Caravaggio |
[À] luz da cruz, o ser do mundo recebe um sentido, as formas e as vias incoativas do amor que, de outro modo, correm o risco de se encaminhar para um beco sem saída, podem ser referidas ao seu verdadeiro fundamento transcendente. Mas quando esta relação (de natureza e de graça) é destruída, no sentido da dialéctica mencionada que opõe o “saber” e a “fé”, o ser finito é necessariamente colocado sob o signo do “saber” sempre superior a tudo o mais, e assim as potências imanentes de amor no mundo são subjugadas e abafadas pela ciência, pela técnica e pela cibernética. Nasce então um mundo sem mulheres, sem filhos, sem respeito pela forma de pobreza e de humildade do amor, um mundo onde tudo é visto em função do lucro e da aquisição de poder, onde tudo o que é desinteressado e gratuito é desprezado, perseguido e extinto, e onde até à arte se impõe a máscara e o rosto da técnica.
Mas se o criado se encarar com os olhos do amor, é então compreendido contra todas as verosimilhanças que parecem apontar para o vazio de amor no mundo. Compreendido na sua definitiva razão de ser: não só da sua essência que se pode clarificar de algum modo graças às numerosas relações significativas entre as naturezas particulares, mas também da sua existência em geral, para a qual, aliás, nenhuma filosofia consegue encontrar um fundamento suficiente. Porque é que realmente existe algo em vez de nada? – a questão surge tanto na afirmação, como na negação, da existência de um Ser absoluto. Se este Ser não existe, que razão pode haver para que existam, no seio do nada, estas coisas finitas e efémeras que nem por adição, nem por evolução, alguma vez podem desembocar no Absoluto? Mas se o Absoluto existir e se bastar a si como absoluto, então ainda é quase mais incompreensível porque é que, fora dele, deveria haver algo de diferente. Só uma filosofia do amor autónomo e livre pode justificar a nossa existência, mas não sem interpretar ao mesmo tempo a essência do ser finito em função do amor. Em função do amor, e não, em última instância, da consciência ou do espírito, do saber ou do poder, do prazer ou da utilidade, mas de tudo isso considerado apenas como modos e pressupostos em vista do único acto que tudo perfaz, e que brilha esplendorosamente no sinal de Deus. (...)
Todos os valores do mundo são postos na sua verdadeira luz só pelo sinal de Deus, porque agora se ultrapassam também todos os limites do amor, todas as objecções contra ele, e ainda todas as profundezas misteriosas do amor que se imola são preservadas e subtraídas ao domínio do saber redutor. É sobretudo o homem que se torna verdadeiramente ele próprio no apelo que lhe é dirigido: criado para este fim, chega inteiramente a si próprio como aquele que responde. Ele é a linguagem de que Deus se serve para lhe falar: como é que, neste diálogo, não haveria de se entender a si? Emergindo à luz de Deus, entra na claridade sem pôr em perigo a sua natureza (de modo espiritualista), nem a sua qualidade de criatura (pelo orgulho). Só na salvação concedida por Deus é que o homem se torna plenamente são. Graças ao sinal de Deus que se rebaixa encarnando e se aniquila na morte e no vazio de Deus, é que se pode esclarecer porque é que Deus, já como criador do mundo, saiu de si e desceu abaixo de si: correspondia assim ao seu ser e à sua essência absolutos revelar-se, na sua liberdade abissal e por nada instigada, como o amor insondável, que não é o bem absoluto para lá do ser, mas a profundidade e a altura, o comprimento e a largura do próprio Ser.
Eis porque justamente o primado eterno da palavra divina de amor se oculta numa impotência, que outorga o primado ao amado: o amor de Deus por este filho que é o mundo desperta de tal modo o amor no coração deste que o amor de Deus se pode também tornar filho, um filho que nasceu de sua mãe e que por ela foi despertado para o amor divino-humano. A palavra de Deus suscita a resposta do homem, tornando-se ela própria o amor que responde e que deixa ao mundo a iniciativa. Círculo indestrutível, imaginado e realizado só por Deus, que permanece sem cessar acima do mundo e, por isso mesmo, reside no coração do mundo. No coração se situa o centro; eis porque o coração divino-humano é objecto de veneração, e a cabeça só quando está coberta de sangue e de chagas: como revelação do coração.
Assim se atenua a controvérsia em torno da questão seguinte: consiste a bem-aventurança eterna na visão ou no amor? De facto, ela só pode consistir na “visão” amorosa do amor, pois, que outra coisa se deveria ver em Deus, e como é que o amor poderia ser contemplado, a não ser na comunhão de amor?"
Hans Urs von Balthasar
In "Só o amor é digno de fé", Assírio & Alvim
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