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A diversidade na Igreja

"A casa do meu Pai tem muitas moradas", diz-nos Jesus no evangelho.

A unidade na diversidade não é sempre aparente na Igreja enquanto povo de Deus, mas é uma realidade em Deus e uma presença na fé cristã desde a sua origem. A Palavra de Deus não é partidária, elitista e exclusiva. O Reino de Deus é como uma árvore que estende os ramos para dar abrigo a todos os pássaros do céu. Cristo não morreu na cruz para salvar uma mão cheia de cristãos. Até o Deus Uno encerra em si o mistério de uma Trindade.

A Palavra de Deus é inequívoca e só pode levar à desinstalação, à abertura ao outro, e a recebê-lo e amá-lo enquanto irmão ou irmã. Ninguém fica de fora, nem mesmo - se tivessemos - os inimigos.

Muitos cristãos crêem nesta Igreja, nesta casa do Pai, corpo de Cristo, templo do Espírito Santo. Mas como esquecer que muitos se sentem "de fora" por se verem rejeitados, amputados e anulados, e afastam-se por ninguém lhes ter mostrado que há um lugar para cada um, com a totalidade do seu ser?

Um blogue para cristãos homossexuais que não desistiram de ser Igreja

Porquê este blogue?

Este blogue é a partilha de uma vida de fé e é uma porta aberta para quem nela quiser entrar. É um convite para que não desistas: há homossexuais cristãos que não querem recusar nem a sua fé nem a sua sexualidade. É uma confirmação, por experiência vivida, que há um lugar para ti na Igreja. Aceita o desafio de o encontrares!

Este blogue também é teu, e de quem conheças que possa viver na carne sentimentos contraditórios de questões ligadas à fé e à orientação sexual. És benvindo se, mesmo não sendo o teu caso, conheces alguém que viva esta situação ou és um cristão que deseja uma Igreja mais acolhedora onde caiba a reflexão sobre esta e outras realidades.

Partilha, pergunta, propõe: este blogue existe para dar voz a quem normalmente está invisível ou mudo na Igreja, para quem se sente só, diferente e excluído. Este blogue não pretende mudar as mentalidades e as tradições com grande aparato, mas já não seria pouco se pudesse revelar um pouco do insondável Amor de Deus ou se ajudasse alguém a reconciliar-se consigo em Deus.

domingo, 11 de março de 2018

Reinventar a presença da Mulher na Igreja

Albert Lynch "Jeanne d'Arc"
As culturas femininas

Há dois anos a Assembleia plenária do Pontifício Conselho da Cultura foi dedicada ao tema "As culturas femininas: igualdade e diferença. Transcrevo um artigo publicado antes da mesma, com o texto que lhe servia de base, na esperança que estas reflexões passem do papel e se vão tornando carne.

"«Porque há tão poucas respostas e tão inadequadas à valorização do corpo, do amor físico, aos problemas da maternidade responsável? Porque é que uma presença tão grande de mulheres na Igreja não incidiu nas suas estruturas? Porquê atribuir à mulher na prática pastoral só aquelas tarefas que lhes atribui um esquema algo rígido de resíduos ideológicos e ancestrais?» «O que é que não funciona hoje, quando a imagem de mulher que têm os homens da Igreja já não corresponde, em geral, à realidade?»

(...) Referindo-se à participação da mulher na vida da Igreja, refere-se que «o terreno está minado pelo preconceito e enraizado em posições ancestrais alimentadas com o combustível da tradição e de uma excessiva presença masculina, muitas vezes refratária a qualquer confrontação. Já passou a hora de qualificar automaticamente toda a petição feminina com a etiqueta de feminismo, na qual há frequentemente reivindicações mais ou menos aceitáveis».

O texto, que apresentamos na íntegra, divide-se em quatro secções: "Entre igualdade e diferença: a procura de um equilíbrio", "A 'generatividade' como código simbólico", "O corpo feminino: entre cultura e biologia" e "As mulheres e a religião: fuga ou novas formas de participação na vida da Igreja?".

O encontro conta com a participação de dois portugueses: o bispo D. Carlos Azevedo, delegado daquele organismo da Cúria da Santa Sé, e o padre José Tolentino Mendonça, consultor do mesmo departamento.

A assembleia é presidida pelo presidente do Pontifício Conselho da Cultura, o cardeal italiano Gianfranco Ravasi (...).

