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A diversidade na Igreja

"A casa do meu Pai tem muitas moradas", diz-nos Jesus no evangelho.

A unidade na diversidade não é sempre aparente na Igreja enquanto povo de Deus, mas é uma realidade em Deus e uma presença na fé cristã desde a sua origem. A Palavra de Deus não é partidária, elitista e exclusiva. O Reino de Deus é como uma árvore que estende os ramos para dar abrigo a todos os pássaros do céu. Cristo não morreu na cruz para salvar uma mão cheia de cristãos. Até o Deus Uno encerra em si o mistério de uma Trindade.

A Palavra de Deus é inequívoca e só pode levar à desinstalação, à abertura ao outro, e a recebê-lo e amá-lo enquanto irmão ou irmã. Ninguém fica de fora, nem mesmo - se tivessemos - os inimigos.

Muitos cristãos crêem nesta Igreja, nesta casa do Pai, corpo de Cristo, templo do Espírito Santo. Mas como esquecer que muitos se sentem "de fora" por se verem rejeitados, amputados e anulados, e afastam-se por ninguém lhes ter mostrado que há um lugar para cada um, com a totalidade do seu ser?

Um blogue para cristãos homossexuais que não desistiram de ser Igreja

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Este blogue também é teu, e de quem conheças que possa viver na carne sentimentos contraditórios de questões ligadas à fé e à orientação sexual. És benvindo se, mesmo não sendo o teu caso, conheces alguém que viva esta situação ou és um cristão que deseja uma Igreja mais acolhedora onde caiba a reflexão sobre esta e outras realidades.

Partilha, pergunta, propõe: este blogue existe para dar voz a quem normalmente está invisível ou mudo na Igreja, para quem se sente só, diferente e excluído. Este blogue não pretende mudar as mentalidades e as tradições com grande aparato, mas já não seria pouco se pudesse revelar um pouco do insondável Amor de Deus ou se ajudasse alguém a reconciliar-se consigo em Deus.

sábado, 17 de março de 2018

Padre Tolentino Mendonça orientou a reflexão quaresmal do Papa

Marc Chagall
Tolentino Mendonça. A vida do padre-poeta que orientou o retiro do Papa

por João Francisco Gomes, a 24 de fevereiro de 2018, in Observador

Padre, poeta, cronista. Tolentino Mendonça foi chamado pelo Papa para orientar o seu retiro espiritual. Quem é o português que o Vaticano considera "das vozes mais autorizadas da cultura do seu país"?

No início da década de 90, pouco depois de ter sido ordenado padre e de ter concluído um mestrado em Roma, José Tolentino Mendonça regressou a Lisboa. Foi nomeado capelão da Universidade Católica, onde começou a dar aulas. Foi lá que Pedro Mexia, na altura estudante de Direito, conheceu o jovem sacerdote. Ele e os colegas descobriram um padre diferente do habitual. “Lembro-me de as pessoas ficarem muito cativadas com o estilo dele. Houve até pessoas que passaram a ir à missa para o ouvir”, recorda o poeta português, 25 anos depois. “Nós dizíamos uns aos outros que achávamos que aquele tipo ia longe. Agora, o Papa também acha.”

Foi longe. No final do mês passado, o L’Osservatore Romano, jornal oficial do Vaticano, anunciava que o padre e poeta português tinha sido escolhido para orientar o retiro anual de Quaresma do Papa Francisco e dos restantes membros da Cúria Romana (os órgãos de governo da Igreja Católica). “Teólogo e poeta, é uma das vozes mais autorizadas da cultura do seu país“, lê-se no artigo, que anunciava que Tolentino Mendonça iria passar uma semana na Casa do Divino Mestre, nos arredores de Roma, a orientar o Papa nas dez meditações do retiro, dedicadas ao “elogio da sede”.

Tolentino Mendonça aceitou de imediato, “com muita humildade”, o desafio de se tornar no primeiro português a orientar a reflexão do Papa. “Sou um simples padre, e acolho [o pedido] com um sentido de serviço à Igreja e ao Santo Padre”, disse ao portal Vatican News. Porém, as crónicas que assina semanalmente na revista do Expresso e a sua vasta obra literária levam a uma conclusão diferente. Tolentino Mendonça não é só um simples padre. É um professor, poeta e ensaísta dono de perspetivas muito próprias sobre a fé, que podem surpreender os mais distraídos.

