce mãe chorava ao pé da cruz, soluçavam as piedosas mulheres, gemiam todos os anjos e espíritos bem-aventurados diante de tão cruel espectáculo. Mas a Justiça, sem se deixar comover, repetia: "Ainda não." E não disse "já basta" enquanto o não viu exalar o último suspiro. O que dizeis então, meus irmãos? "Se a Justiça divina tratou tão severamente o Unigénito do Pai só porque havia tomado sobre si os nossos pecados, como nos tratará a nós que somos os verdadeiros pecadores?"
Muitos terão ouvido sermões semelhantes a este, de São Leonardo de Porto Maurício. Jesus tinha de morrer para pagar uma dívida infinita contraída com Deus pela humanidade e assim reconciliá-lo. Foi esta concepção que levou muitos ao abandono da fé. Aí está um Deus bárbaro, inexorável, que se não deixa comover, e uma teologia da satisfação expiatória que santifica a justiça próxima da vingança. O contrário do Deus que Jesus revelou como Abbá e Misericórdia, na parábola do filho pródigo. "O dolorismo heterodoxo que a Cruz produziu no nosso catolicismo vem, em boa parte, daqui: estamos a um passo de uma redenção "sadomasoquista", com a perversão de uma grande verdade: "Tudo o que vale custa" transformou-se num falso princípio: "Tudo o que custa vale." "A Cruz transformou-se assim em factor de resignação, quando na realidade é o resultado de Jesus não se ter resignado perante a injustiça estabelecida."A morte de Jesus é "uma consequência da sua vida e não uma exigência metafísica da justiça de Deus". Não morreu vítima de um Deus irado, que precisa de ser aplacado, mas vítima da maldade do mundo; morreu para ser consequente com a sua mensagem, dando testemunho até à morte do Deus que é Amor.
Os primeiros cristãos celebravam a Eucaristia em casas particulares, com todos à volta da mesma mesa; ali, pela primeira vez na história, escravos e senhores sentaram-se uns ao lado dos outros. De acordo com o Novo Testamento, "nem sequer era o presbítero que presidia à celebração, embora pouco a pouco se tenha imposto que o presidente da Eucaristia fosse aquele que presidia à comunidade, talvez para aprender que devia exercer a autoridade não impositivamente, mas igualitariamente, e procurando o máximo de comunhão possível".
Quando os cristãos se tornaram multidão, foram necessários locais amplos, o latim deixou de ser entendido pelo povo, os assistentes já não participavam, com o celebrante de costas e à distância e as pessoas a fazerem "outra coisa" (rezar o terço...) enquanto "estão na Missa", atentos ao momento da "consagração" e, depois, alguns vão receber a hóstia. Tudo se centrou no culto da hóstia, "totalmente separado do gesto do partir, partilhar o pão". Da refeição passou-se a um acto de culto, com uma deturpação fundamental da Eucaristia: "Separar completamente a matéria (pão e vinho) do gesto (partilhá-los)", quando "partir o pão significa compartilhar a necessidade humana (da qual o pão é símbolo primário) e passar a taça é comunicar a alegria, da qual o vinho é outro símbolo humano ancestral". O corpo e o sangue são a pessoa e a vida de Jesus vivo.
5. "Transformar o cristianismo numa doutrina teórica." Heresia fundamental, que consiste em desfigurar a fé cristã, "transformada numa doutrina teórica ou numa religião centrada no culto, em vez de ser uma vida e um caminho crente para a transformação do mundo". À maneira dos gnósticos, põe-se o acento no conhecimento, que pode ser passivo, em vez de no amor, que é essencialmente activo: o decisivo do cristianismo não é dizer "Senhor, Senhor", mas "fazer a vontade do Pai", que consiste em que "todos tenham vida e vida em abundância". "A glória de Deus é a vida do homem", dizia Santo Ireneu.
O que então fica resume-se, infelizmente, em duas teses: a) "Deixadas à sua própria inércia, as sociedades estruturam-se de modo anticristão, não porque se estruturem de maneira laica ou reconheçam as uniões homossexuais, mas porque se estruturam na desigualdade, que é o valor mais contrário à paternidade do único Deus e o mais característico da divindade do Dinheiro"; b) "O Dinheiro é o único Deus verdadeiro das nossas sociedades que se consideram modernas, mas também o verdadeiro "senhor" de todos nós, que ameaça levar-nos à nossa própria destruição e à destruição do planeta." E "o nosso catolicismo foi cúmplice deste processo degenerador tão contrário à sua essência".
6. "Negação da absoluta incompatibilidade entre Deus e o Dinheiro." Afinal, a inscrição do dólar não é "In God we trust", mas "In Gold we trust", como parodiou E. Dussel. O problema dos imensamente ricos frente aos pobres que morrem a cada dia de fome aos milhares, mais do que um escândalo moral monstruoso, é a idolatria do deus Dinheiro, sendo essa a razão de se contar no número das heresias: "Uma visão teológica que pode desfigurar nada menos que a identidade do Deus bíblico. Deus é o Deus dos pobres, conhecê-lo não é especular muito nem sequer rezar muito, mas "praticar a justiça", como disse o profeta Jeremias."