Documento de trabalho da assembleia plenária do Pontifício Conselho da Cultura
Premissa

«Estou convencida de que a espécie "humana" se desenvolve como espécie dupla "varão" e "mulher", que a essência do ser humano, à qual não deve faltar nenhuma característica, tanto num como na outra, se manifesta de maneira dupla, e que toda a estrutura da essência coloca em evidência esta marca específica» (Edith Stein).

O trabalho da assembleia plenária, graças ao inestimável contributo dos membros e consultores, através de quatro etapas temáticas, tratará de captar alguns aspetos das culturas femininas para identificar possíveis itinerários pastorais, de modo que as comunidades cristãs sejam capazes de escutar e dialogar com o mundo contemporâneo também neste âmbito.

Usar a expressão "culturas femininas" não significa separá-las das masculinas, mas manifesta a consciência de que existe um "olhar" sobre o mundo e sobre tudo o que nos rodeia, sobre a vida e sobre a experiência, que é próprio das mulheres.

Esta perspetiva singular faz-se presente tendencialmente no tecido de todas as culturas e sociedades, e pode ser captada na família, no trabalho, na política e na economia, no estudo e nas decisões, na literatura, na arte e no desporto, na moda e na cozinha, etc.

Este texto, elaborado por um grupo de mulheres à luz das considerações pastorais enviadas pelos membros e consultores, servirá como guia para as nossas reflexões.

Nos alvores da história humana, as sociedades distribuíam rigidamente papéis e funções entre homem e mulher. Aos homens correspondia a responsabilidade, a autoridade e a presença na esfera pública: a lei, a política, a guerra, o poder. Às mulheres correspondia a reprodução, a educação e o cuidado da espécie humana no âmbito doméstico.

No mundo europeu antigo, nas comunidades do continente africano, nas antiquíssimas civilizações que se desenvolveram no universo asiático, as mulheres exercitavam os seus próprios talentos no âmbito da família e das relações pessoais, não frequentavam a esfera pública ou, inclusive, eram excluídas dela. As imperatrizes e rainhas que os livros de História recordam são notáveis exceções à regra.

Desde meados do século XIX, sobretudo no Ocidente, a divisão entre espaços masculinos e femininos e o seu carácter de normalidade foi colocada em questão. As mulheres reivindicam igualdade; não aceitam o papel de "segundo sexo", mas exigem os mesmos direitos, como o direito ao voto, o acesso à instrução superior e às profissões. O caminho fica aberto à paridade entre sexos.

Este processo não está isento de dificuldades. Com efeito, no passado (só no passado?), as mulheres tiveram de lutar para poder exercer profissões ou assumir papéis de decisão que estavam destinados exclusivamente aos homens. Os âmbitos de reflexão estendem-se de maneira planetária às diferentes culturas, transformam-se e apresentam-se com matizes diversos, às vezes entrelaçando-se com movimentos políticos fortemente ideológicos.

Neste horizonte globalizado e fortemente dialético, a exigência de encontrar respostas torna-se cada vez mais urgente. A nossa assembleia plenária esforça-se por tratar de captar e compreender a especificidade feminina, ao considerar temas como função, papel, dignidade, igualdade, identidade, liberdade, violência, economia, política, poder, autonomia, etc.

Tema 1 - Entre igualdade e diferença: a procura de um equilíbrio
As diferenças existem
Falando em geral, as mulheres procuram hoje formas de conciliar a vida profissional e os compromissos familiares. Podem renunciar à maternidade, mas se têm filhos não evitam o compromisso de os alimentar, educar e proteger. Se não estão casadas e não têm filhos, as mulheres, em todo o caso, acolhem, incluem, procuram a mediação, são capazes de ternura e de perdão muito mais do que os homens.

Além do modo diferente de serem pais, há uma diferença entre o feminino e o masculino nas técnicas de resolução de problemas, na perceção do ambiente, nos modelos de representação e ciclos de repouso, só para citar algumas categorias. Abolir as diferenças significa empobrecer a experiência pessoal. Neste sentido, é justo não aceitar uma neutralidade imposta, mas valorizar a diferença.