“Quando ele escreve um texto no Expresso sobre o Bruce Springsteencomo se estivesse a falar de São Francisco de Assis, a primeira reação é de perplexidade. De facto, não há razão nenhuma para essa perplexidade. Ele consegue encontrar pontos de contacto com a dimensão religiosa, mesmo naquilo que, numa cultura, podia parecer hostil ou alheado dessas questões. São fórmulas inesperadas“, resume Pedro Mexia ao Observador.

As fórmulas que usa na sua obra literária são as mesmas a que recorre nas salas da Universidade Católica, onde hoje é vice-reitor. O padre Miguel Vasconcelos, jovem sacerdote que não esconde a alegria de hoje ser sucessor de Tolentino Mendonça no cargo de capelão daquela universidade, lembra as aulas com o poeta. “Uma das coisas que marcam a ação dele é a capacidade de olhar para os Evangelhos com a sensibilidade dos artistas. É uma teologia contemplativa, com a lupa da estética. E isso é próprio dele, por ele ser poeta, não é uma fabricação”, conta o sacerdote.

De facto, esta análise da fé pelos olhos da arte marcou a semana de retiro do Papa, que terminou na sexta-feira. Logo no domingo, na primeira meditação, que dedicou ao tema “Aprendizes do espanto”, Tolentino Mendonça colocou a literatura ao lado da Bíblia, para sugerir ao Papa Francisco e aos participantes dos exercícios espirituais uma leitura do episódio da Samaritana, do Evangelho de João, a partir de citações de Fernando Pessoa e de Lev Tolstoi.

“Não há uma distinção clara entre o padre e o poeta“, explica o crítico literário João Pedro Vala, admirador convicto da obra de Tolentino Mendonça. “Quando se ouve um sermão do padre Tolentino, ou se lê um poema ou uma crónica, não existe uma distinção. Os sermões são poéticos, e os poemas, não sendo pregações, vêm da mesma pessoa, têm a mesma doçura. Trata o leitor como um membro da sua paróquia.” Por isso foi escolhido como pregador para o Papa, assume sem dúvidas quem o conhece.

Em todas as dimensões da sua vida — poeta, escritor, professor e padre especialista em estudos bíblicos — as palavras ocupam um lugar de destaque. “A palavra é o grande lugar para o conhecimento que faço de mim próprio“, disse Tolentino Mendonça numa entrevista à RTP. A paixão pelas palavras nasceu durante a infância passada entre a ilha da Madeira, onde nasceu e para onde regressou aos nove anos, e Angola, para onde se mudou com a família ainda bebé e onde viveu os primeiros anos da sua vida.

Madeira, Angola, a avó e o amor a Herberto Hélder

José Tolentino Mendonça nasceu em Machico, na ilha da Madeira, a 15 de dezembro de 1965. Com apenas um ano de idade, deixou a terra natal para se mudar para o Lobito, em Angola, onde o seu pai e os seus tios, uma família de pescadores, já viviam. Numa longa entrevista que deu ao Público em 2012, Tolentino Mendonça recordava esses momentos. “Lembro-me de uma viagem que fiz com o meu pai. Na minha cabeça ia também pescar. Dei comigo, para lá dos enjoos típicos de um iniciante pelo mar fora, na borda do barco, a olhar as paisagens. Praias que ainda não tinham sido exploradas, rochedos, o azul do mar, o fundo do mar”, contou.

“Essa contemplação despertava em mim uma emoção enorme, enorme. Ficava boquiaberto. Como se aquela vida intacta, da paisagem do mundo, tivesse em mim um impacto que não sabia expressa”, continuava o padre, lembrando que foi na infância que as portas da literatura se abriram para si. Particularmente no difícil regresso à Madeira, depois do 25 de Abril, que viveu com nove anos. A melhor palavra talvez nem seja regresso, uma vez que Tolentino Mendonça tinha vivido toda a sua infância, até ali, em Angola.

A mudança de vida, lembrava o sacerdote na mesma entrevista, “teve um dramatismo mais literário do que literal”. “Senti que me estava a despedir daqueles lugares. Fui com o meu cão, sozinho. Digo que foi literário porque quis chorar, abraçado ao cão, sentindo que era a última vez que estava ali“, contou, detalhando como encarou aquele momento como “uma aventura no porão de um barco, numa cidade desconhecida”.

