George Platt Lynes, 1934 |
A alegria do Natal
«O anjo disse-lhes: “Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor» (Lucas 2, 10-11)
É preciso falar alegremente da alegria, cantá-la como os anjos, na noite do nascimento de Jesus. Dado que não tenho a voz de um anjo, recolhamos ao menos a sua mensagem no nosso coração, à imagem de Maria silenciosa. É uma boa nova que cantam os anjos, uma grande alegria para todo o povo, para todas as pessoas. Acabou o tempo do medo, vivemos sem temor. Chegaram os tempos messiânicos. Aquele que devia vir está no meio de nós. Ele vem para nos salvar do pecado, do mal e da morte. Ele traz a redenção e o perdão. Ele oferece-nos o amor gratuito de Deus e a vida eterna. Ele dá-nos a sua alegria, alegria alicerçada na fonte inesgotável do dom infinito do Pai. «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do seu agrado.» (Lucas 2, 14).
Sinal de uma vida que se expande, a alegria era considerada no Antigo Testamento como manifestação do tempo da salvação e da paz dos últimos tempos.
No Novo Testamento, João Batista terá sido dos primeiros a senti-la: Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, já grávida de Jesus, «o menino saltou-lhe de alegria no seio» (Lucas 1, 41).
Já depois do nascimento de Jesus, os magos, «ao ver a estrela, sentiram imensa alegria», conta o evangelho segundo Mateus a propósito do astro que lhes indicou o lugar onde Maria tinha dado à luz.
«Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa», disse Jesus aos discípulos (João 15,11). Alegria de comunhão, de amizade, alegria por partilhar a sua vida de ressuscitado, mesmo se essa vida é acompanhada pela aflição: «Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há de converter-se em alegria! … O vosso coração há de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria» (João 16, 20-22).
E os nossos corações? Estão plenamente felizes? Não haverá um fundo de tristeza? Porquê? O Natal traz-nos alegrias, é certo, mas a alegria, será que a conhecemos? Ó homens de pouca fé!
Ficamos demasiado presos aos nossos medos, à nossa autossuficiência, à nossa independência, ao nosso orgulho, às nossas riquezas de pacotilha, em suma a nós mesmos, para ter a audácia da alegria espiritual e nos deixarmos dilatar à medida do dom de Deus. A alegria dilata, a tristeza aprisiona. Para se ser alegre é preciso um certo esquecimento de si, uma perda de si no maravilhamento.
É por isso que a alegria do adulto é muitas vezes pouco natural, enquanto que a da criança é total. Aos poucos o adulto coloca a sua alegria no ter, por vezes muito material. Mas possuir é mais da ordem do prazer; no receber e no dar é que está a alegria. E a alegria é sempre um dom, ela traz sempre a marca da gratuidade, da festa. O adulto não sabe muitas veses receber gratuitamente, com toda a simplicidade, na pobreza cheia do não-ter que, só ela, dá acesso aos verdadeiros bens. Na nossa sociedade de consumo ambiciona-se poder comprar tudo, ter tudo. Mas não se compram senão coisas. Perseguem-se e acumulam-se. Possui-se muito mas não é nelas que se acha a alegria. Nelas só se encontra o prazer insaciável e, no limite, o aborrecimento. A alegria, ao contrário, é filha da pobreza, da gratuidade, da ousadia da vida que vive e ri em nós.
O contemplativo deve ter algo desta sabedoria da criança, da sua aptidão ao dom, ao abandono. Muitos parecem crer que só as pessoas “sérias” são sérias: a sabedoria deve obrigatoriamente manifestar uma atitude solene e um rosto franzido. O homem de negócios do “Princípezinho” está demasiado ocupado a contar e a “possuir” as estrelas para ver a sua beleza e abrir-se ao seu canto. Sejamos simples, não tenhamos medo de ser alegres.
Tendo perdido a espontaneidade da simplicidade, iremos procurá-la com o peso da razão?
A alegria de Maria
Entremos na escola de Maria para aprender a alegria. Temos muito poucas palavras dela e as que temos são de uma grande densidade por serem portadoras de um imenso peso de silêncio. Há o “fiat”, o sim pelo qual Maria consente livremente no dom de Deus, no dom que Deus lhe faz de si mesmo, à ação misteriosa do Espírito Santo pelo qual Jesus é nela concebido. E Jesus é concebido na alegria. O coração de Maria está repleto de alegria, da alegria de um pobre que soube acolher a vida:
«A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lucas 1, 46-47).