A onda igualitária, todavia, é contínua, toca todos os âmbitos da vida social e quase todas as instituições humanas e as culturas. É tão forte que, nos últimos anos, no Ocidente, chegou-se a afirmar que não há nenhuma diferença: o sujeito é neutro, e escolhe e constrói a sua própria identidade, é proprietário de si mesmo e responde em primeiro lugar a si mesmo.

Contudo, ao reivindicar a paridade, raramente as mulheres renunciam à própria diferença. Um exemplo extraído da realidade pode ilustrar esta afirmação. O coordenador de uma conferência internacional apresenta o primeiro orador: é Michelle, 65 anos, nascida num país europeu; no seu país foi uma das primeiras mulheres doutoradas em física e a primeira reitora de uma universidade; desde há alguns anos é presidente de uma das mais importantes associações académicas europeias; o coordenador pergunta-lhe que título prefere de todos os que obteve; a resposta de Michelle é: «O título que prefiro é o de "avó", e gostaria de agir mais como tal».

Ainda que Michelle não possa ser avó tanto como deseja, este "título" é parte integrante da sua identidade e permite-lhe autodefinir-se. A pergunta, subtilmente incisiva, que subjaz a este exemplo é: a mesma situação, com um protagonista masculino, teria obtido a mesma resposta?

Iguais e diferentes, as duas coisas ao mesmo tempo?
Numa modernidade onde o trabalho é a via mestra e mais sólida para evitar a pobreza e a exclusão, as mulheres pedem trabalho, às vezes também uma carreira, e o reconhecimento do seu esforço em termos de estatuto e dinheiro iguais aos dos homens. Reclamam na esfera pública um espaço igual ao concedido aos homens. Pedem para serem consideradas pessoas na sua própria plenitude, não apenas subalternas. Muitos países do mundo, inclusive, modificaram o próprio ordenamento jurídico para reconhecer o equilíbrio e a igual distribuição de responsabilidades entre marido e mulher, pai e mãe.

No começo do terceiro milénio, a subjetividade feminina tendencialmente expressa-se entre estes dois pontos. No mundo há muitas culturas femininas; cada uma com modos, formas e tempos próprios, esforça-se por encontrar um equilíbrio que evite os dois extremos perigosos deste processo: a uniformidade, por um lado, e a marginalização, por outro. A diferença e a igualdade das mulheres não é "contra" mas "com". A experiência histórica da condição feminina ensinou às mulheres que a neutralidade é, na realidade, uma forma de despotismo, e faz-nos sair do humano.

- A diferença (entre homem e mulher) gerou uma desigualdade radical. Onde se devem procurar as suas raízes? Na antropologia cultural? Na detenção do poder, firmemente nas mãos de quem (homens) é tradicionalmente reconhecido como mais hábil para mandar?

- A questão do "género" ("gender") pode ligar-se, de alguma maneira, a esta visão desigual entre homem e mulher, de onde deriva a pretensão de criar-se uma identidade cultural? Pode haver alguma relação, especialmente ao nível das tensões sociais?

- As categorias de "reciprocidade" e "complementaridade" podem ser uma chave de leitura e um itinerário possível de vida, ou é necessário identificar outras categorias?

- A igualdade como pessoa humana necessita da diferença para dar plenitude à Palavra de Deus criadora: «Deus disse: façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança... E Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou: homem e mulher os criou» (Génesis 1, 26-27). Que linguagem poderíamos usar hoje para tornar compreensível esta palavra? A narração bíblica continua a conservar força argumentativa?

Tema 2 - A "generatividade" como código simbólico
Numerosos estudos de carácter ético, antes ainda que jurídico, demonstram claramente que a "generatividade" é um dos temas mais debatidos e controversos no atual panorama cultural, social e político do Ocidente, e não só: basta pensar em questões como gestação sub-rogada, barrigas de aluguer, fecundação medicamente assistida, homóloga e heteróloga, etc. Desta convicção surgiu a decisão de ler a categoria da "generatividade" em chave simbólica, evitando leituras mais complexas de tipo sociológico, jurídico e bioético que teriam requerido análise mais detalhada e tempos mais alargados de investigação e debate.

Recorrendo a alguns exemplos, podemos afirmar que um percurso generativo divide-se em quatro momentos: desejar, iluminar, cuidar e, por último, deixar andar. A "generatividade", enquanto ato antropológico originário e como código simbólico, manifesta-se também nos espaços pedagógicos (educação para a fé, atividade pastoral, formação escolástica), dando vida a estruturas sociais, culturais e económicas inspiradoras de valores, ideias, princípios e práticas orientadas para o bem comum, ao desenvolvimento integral do ser humano e ao compromisso solidário.

