Deus escolhe o que é louco para confundir os sábios
«O louco traz retratado no rosto tudo o que tem no coração. O sábio, em vez disso, usa duas linguagens: com uma diz a verdade, com a outra diz o que considera oportuno; ele sabe mudar o preto em branco e o branco em preto. Precisamente por isto considero que os reis e os príncipes, no meio do seu luxo, são muito infelizes, desde o momento em que não encontram ninguém que lhes diga a verdade, e portanto são obrigados a considerar amigos apenas os bobos da corte.»
Recebi mais uma - das múltiplas - edições dessa joia literária e filosófica que é o "Elogio da loucura", composta em 1509 pelo grande Erasmo de Roterdão. O difícil é decidir qual o trecho a citar porque todo o texto fascina pela sua força irónica, pela sua acuidade e pelas chicoteadas que lança contra todos os bem-pensantes e as suas hipocrisias.
A ligação é com aquela tradição espiritual que vê no "idiota" (pense-se no romance de Dostoievski) a incarnação da pureza de espírito, da verdade e do amor límpido. O pensamento corre depressa para uma frase paulina: «Deus escolheu o que no mundo é louco para confundir os sábios» (1 Coríntios 1, 27), até porque a própria cruz de Cristo é loucura.
Devemos, ao contrário, reconhecer que o caminho escolhido na vida diária de todos nós é muitas vezes o de uma sabedoria que é cálculo: pensamos uma coisa e dizemos outra, ora para não ter problemas, ora por bajulação, ora por conveniência.
Tem razão Erasmo quando diz que os poderosos são infelizes porque à sua volta só há elogiadores, prontos a velar toda a verdade que seja desagradável para o chefe. E, em vez disso, pelo menos uma pitada daquela loucura que é dizer a verdade, privilégio das crianças, deveremos introduzir nas nossas obras e nos nossos pensamentos."
P. (Card.) Gianfranco Ravasi in "Avvenire"
Tradução de Rui Jorge Martins para SNPC a 20 de setembro de 2016
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