Alegria cuja partilha desperta a alegria no coração de Isabel. O bebé no seio da sua mãe alimenta-se da sua substância, constrói-se a partir do que ela é. Tudo acontece no silêncio de uma simbiose intensa entre duas pessoas. Maria está só com o seu bebé oculto; para o bebé, o seu universo é o seio de Maria.
Depois é chegado o tempo em que o Menino sai para entrar no mundo dos homens. É quando acontece a primeira separação que lhe vai permitir ser Ele que está entre nós, para nós. A alegria de Maria é dar Jesus ao mundo. O seu coração está cheio de uma alegria que em nada diminui a pobreza do seu nascimento, num estábulo, recebida entre os animais, nenhum lugar entre os homens havia para eles.
Mas o bebé é rei, rei pobre, duas vezes rei. Os anjos cantam o seu deslumbramento, anunciam a alegria da sua vinda àqueles que estão mais preparados para o receber: os pobres, os pastores e os que o procuram pelos caminhos da sabedoria humana, os magos.
Não sabemos de nenhuma palavra de Maria. Ela permanece silenciosa, ocupada a proteger este pequeno corpo tão vulnerável, a embrulhá-lo em panos e a deitá-lo na manjedoura. Ela é mãe, deve ater-se às obrigações da maternidade, ao mesmo tempo que permanece unida ao seu filho no seu coração. Mas agora há um face a face, duas pessoas entreolham-se, o amor torna-se mais pessoal, amor de amizade; em breve o sorriso do bebé responderá ao seu.
Mas Maria nunca diz nada. Ela deixa os pastores e os magos prestarem a sua homenagem diante do seu filho. São os anjos que cantam a sua glória. Ela, ela conserva todas estas coisas, guarda-as no seu coração.
Quem era este ser dela nascido? O seu coração sabe mais do que a inteligência pode dizer. Ela não é a Palavra mas a sua serva. O seu silêncio fala por ela, diz do seu amor.
Será assim toda a sua vida. Durante os longos anos tranquilos de Nazaré, a sua alegria é a intimidade constante com Jesus, a vida partilhada com este rapaz que cresce diante dos seus olhos. É o seu filho, e no entanto, um dia, mal tinha feito doze anos, ele diz: «Não sabíeis que devia estar em casa de meu Pai?» (Lucas 2, 49). Jesus regressou a Nazaré, a vida continuou mas nunca mais foi a mesma. A marca do Pai estava sobre ele; à alegria da sua intimidade acrescenta-se uma nota grave, de respeito, perante o mistério do seu ser.
Numa dialética de intimidade e separação, pouco a pouco Jesus revela-se à sua mãe – como aos seus discípulos, como a nós. De cada vez há um aprofundamento. Até que um dia ele irá radicalmente relegar para segundo plano os laços de sangue que os uniam: «Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe» (Marcos 3,35).
É sobre a rocha da vontade de Deus que a relação entre ambos deve fundar-se e fortalecer-se a partir daí, ao ponto que seja aceite a separação final de uma morte brutal. Onde está agora a tua alegria, Maria? Ela está sempre lá, onde se renova o sim do teu amor e da tua fé, no silêncio, numa solidão terrível. Nunca foste tão mulher como agora. E assim tu te tornas mãe do Corpo de Cristo, de todos nós. Alegria grave de um amor que dá mais do que si mesmo.
O amor é mais forte do que a morte, a alegria mais forte do que a tristeza. A luz da ressurreição vai inundar o espaço da sua fé e enchê-la de uma alegria que não terá fim. A assunção ao céu é a manifestação da plenitude desta alegria que impregna todo o seu ser, incluindo o seu corpo.
Maria não deixou uma palavra sobre Jesus, uma teologia, um discurso. A sua vida é a sua palavra, o seu amor, o seu conhecimento, o seu dom total à vontade de Deus e à ação oculta do Espírito nela, a sua pobreza, a transparência da sua pureza.
Essa alegria é o Cristo nela, é o Cristo em nós. Desejo-a a todos de todo o meu coração.
Nós somos responsáveis pela nossa alegria.
Monge Cartuxo In "Vivre dans l'intimité du Christ"
Tradução de Rui Jorge Martins publicada pelo SNPC a 24 de dezembro de 2014
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