Marc Chagall |
É a arte que dá o nome a Deus
Quando o escritor Paul Claudel faz a receção da poesia de Rimbaud, no seu processo de aproximação ao espiritual, dirá deste - e dizê-lo de um poeta é, de certa forma, dizê-lo de todo o artista - que é um místico selvagem.
Os artistas são essa possibilidade do espírito em estado puro, essa mística prévia a qualquer organização. E, de facto, o espírito não pode viver sem a arte. Não conseguimos aceder à espiritualidade sem esse caminho preparatório que a própria arte é, por três razões fundamentais.
Primeiro, a arte ajuda-nos a operar um desmantelamento necessário do mundo. O mundo deixa de ser a crosta, a superfície, e passamos a ver uma coisa como quem vê outra, introduzindo uma dimensão simbólica. Percebemos que os cinco dedos de uma mão não são apenas a pura materialidade, mas podem conter em si outros mundos possíveis.
A arte é uma espécie de perfuração deste real que tantas vezes nos parece simplesmente linear e opaco, e é uma espécie de rasgão, como Lucio Fontana fazia nas telas, que abre ao olhar a possibilidade de uma profundidade na planura do mundo, na rasura da nossa experiência vital.
Todas as artes são esse rasgão feito com uma navalha aguda dos sentidos, do génio, da intuição, da estética, da sensibilidade. São um rasgão que nos prepara para outra possibilidade de ser.
Neste sentido, o artista não tem de ser cristão ou budista ou filiado numa determinada prática religiosa. Ele tem de ser o artista, tem de viver a experiência artística para operar essa espécie de revisão das próprias imagens e daquilo que à primeira vez assoma ao nosso olhar como uma evidência acabada.
Na admiração, no espanto a que a arte nos inicia não vemos apenas a realidade em si; vemo-la proposta de outra coisa, muitas vezes até como a positividade de uma ausência, como a presença que nos possibilita tatear uma transcendência. Por isso é que a arte é tão fundamental para a experiência espiritual.
Sem a arte, cairíamos num materialismo irresolúvel, porque o mundo seria só o mundo, e a arte é aquilo que nos diz que o mundo não é só mundo, e que o que vemos é apenas o início de uma viagem de superação, de interpretação.
Um segundo aspeto que é um grande contributo da arte para a experiência do espírito é isto que a arte tem de transformar. Aquilo que começa por ser alguma coisa de impalpável, invisível, abstrato, em algo de fisiológico.
A arte começa por tornar o material, imaterial, começa por tornar o visível como uma grande escola para o invisível, mas depois faz também o movimento contrário: a arte é capaz de aproximar, de dar materialidade, de concretizar o estado impalpável, invisível, transcendente.
Quando olhamos para uma pintura de Vieira da Silva não temos dúvidas de que ela está a falar, a referir-se, a mostrar coisas que não estão completamente ali, não estão encerradas nessa imagem; aquela imagem é uma sugestão de muitos outros mundos possíveis, mas a verdade é que ela, não encerrando a realidade toda, é uma presentificação dessa realidade mais vasta.
A arte e os artistas ajudam a fazer com que o espírito deixe de estar capturado por uma abstração e se torne uma espécie de estado fisiológico, uma espécie de cisma, uma espécie de comoção que nos abala.
Os artistas fazem-nos habitar nas entranhas da baleia. Não apenas nos conceitos, nas ideias, nos ideais, mas fazem-nos descer ao côncavo, ao escuro, ao uterino, ao genesíaco, à lava, a esse lugar de prova, mas também de redenção que é a materialidade da vida.
Um terceiro aspeto que constitui um contributo decisivo das artes para o espírito é essa espécie de nomeação que a primeira dá ao segundo. Quando Moisés pergunta a Deus como se chama, Ele responde através da arte verbal, através de um poema: «Eu sou aquele que é».
A arte é a possibilidade de concretizar, de dar um corpo, de dar uma plausibilidade àquilo que nos é estranho, àquilo que é alteridade do nosso corpo, mas que as artes tornam vizinhança, limite, limiar de um diálogo que conseguimos estabelecer a partir da experiência que a arte nos dá.
A arte faz isto de uma forma fantástica, porque ela dá-nos o enunciado para aquilo que não tem nome, dá-nos uma imagem para aquilo que não tem rosto, dá-nos uma audibilidade para o silêncio, realizando isso numa singularidade que traduz a absoluta diversidade do mundo, na pluralidade das formas.
Na singularidade irredutível de cada percurso artístico, de cada voz, de cada pensamento, temos esse ato de nomeação que, se não fosse a arte, não saberíamos dizer.
Foi a arte que deu o nome a Deus. Não é a teologia, não são as religiões que dão o nome a um invisível, é sempre a arte, ou seja, aquilo que está mais próximo do símbolo, aquilo que aceita a turbulência de abraçar o inefável, é que é capaz de o traduzir.
Por isso, os artistas são místicos selvagens, mas é essa mística selvagem primeira que nos pode dar um acesso mais profundo àquela experiência radical do espírito.
José Tolentino Mendonça
Ciclo "Espírito da Arte / Arte do Espírito"
Fundação Arpad Szenes - Vieira da Silva, Lisboa, 5 de novembro de 2015
Publicado em SNPC
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