parece-me esta abordagem de D. Manuel Clemente muita válida para nossa reflexão e os três pontos (no final) bons princípios para tentar pôr em prática.
Fraternidade: O item não legislável
Do ideário de 1789 a fraternidade será porventura o item mais difícil, porque menos legislável e certamente mais anímico. É duma "alma" nova que se trata, em que nos sintamos realmente próximos, com a verdade que a palavra "irmão/irmã" transporta, enquanto vinculação íntima, disponível e gratuita.
Não é espontânea, a fraternidade, nem pela lei nem pelo espírito. A legislação incidirá na liberdade cívica e na igualdade política e social, ao menos no capítulo das oportunidades. Mas ninguém nos pode "obrigar" a sentir o outro como irmão, ou a nós mesmos como irmãos dos outros, de todos e de cada um dos outros...
Em sociedades tradicionais, especialmente nas tocadas pelo cristianismo, as vizinhanças eram espontâneas e a vida confraternal mais ativa e expressiva. A aldeia – ou a concentração de "aldeias" que era a cidade emergente – vivia problemas idênticos em ritmos comuns, com momentos simbólicos igualmente gerais. Assim se consideravam "fregueses" (= filhos da mesma igreja) e nalguns lugares até "irmãos de pia [batismal]", porque irmanados num só sacramento.
É verdade que esta relação essencial convivia com maiores ou menores disparidades na escala social e material. Mas é também verdade que a prática religiosa habitual lembrava insistentemente a fraternidade sacramental e a universalidade dum juízo final e iminente para ricos e pobres, nobres e plebeus, clérigos e leigos. Como igualmente se exortava à concretização orante e caridosa da fraternidade, por sufrágios e esmolas.
O grande movimento confraternal que se desenvolveu na Europa, da Idade Média para a Moderna, assinala fortemente tudo isso: confrarias, irmandades. Misericórdias... O traço comum foi o duma fraternidade "ideal", que não desistia de concretizações práticas e mobilizadoras, inclusive no campo cultural e artístico. Aí podemos encontrar até uma das radicações mais certas das atuais democracias, que nem sempre conseguiram manter o ânimo fraternal e cristão que lhes assegurou as origens.
Por outro lado, a evolução comercial, industrial e citadina da Europa contemporânea dificilmente conseguiu e consegue manter as proximidades efetivas e afetivas da sociedade antiga. Bem pelo contrário, verificamos que quanto mais contíguos, habitacional ou laboralmente, também mais ambíguos nos manifestamos, na discrepância flagrante entre a "fraternidade" ideologicamente enunciada e a pouca em que realmente (con)vivemos, por falta de motivação religiosa ou filantrópica. É o caso tão verificado de a habitação em pequenos "fogos" de grandes prédios proporcionar menos vizinhança real do que a habitação em casas apartadas da mesma rua ou bairro. A proximidade forçada ou forçosa, desperta mais o autofechamento, zeloso da sua intimidade, do que predispõe à conversa da rua ou praça comum, de quem se sente seguro de si e dos seus.
Concomitantemente, o trabalho de cada um, em lugares sucessivos e dependente de fatores mutáveis, mais ocasiona individualismo e concorrência do que solidariedades fraternas. Não foi por acaso que a Revolução Francesa, tão fixada na autodisponibilidade burguesa, cedo extinguiu as antigas corporações de artífices... As associações operárias ou patronais que vieram depois expressam outra lógica, de defesa de grupo e "fraternidades" sectoriais e contrapostas. Hoje talvez nem isso, dada a maior mobilidade social e a muito maior individualização dos percursos, além da rarefação ideológica própria da pós-modernidade.
Aqui nos situamos, se é que de que de “situação” se pode falar em terreno tão resvaladiço. Para quem não desista de inspirar cristãmente a cultura, o desafio redobra com as atuais fraturas, que só nos abrem a “fraternidades” de escolha e particularíssima escolha, parecendo insanável a rutura entre as antigas solidariedades prévias e as atuais solidariedades de escolha, tendendo estas a serem sucessivas, discrepantes e restritas. Para “outra margem” passa-nos Jesus de Nazaré, começando com um pequeno grupo, em que podiam coexistir publicanos (Mateus) e zelotas (Simão); uma fraternidade tão universal como única é a origem de nós todos, relativizando consequentemente tudo quanto a possa obnubilar: “Quanto a vós, não vos deixeis tratar por ‘Mestres’, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos” (Mt 23, 8).
Em termos mais conclusivos e práticos, poderemos insistir numa pastoral assim "cultivada":
1) Na consciencialização da raiz religiosa da fraternidade, com grande incidência ecuménica (unidade da criação). No que ao cristianismo respeita, evidenciar a absoluta fraternidade das atitudes e palavras de Cristo: "Ouvistes o que foi dito: 'Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo'. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. [...] Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste" (Mt 5, 43-45.48). E no reconhecimento da origem e convergência de todo o bem que se faça, seja quem for, seja a quem for: "João tomou a palavra e disse: 'Mestre, vimos alguém expulsar demónios em teu nome e impedimo-lo, porque ele não te segue juntamente connosco'. Jesus disse-lhe: 'Não o impeçais, pois quem não é contra vós é por vós'" (Lc 9, 49-50).
2) No mais lídimo espírito cristão e franciscano - da "Galileia dos gentios" às bodas de prata do "espírito de Assis" (1986 ss) - participar e colaborar em tudo o que aproxime grupos, povos e crenças, com incidência humanista, e ultrapasse antigas e atuais manifestações de segregação, desconfiança e mútuo alheamento. Podendo começar pelas nossas próprias comunidades, na valorização da contribuição diferenciada de cada um dos seus membros e grupos, segundo os respetivos carismas, a bem do todo.
3) No campo das "artes e letras", incidir particularmente em tudo quanto manifeste a unidade de origem e destino da nossa humanidade comum, tão expressa na bondade, verdade e beleza essenciais: "De resto, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é nobre, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é respeitável, tudo o que possa ser virtude e mereça louvor, tendo isso em mente. [...] Então, o Deus da paz estará convosco" (Fl 4, 8-9).
D. Manuel Clemente
Bispo do Porto, presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais, no 7.º Encontro Nacional de Referentes da Pastoral da Cultura, Fátima, 29 de Janeiro de 2011)
publicado por © SNPC a 30 de Janeiro de 2011
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