Ponto de partida de todo o ser humano
A "generatividade" gira, inevitavelmente, em torno do corpo da mulher. O universo feminino, por uma predisposição natural, espontânea, biofisiológica, desde sempre protege, conserva, cuida apoia, cria atenção, consenso e cura em torno a quem é concebido, se desenvolve, nasce e cresce.

A fisicalidade das mulheres, que torna o mundo vivo, longevo e capaz de se estender, encontra a sua máxima expressão no seio materno. O corpo da mulher é o ponto de partida de cada ser humano, a fonte primária da resposta à angústia da morte. No corpo da mulher tem lugar a vida pré-natal, que tem um valor e uma importância fundamental porque deixa uma marca inicial no corpo e no cérebro da criança.

Trazer ao mundo um ser humano é muito mais do que concebê-lo ou dá-lo à luz. Implica ajudá-lo a desenvolver o próprio potencial para realizar-se e viver uma vida plena, em que as crises e as dificuldades podem enfrentar-se com recursos "intra" e "inter" pessoais.

Neste horizonte generativo, a "mens", como ensinam as neurociências, emerge das atividades do cérebro cujas estruturas e funções estão diretamente influenciadas pelas experiências interpessoais, a partir da vida pré-natal. É um processo biológico de integração, estimulado por relações fundadas sobre a segurança, a sintonização emotiva, a cooperação e a compreensão.

Outros contextos da "liberdade generativa"
Visto que toda a relação tem um impacto sobre o cérebro e a mente, a "generatividade" pode expressar-se em qualquer relação, em todo o momento da vida, declinando-se de múltiplas maneiras. Promovendo uma vida boa, cada pessoa faz-se generativa quando imprime a própria marca na existência daqueles que lhes são confiados.

Isto pode acontecer nos mais variados contextos: da família aos lugares da educação, da atenção médica, da informação e da empresa. Mulheres empresárias e diretoras, por exemplo, que se ocupam da gestão com critérios fundados sobre o respeito, o acolhimento, a valorização das diferenças e das competências, geram e protegem a vida expressando fecundidade.

Estes processos estão na base de um futuro plenamente humano, baluarte contra a involução da espécie humana, um risco possível onde se cultiva sem harmonia a lógica da competição e do poder.

- O primeiro contacto com o mundo e o primeiro olhar sobre a vida de todo o ser humano têm um destinatário feminino. Reconhece-se suficientemente o valor das mulheres neste segmento imprescindível da vida humana?

- Reconhece-se o papel central das mulheres que acompanham até à plenitude do humano na sociedade e na Igreja, em todas as latitudes?

- O trabalho do cuidar continua a ser "coisa de mulheres" (anjos do lar)? Tem reconhecimento económico? Como traduzir esta expressão a nível social? E na Igreja?

- O nascimento de novas modalidades e espaços generativos (relações, amizades, apoio, solidariedade, etc.) pode ser facilitado pela rede virtual. Que espaço encontram as mulheres no mundo das comunicações sociais para se expressar?

Tema 3 - O corpo feminino: entre cultura e biologia
O corpo feminino
Para a mulher - como sucede também na experiência masculina - o corpo representa, em sentido cultural e biológico, simbólico e natural, o lugar da própria identidade. É sujeito, meio, espaço de desenvolvimento e da expressão do eu, lugar de convergência de racionalidade, psicologia, imaginação, funcionalidade natural e tensão ideal.

O corpo feminino coloca-se como filtro de comunicação com o outro, num intercâmbio, contínuo e inevitável, entre indivíduo e contexto. Assim, a identidade feminina encontra-se no ponto de convergência da fragilidade quotidiana, da vulnerabilidade, da mutabilidade, do múltiplo, entre vida emotiva interior e fisicidade exterior.

A cirurgia estética pode enquadrar-se como uma das muitas possíveis manipulações do corpo que exploram os seus limites quanto ao conceito de identidade. Uma especificidade que no mundo contemporâneo se encontra submetida a pressões, ao ponto de provocar patologias (dismorfofobia, transtornos da alimentação, depressão...) ou "amputar" as possibilidades expressivas do rosto humano ligadas à capacidade empática.