Quando se olha para a linguagem oficial da Igreja, "dá a sensação de que toda a moral se reduz ao sexo e que é aqui que é preciso levantar a voz, ao passo que se deixa o dinheiro correr pecaminosamente sem o molestar". Ao contrário de Jesus, que foi parco no tema sexual, exigente na teoria e compreensivo com as pessoas concretas, mas duro quanto à riqueza opressora. "Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro." Significativamente, os Evangelhos, escritos em grego, mantiveram a palavra aramaica Mamôn (e além disso, sem artigo, como se fosse um nome próprio) para designar a riqueza: porque vem da mesma raiz (mn) do verbo crer, acreditar. "É uma maneira de dizer, mais uma vez, que God e Gold são muito aparentados: não se pode adorar ao mesmo tempo Deus e o Dinheiro." Quando se pensa na força crescente do Dinheiro, cada vez com mais possibilidades, pois já não se trata de meros poderes pessoais, mas estruturais e anónimos, é preciso rever a sociologia da religião: afinal, ela está em aumento, o que diminui é a fé no Deus de Jesus, o Deus que criou o mundo para todos e não apenas para os ricos. "O deus dos senhores é diferente." (J.M. Arguedas).
7. "Apresentar a Igreja como objecto de fé". Que se entende por Igreja? É decisivo responder adequadamente a esta pergunta, para afastar o perigo em que caiu o Papa Pio IX, que se negava a renunciar aos Estados Pontifícios, alegando que "aqueles territórios não eram seus, mas de Cristo". A Igreja não é Deus, é comunidade de comunidades formadas por homens e mulheres que acreditam em Jesus e no Deus que Jesus revelou. Homens e mulheres que acreditam no Deus de Jesus formam a Igreja e é em Igreja que acreditam em Deus. Temos, pois, um erro quando "a Igreja se apresenta como objecto de fé, equiparando-se ao Deus trino e esquecendo que só em Deus, e em mais ninguém, é possível crer, no sentido pleno da palavra". Percebe-se também que a autoridade na Igreja só como serviço se pode compreender.
8. "A divinização do Papa". "Confessamos que o Papa romano tem poder para mudar a Escritura e aumentá-la ou diminuí-la de acordo com a sua vontade. Confessamos que o santíssimo Papa deve ser honrado por todos com a honra devida a Deus e com a genuflexão maior devida a Cristo." Estas "palavras incríveis" provêm da profissão de fé que os jesuítas propunham aos protestantes húngaros para passarem à Igreja Católica nos finais do século XVII. O Papa Bento XVI, quando era professor, denunciou esta profissão como "monstruosa", reconhecendo depois que o magistério nunca a condenou.
As citações nesta linha são quase infindáveis. Atribuíram-se ao Papa títulos como "Vice-Deus da humanidade", "o Verbo encarnado que se prolonga". Num livro de meditações atribuído a São João Bosco, lê-se: "O Papa é Deus na Terra. Jesus colocou o Papa no mesmo nível de Deus." Chama-se a isto culto da personalidade e idolatria. Leia-se o "incrível" texto chamado Dictatus Papae, do Papa Gregório VII, século XI: "A Igreja romana foi fundada só por Jesus Cristo. Por isso, só o Romano Pontífice é digno de ser chamado universal. Só ele é digno de usar insígnias imperiais; ele é o único homem cujos pés todos os príncipes beijam. Não existe texto jurídico algum fora da sua autoridade; a sua sentença não pode ser reformada por ninguém e ele pode reformar as de todos. Ele não pode ser julgado por ninguém. A Igreja romana nunca se equivocou e nunca poderá equivocar-se. O Romano Pontífice canonicamente ordenado é sem dúvida santo pelos méritos de São Pedro." Na famosa bula Unam sanctam, o Papa Bonifácio VIII define que "submeter-se ao Romano Pontífice é necessário para a salvação de todos os homens". O Papa Gregório XVI opôs-se à tradição que fala de uma "Igreja com necessidade constante de reforma", acusando-a de "absurda e injuriosa", porque não se pode "nem sequer pensar que a Igreja esteja sujeita a defeito ou ignorância ou a quaisquer outras imperfeições".
A Igreja acabou por ser confundida com o Papa, como consta no programa do grupo La Sapinière, que o Papa São Pio X apoiou tacitamente: "Pode-se dizer que o Papa e a Igreja são uma só coisa." E, embora a palavra hierarquia (poder sagrado) nunca apareça no Novo Testamento, e, na linguagem eclesiástica, só no século V, de facto o cristianismo foi sendo reduzido a um eclesiocentrismo e este a um hierarcocentrismo: "A Igreja reduzida ao poder sagrado e o resto dos fiéis é apenas objecto deste poder, cuja única missão é "aceitar ser governado e obedecer" (e pagar), como disse o Papa Pio X. E, por fim, este hierarcocentrismo é reduzido à figura do Papa, separado do colégio episcopal pela forma como a cúria romana costuma governar."
E aí está como o Papa, cuja missão é de unidade, foi fonte de ruptura: lembrar o cisma do Oriente (1054) e a Reforma protestante (1517), e como se percebe o fascínio do Papa Francisco, porque é um papa cristão.
9. "Clericalismo". Tudo se concentra nesta pergunta: Deus pode ser concebido como Poder, quando Jesus o revelou como "Amor que capacita para amar"?
No Novo Testamento, "a comunidade toda de crentes é "clerical", porque foi chamada a compartilhar a herança (klêros) dos santos na luz", como se lê na Carta aos Colossenses. "Não existem, portanto, clero e laicado, mas uma comunidade, um povo afortunado que, como qualquer grupo humano, precisará de diversos serviços": ensino, direcção, coordenação. E "os responsáveis das Igrejas são chamados presbíteros, supervisores, servidores, "os que trabalham por vós"..., mas nunca sacerdotes." Só mais tarde os ministérios eclesiais se revestiram de dignidade mundana, passando-se então do "povo afortunado" para "os afortunados do povo". E aí está o clericalismo para dentro e para fora da Igreja.
10. "Esquecimento do Espírito Santo". A raiz de todas estas heresias: o esquecimento do Espírito do Deus de Jesus, Espírito criador, que une na diferença e renova todas as coisas.
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