Robert Sherer |
A Bíblia, uma história de família
"Noé, cultivador da terra, começou a plantar uma vinha. Tendo bebido o vinho, embriagou-se e despiu-se dentro da tenda. Evocamos esta passagem do capítulo 9 do Génesis não tanto pelo tema, difundido em todas as culturas mediterrânicas, do vinho, elemento que por natureza é ambíguo, capaz de «alegrar o coração do homem» (Salmo 104, 15), mas também causa de degeneração (leia-se o irónico excerto de Provérbios 23, 29-35).
Em vez disso, fixaremos a atenção na continuidade da narração. Observa-se que «Cam [um dos três filhos de Noé: Sem, Cam, Iafet], o pai de Canaã, ao ver a nudez do pai, saiu a contar o sucedido aos seus dois irmãos», que estavam fora da tenda onde o pai embriagado jazia nu (9, 22). Provavelmente quer-se condenar a falta de respeito de Cam ao chefe da família. O Génesis já mostrou, até este ponto, a rutura, devida ao pecado, das relações entre homem e mulher no casal, entre irmão e irmão (Caim e Abel) entre o homem e Deus.
Agora é atingida outra relação, entre filho e pai, que é fundamental no interior da estrutura social, tanto mais que é protegida inclusivamente por um mandamento do Decálogo, acompanhado de uma bênção: «Honra o teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias sobre a terra que o Senhor, teu Deus, te dá» (Êxodo 20, 12).
A relação intergeracional é um tema vivo nas culturas de todos os tempos. Pensemos nos muitos conselhos do livro dos Provérbios, onde entra em cena o pai-mestre na relação com o filho-discípulo. É um argumento que está também na origem de êxitos literários modernos, como, por exemplo, o romance "Pais e filhos" (1862), do escritor russo Ivan S. Turgenev, em que se representa toda a complexidade e dramatismo de uma relação que não é meramente genética, mas também social, psicológica, espiritual.
É também esta relação que esteve em foco na psicanálise, com os vários "complexos" freudianos; e na memória de muitos está presente o livro parcialmente autobiográfico de Gavino Ledda, "Padre padrone" (1975), transformado em incisivo filme pelos irmãos Taviani em 1977. Nele se delineia uma questão delicada e complexa, que se agudizou nos nossos dias na denominada «geração sem pais» e na geração de filhos rebeldes. A tudo isto se une a situação do idoso, da sua crise física, do seu isolamento social, da sua devastação espiritual, à semelhança do que acontece na cena de Noé e dos seus filhos.
A este propósito, concluamos com um dado: Sem e Iafet comportam-se de maneira diferente, recobrindo o pai sem olhar para a sua nudez, respeitando assim a sua pessoa, não obstante a degradação a que tinha chegado. Cam é o único a ser condenado, sobretudo através de Canaã, seu filho: aos olhos dos judeus, Canaã era a população autóctone da Terra Santa a eles hostil. Por isso não estamos apenas perante um juízo moral, mas também diante de um elemento de autodefesa e de polémica religiosa contra a idolatria praticada por aquele povo."
Card. Gianfranco Ravasi, Biblista, presidente do Pontifício Conselho da Cultura In "Famiglia cristiana"
Tradução e edição de Rui Jorge Martins publicada pelo SNPC a 14 de janeiro de 2015
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