A cirurgia estética, quando não é médico-terapêutica, pode expressar agressão à identidade feminina, mostrando a rejeição do próprio corpo enquanto rejeição da vida que se está a atravessar.

Assim, se o corpo feminino é o "lugar da verdade" do eu feminino, no imprescindível entretecimento de cultura e biologia, é também o lugar da traição a esta verdade. O uso indiscriminado e indiferenciado que a comunicação, em todas as suas declinações, desde a publicidade (alusão sexual e denegrição do papel feminino) aos médias, operou no corpo feminino, é um exemplo incontestável. Nenhuma batalha política ou social conseguiu desfazer um mecanismo tão arraigado como o da exploração do corpo feminino com fins comerciais.

A agressão ao corpo da mulher
Segundo estimativas da ONU, mais de 70 por cento das pessoas que no mundo vivem na indigência são mulheres: mulheres pobres, mulheres incultas, em condições de exploração, perigo, sujeição, dificuldade, ou seja, situações que limitam profundamente as suas possibilidades de conhecimento, informação, emancipação e libertação.

Mulheres mutiladas pela depressão, desarmadas, sem coragem e sem valor, sujeitas aos homens; mulheres que aceitam uma presumida inferioridade e que se veem condicionadas pelos costumes culturais das sociedades onde vivem. A pobreza é, portanto, causa e consequência da violência sobre as mulheres.

Em semelhante cenário, o corpo da mulher pode converter-se no lugar simbólico do "nada", do "ser-objeto", através da ocultação, mutilação e constrição do corpo, até à eliminação de toda a subjetividade, de qualquer expressão de vida e de pensamento. Neste sentido, a prostituição pode ser considerada a forma mais difundida de escravidão, inclusive nas sociedades civis e democráticas.

Quando se fala da violência perpetrada contra as mulheres, começando pelas meninas, fala-se também da violação dos princípios e valores sancionados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e das seguintes leis nacionais e internacionais em defesa e proteção dos direitos humanos que evocamimediatamente o mandamento bíblico de não oprimir o órfão e a viúva (Êxodo 22, 21).

Se é certo que todos os indivíduos gozam de direitos iguais enquanto seres humanos, não há desculpas, sejam do tipo cultural ou social, para legitimar, minimizar o inclusive tolerar a violência de género. Mas isto continua a acontecer hoje, considerando que a violência sobre as mulheres mergulha as suas raízes mais profundas precisamente na discriminação e nos estereótipos ligados aos papéis.

O femicídio é o homicídio da mulher "enquanto mulher", para apoderar-se de algo que se considera um direito exclusivo, recorrendo à humilhação e à violência, seja física ou psicológica.

O aborto seletivo, o infanticídio, as mutilações genitais, os delitos de honra, os matrimónios forçados, o tráfico de mulheres, abusos sexuais, violações - que em algumas regiões do mundo se convertem em violações em massa ou étnicas - são algumas das feridas mais profundas infligidas quotidianamente à alma do mundo passando pelo corpo das mulheres e das meninas, vítimas silenciosas e invisíveis.

É necessário potenciar a formação de quantos vivem em contacto com a violência, mas há que promover também uma cultura da convivência entre homens e mulheres, conscientes de que o mundo está confiado a uns e a outras em igual medida.

- A "violência doméstica" - exercida pelos homens, pais, maridos ou irmãos - é a primeira causa de morte no mundo para as mulheres entre 16 e 44 anos. A fria estatística coloca duas perguntas: por que é que uma mulher é assassinada por um marido, companheiro ou ex-companheiro de anos de vida, pais de filhos que criaram juntos? Por que é que uma mulher, ao primeiro empurrão ou às primeiras palavras brutais, não afasta de si para sempre o homem que a ameaça, e que queima, destrói e profana o amor conjugal até ao extremo?

- «A cirurgia estética é como uma burca de carne.» Uma definição tão acertada como fustigante, dada por uma mulher. Salvaguardando a liberdade de escolha de cada um, não estaremos sob o jugo cultural de um modelo feminino único? Pensamos nas mulheres usadas na publicidade e na comunicação de massa?

