Max Liebermann |
Por onde anda o menino (Jesus)?
Esta constatação foi proferida pelo historiador de arte francês François Boespflug, autor do ensaio “Jésus a-t-il eu une vrai enfance?” (“Jesus teve uma verdadeira infância?”, 208 pág., ed. Cerf.), que apresenta reproduções por vezes surpreendentes de obras-primas, de uma “Sagrada Família” (1342), de Simone Martini, até “Jesus aos doze anos no templo”, de Max Liebermann (1879), passando pelo “S. José carpinteiro” (1640), de Georges de La Tour.
O que o levou a escrever esta obra? Em primeiro lugar, uma longa pesquisa infrutífera de escritos sobre a maneira como os pintores preencheram o silêncio dos Evangelhos sobre a juventude de Jesus, entre o nascimento e os 30 anos. O que fez e viveu? E sobretudo, como assumiu o facto de ser Filho de Deus? Não sabemos nada. Sendo assim, os pintores, quando retratam Jesus menino, adolescente ou na oficina de José, até à sua partida, em que é que se baseiam? Talvez em alguns textos, como os evangelhos apócrifos ou as visões de místicos. Mas sobretudo tiveram, de muitas formas, carta branca e puderam imaginar muitas coisas. Eu perguntei-me precisamente sobre que ideia desta juventude foi feita a arte pictórica ocidental.
Sublinha que são raras as representações dos comportamentos habituais de uma criança normal. O que quer dizer?O Menino Jesus dos pintores não é quase nunca representado enquanto come, cai, anda de gatas, aprende a ler, escreve. E em paralelo há textos apócrifos que se lançaram em elaborações, não acreditadas pela Igreja, em que se explica que Jesus já sabia tudo, a tal ponto que na escola corrigia os seus mestres. Do conjunto de representações que pude consultar, emergem três escolhas prevalentes dos pintores: Jesus soube sempre tudo desde o início; Jesus teve de aprender; Jesus aprendeu a viver conservando o pressentimento daquilo que o espera. Neste último caso, portanto, é um crescimento com uma dimensão humana mas atravessada por pressentimentos proféticos.
Georges de La Tour |
Há obras ou soluções pictóricas que o surpreenderam particularmente?Direi sobretudo as obras pictóricas, mas por vezes também da escultura, em que Jesus é apresentado enquanto dorme sobre a cruz, ou é visitado por anjos que lhe levam os símbolos da Paixão, como o chicote, a lança, a esponja. Nestas representações o observador pode interrogar sobre o facto de este Jesus não parecer poder conhecer a serenidade infantil. Isto tocou-me muito, inclusive de um ponto de vista das interrogações teológicas que essas figurações parecem explicitar. Podemos considerar essas pinturas conformes a uma séria consideração do tema da Incarnação? Em que sentido o Filho de Deus se tornou homem? É concebível uma plena humanidade se não houve uma plena infância? A nossa visão antropológica permanece a de um acesso à plena humanidade através de uma aprendizagem longa e pontuada por erros e quedas, Os pintores não terão, talvez, privado Jesus desta plenitude da infância?
A associação da infância e da Paixão numa mesma tela é um tema raro?Não tão raro. No olhar de certos pintores a futura crucificação é já plenamente experienciada pelo Menino. Não faltam até representações do Menino ligado a uma cruz. Isto pode ser só o fruto da imaginação dos pintores.
Diante da “carta branca”, os pintores ativeram-se a alguma forma prevalente de prudência? Os artistas mostraram, em geral, a vontade de respeitar os dogmas ou aquilo que compreendiam melhor da dimensão dogmática. Em numerosos casos, tenho a impressão de que esta prudência foi acentuada até para além de quanto provavelmente se poderia esperar deles, sobretudo no ponto da consciência que o Menino tinha da sua própria origem. A Igreja não lhes pediu necessariamente para apresentarem uma interpretação similar, mas ao mesmo tempo não a impediu. Os gestos do Menino que se mostra já como um ensinador explicitam interrogações sobre o mistério da Incarnação de que, provavelmente, os pintores não estavam, em muitos casos, plenamente conscientes. Muitas vezes, a exigência que prevaleceu foi a de criar telas destinadas antes de tudo à devoção popular. Por outro lado, a valorização da infância como modelo espiritual na pregação evangélica beneficiou muito do sucesso das representações infantis de Jesus. Num certo sentido, por isso, as palavras de Jesus encorajaram a própria valorização da sua infância na arte. Isto faz-nos refletir também sobre o lugar particular da infância no cristianismo, também em relação às outras tradições religiosas."
Daniele Zappalà in "Avvenire"
Tradução de Rui Jorge Martins para SNPC
Sem comentários:
Enviar um comentário