Com apenas nove anos, viveu o regresso à Madeira de forma diferente dos seus pais, que sofreram uma “ansiedade enorme” com a mudança de vida. “A Madeira, como os lugares da infância, não são lugares de desencantamento. Uma pequena ilha, a terra dos meus pais, dos meus avós, em condições muito difíceis. Mas a infância não sofreu uma fractura, nem sobressaltos. Essa capacidade de transformar as dificuldades em possibilidades — no fundo, uma enorme capacidade de sobrevivência que a vida da infância tem — protegeu-me. Quando penso na infância nem por uma vez me lembro de medo, de ansiedade”, disse na entrevista ao Público.

Da vida na Madeira, Tolentino Mendonça recorda sobretudo a relação com a natureza e com o mar. “Vivia no Machico, num mundo ainda rural, muito próximo do mar, com grandes espaços em que dava para me deitar na terra e olhar as estrelas. Tinha um caderno em que apontava os barcos que passavam, observava as árvores. O meu pai, que era pescador, quando ia às Ilhas Selvagens trazia-me de presente uma cagarra. É um mundo próximo da natureza, tutelado pelas profissões artesanais, atravessado pela poesia, pelos elementos”, lembrava, numa entrevista ao Sol, em 2013.

Com 11 anos, entrou no seminário. “A questão vocacional colocou-se muito cedo. Era uma questão relevante para mim desde miúdo”, recordou na mesma entrevista, destacando o papel da família crente na descoberta da fé. Personagem fundamental na definição do seu percurso foi João Henrique Silva, até 2015 diretor regional dos Assuntos Culturais na Madeira, que na altura era professor no seminário. “Era um homem que gostava muito de cinema. Mostrou-me que era possível viver a fé e escolher uma vocação religiosa em relação com o mundo da cultura.”

Entrar no seminário foi também a oportunidade de entrar numa biblioteca pela primeira vez. Antes, o seu contacto com a literatura era exclusivamente através da sua avó materna. “A minha avó foi a minha primeira biblioteca“, dizia na entrevista ao Público, lembrando que a senhora, que não sabia ler nem escrever, conhecia vários romances e histórias orais de cor. “Numa recolha recente que se fez do romanceiro oral da Madeira uma das pessoas que está lá é a minha avó”, contou Tolentino Mendonça, dizendo-se comovido com essa recordação da avó.

Um outro episódio marcou a sua entrada no mundo literário: uma senhora, também ela analfabeta, zeladora da igreja que frequentava, citava muitas vezes de cor o Cântico dos Cânticos. “Uma vez disse-me aquele poema e fiquei aturdido, extasiado, aquelas palavras apoderaram-se de mim”, contou o padre, garantindo que “há um antes e um depois daquele momento“. Viria a estudá-lo e a traduzi-lo para português durante os seus estudos teológicos.

Finalmente, aos 16 anos, escreveu o primeiro poema, A Infância de Herberto Hélder, poeta com quem partilhava a naturalidade madeirense e que admirava profundamente. “Aos 16 anos não sabia nada. Só sabia que amava o Herberto Hélder”, admitia ao Público, lembrando que aquele poema era sobre a sua própria infância, “uma infância que podia ter sido a de Herberto Hélder“, também “no contexto insular”. Logo no primeiro verso do primeiro poema, Tolentino Mendonça definiu com clareza aquilo que viria a ser o seu percurso literário: “No princípio era a ilha“. Um verso que dizia estar “embebido da palavra divina” ao mesmo tempo que representa o seu “princípio biográfico”, antevendo uma obra em que fé e poesia se confundem.

Em 1982 começou a estudar teologia e em 1990 foi ordenado padre — no mesmo ano em que lançou o primeiro livro de poemas, Os Dias Contados. Depois da ordenação, mudou-se para Roma para fazer um mestrado em Ciências Bíblicas, formação que viria a completar com um doutoramento em Teologia Bíblica, em Portugal, na Universidade Católica de Lisboa. Tornou-se capelão da universidade, professor na Faculdade de Teologia e continuou a publicar com frequência livros de poesia — até hoje publicou mais de três dezenas.

Padre ou poeta?