- De geradores de vida a produtores. O horizonte científico interpela-nos: um cenário onde se concebe sem ter em conta o corpo, sobretudo feminino, onde o chamamento à existência de um ser humano acontece sem relação, primeiro com os pais e depois entre mãe e filho, não significa uma deriva rumo ao corpo como produtor e não como gerador? Podemos ignorar a sofisticada interação entre cultura, biologia e tecnologia?

- O corpo expressa o ser de uma pessoa, mais do que uma dimensão estética autorreferencial. Como evitar uma aproximação puramente funcional (sedução, comercialização, utilização com fins de mercado) ao corpo da mulher?

Tema 4 - As mulheres e a religião: fuga ou novas formas de participação na vida da Igreja?
Das mulheres vêm perguntas dolorosas e sinceras. Tratemos de escutar o seu desconforto espiritual ante uma iconografia feminina obsoleta em que não conseguem reconhecer-se e ver-se refletidas.

Poderemos abrir esta última sessão de trabalho com uma série de perguntas: que anúncio querigmático [primeiro anúncio das verdades de fé fundamentais para a Igreja], que não se reduza a uma visão moralista, pode haver para as mulheres? Que indicações para uma prática pastoral renovada, para um caminho vocacional rumo ao matrimónio e à família, rumo à consagração religiosa, considerando a nova consciência de si que adquiriram as mulheres? Porque há tão poucas respostas e tão inadequadas à valorização do corpo, do amor físico, aos problemas da maternidade responsável? Porque é que uma presença tão grande de mulheres na Igreja não incidiu nas suas estruturas? Porquê atribuir à mulher na prática pastoral só aquelas tarefas que lhes atribui um esquema algo rígido de resíduos ideológicos e ancestrais?

Ontem

«Mas a hora vem, a hora chegou, em que a vocação da mulher se realiza em plenitude, a hora em que a mulher adquire na cidade uma influência, um alcance, um poder jamais conseguidos até aqui. É por isso que, neste momento em que a humanidade sofre uma tão profunda transformação, as mulheres impregnadas do espírito do Evangelho podem tanto para ajudar a humanidade a não decair» (Mensagem do Concílio Vaticano II às mulheres).

E também: «[Homens e mulheres] contribuam com a riqueza do próprio dinamismo para a construção do mundo», porque «hoje é urgente, tanto na sociedade civil como na Igreja, um trabalho para despertar e promover a mulher. Trata-se de proteger a dignidade da mulher respeitando sempre o que é genuinamente feminino (esta é a verdadeira igualdade), e evitando que a mulher, no seu legítimo esforço para se inserir responsavelmente numa sociedade marcadamente machista, perca a sua feminilidade. No respeito desta originalidade da mulher baseia-se o verdadeiro desenvolvimento da posição da mulher» (Comissão de Estudo sobre a Mulher na Sociedade e na Igreja).

Através desta concisa evocação do Concílio Vaticano II e do trabalho da mencionada comissão encerramos o nosso olhar ao passado recente que todos recordamos.

Hoje

O olhar para o presente faz-nos correr o risco da retórica ou dos lugares comuns. São as mulheres as primeiras que acreditam, são elas as primeiras testemunhas. E é precisamente a elas, às mães e às avós em primeiro lugar, a quem o papa Francisco pediu que continuem a levar o anúncio de esperança e ressurreição.

As mulheres, com efeito, representaram sempre para a Igreja a fortaleza silenciosa da fé, a elas pediu-se sempre que se ocupem da educação das crianças na vida da fé. Constituem um exército de mestras, catequistas, mães e avós que, todavia, olhando de perto a realidade atual, são figuras que parecem pertencer a um mundo antigo em vias de extinção.

A crise vai afirmando-se a partir das jovens. No Ocidente, as mulheres entre 20 e 50 anos vão menos à missa, optam cada vez menos pelo matrimónio religioso, poucas seguem uma vocação religiosa e, em geral, mostram uma certa desconfiança pela capacidade formativa dos homens religiosos.

O que é que não funciona hoje, quando a imagem de mulher que têm os homens da Igreja já não corresponde, em geral, à realidade? Hoje as mulheres já não passam a tarde a rezar o terço ou em devoções piedosas. Muitas vezes são trabalhadoras, diretoras ocupadas como os homens, e às vezes mais, porque muitas vezes recai sobre elas o cuidado da família. São mulheres que alcançaram, por vezes com esforço, postos de prestígio na sociedade e no mundo do trabalho, às quais não corresponde nenhum papel de decisão ou de responsabilidade na comunidade eclesial.

Não está em discussão o sacerdócio feminino, coisa que, por outro lado, segundo as estatísticas, interessa muito pouco às mulheres. Se como diz o papa Francisco, as mulheres têm um papel central no cristianismo, este papel tem de ter correspondência na vida normal da Igreja.

Olhar o futuro
O terreno está minado pelo preconceito e enraizado em posições ancestrais alimentadas com o combustível da tradição e de uma excessiva presença masculina, muitas vezes refratária a qualquer confrontação. Já passou a hora de qualificar automaticamente toda a petição feminina com a etiqueta de feminismo, na qual há frequentemente reivindicações mais ou menos aceitáveis.

Toda a época histórica está marcada por conflitos e esperanças, que hoje revelam de forma inderrogável a complementaridade entre homem e mulher. Um terreno difícil de lavrar, mas que daria frutos abundantes, também na própria Igreja.

Não se trata de pôr em marcha uma revolução contra a tradição. As vozes femininas com bom senso não pretendem nem pensam arrancar vestes ou lugares aos homens, subvertendo a relação de poder entre sexos, nem, muito menos, colocar-se um barrete púrpura, em detrimento do reconhecimento das mulheres com todas as suas peculiaridades femininas.

O objetivo realista poderia ser abrir às mulheres as portas da Igreja para que ofereçam a sua competência, sensibilidade, intuição, paixão e dedicação, em plena colaboração e integração com a componente masculina.

- Que espaços se propõem às mulheres na vida da Igreja? São acolhidas tendo em conta a nova e diferente sensibilidade cultural, social, identitária? Continuam a propor-se modalidades de participação a partir de esquemas masculinos que não lhes interessam?

- Perguntámo-nos sobre que tipo de mulher necessita hoje a Igreja? A sua participação pensa-se e elabora-se juntamente com elas? Ou entregam-se-lhes modelos já elaborados que não respondem às suas expectativas ou respondem a perguntas hoje superadas?

- Estão as mulheres a fugir da Igreja? Talvez em algumas áreas culturais isto seja correto. Outras, pelo contrário, poderiam sugerir elementos preciosos para propor e novos horizontes para onde dirigir o olhar. O debate pastoral entre experiências diversas, em que as mulheres têm a possibilidade de fazer ouvir a sua voz e oferecer a sua disponibilidade ao serviço, não poderia converter-se numa modalidade sinodal de viver a fé e habitar na Igreja?

- Quais são as características da presença das mulheres nas diversas sociedades e culturas a partir das quais poderíamos extrair inspiração para uma renovação da pastoral e permitir uma participação ativa na vida da Igreja?"

Tradução e edição de Rui Jorge Martins para SNPC
em 27 de janeiro de 2015

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Porque estou aqui

Sinto-me privilegiado por ter encontrado na Igreja um lugar vazio, feito à minha medida. É certo que tê-lo encontrado (ou encontrá-lo renovadamente, pois não é dado adquirido) foi também mérito da minha sede, do meu empenho, de não baixar os braços e achar, passivamente, que não seria possível. Passo a contextualizar: a comunidade onde vou à missa é pequena e acolhedora, e podia bem não o ser. Ao mesmo tempo, sentia um desejo grande de reflexão de vida cristã e encontrei um casal (heterosexual) que tinha a mesma vontade. Começámo-nos a reunir semanalmente numa pequena comunidade de oração e reflexão que, apesar de crítica, nos tem ajudado a sermos Igreja e a nela nos revermos. Paralelamente, face ao contínuo desencanto em relação a algumas posturas e pontos de vista de uma Igreja mais institucional e hierárquica, tive a graça de encontrar um grupo de cristãos homossexuais, que se reuniam com um padre regularmente, sem terem de se esconder ou de ocultar parte de si.

Sei que muitos cristãos homossexuais nunca pensaram sequer na eventualidade de existirem grupos cristãos em que se pudessem apresentar inteiros, quanto mais pensarem poder tomar parte e pôr em comum fé, questões, procuras, afectos e vidas.

Por tudo isto me sinto grato a Deus e me sinto responsável para tentar chegar a quem não teve, até agora, uma experiência tão feliz como a minha.

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