Pintado numa grande fachada de um prédio em Machico, o poema “Caminho do Forte, Machico“, publicado em 2006 na colectânea A noite abre meus olhos, é a homenagem daquele município madeirense ao poeta da terra. O poema não é propriamente um texto religioso — mas também não é esse o ponto fundamental da obra de Tolentino Mendonça. O crítico literário João Pedro Vala destaca que, mesmo havendo cada vez mais padres católicos com preocupações literárias, poéticas, “a grande novidade do padre Tolentino é que ele não parece obcecado ou centrado na necessidade de usar a literatura para passar uma mensagem religiosa“. “Não me parece que ele procure fazer da literatura um palco para os seus sermões, e isso é diferente de muitos outros padres que também são poetas, que usam a literatura para passar a mensagem do Cristianismo”, diz o crítico ao Observador.

Também Francisco José Viegas, o diretor da editora Quetzal, que publicou o mais recente livro do poeta, sublinha que o âmbito da obra de Tolentino Mendonça extravasa os limites da mensagem religiosa. “Ele é um omnívoro, como eu costumo dizer. Um homem que lê tudo, que cita vários autores, de origem muito diversa. Isso é uma coisa nova no discurso de alguém da hierarquia da Igreja. Deixa contaminar o discurso religioso com uma marca poética“, afirma o editor.

Para o poeta Pedro Mexia, a dimensão literária e a dimensão religiosa de Tolentino Mendonça não devem ser encaradas “como se fossem facetas diferentes ou opostas”. Mexia destaca a “capacidade de chegar às pessoas” do padre Tolentino Mendonça, que “sempre se interessou pelas coisas mais diversas, até ao ponto de as pessoas poderem ficar um bocadinho perplexas”.

“As pessoas estão à espera de que um padre tenha um certo tipo de referências e ele às vezes tem referências muito diferentes”, continua Pedro Mexia, sublinhando como Tolentino Mendonça, padre e poeta, mas também cronista, tem “vontade de procurar a linguagem do nosso tempo, porque a linguagem religiosa tem uma dimensão que não é do nosso tempo“.

Francisco José Viegas considera que esta “contaminação” positiva entre a linguagem artística e a linguagem religiosa “era algo que fazia falta à Igreja Católica”. “Uma das coisas que mais me fascinam no Tolentino Mendonça é a forma como ele pode trazer alguma beleza ao discurso da Igreja”, explica o editor.

“A Igreja procura um novo discurso, um discurso que diga mais às pessoas do nosso tempo, que possa absorver um pouco mais das sensibilidades contemporâneas, mas, mais do que isso, que fale para as pessoas do nosso tempo. As pessoas estão muito recetivas a um discurso que venha contaminado pela beleza, em vez de ser um discurso mais seco, mais tradicional“, destaca Francisco José Viegas, acrescentando que é essa a novidade que Tolentino Mendonça representa.

“Acho que hoje nós não temos a noção do que é um intelectual católico, porque os católicos perderam muitos dos seus intelectuais. Houve um tempo em que a Igreja produzia intelectuais, como George Bernanos, de que assinalamos agora os 120 anos do nascimento, mas também nomes como Alçada Baptista ou Moreira das Neves. Durante muito tempo faltou à Igreja a capacidade de falar para o mundo dos intelectuais. No caso do Tolentino Mendonça, há esta mistura de perspetivas”, defende Francisco José Viegas.

Exemplo deste discurso “contaminado pela beleza” é a forma como vê a Bíblia Sagrada. Biblista de formação, Tolentino Mendonça olha para os escritos fundamentais da Igreja como uma obra de arte. “A Bíblia é um grande poema. Tem uma dimensão literária. Isso também lhe dá uma grande carga revelatória. Torna-a um livro intemporal. A Bíblia não é um catecismo”, defendia Tolentino Mendonça na entrevista ao Público. “Não acho que se deva entender literalmente a Bíblia. A Bíblia precisa de interpretação.

A esta reconhecida capacidade artística, junta-se um “enorme conhecimento dos estudos bíblicos que faz dele um ótimo professor”, diz o padre Miguel Vasconcelos, que não só foi aluno de Tolentino Mendonça em três cadeiras do seu curso de teologia — Evangelhos Sinópticos, Escritos de São Paulo, e Estética e Teologia — como foi seu colaborador na edição portuguesa de uma coletânea de poemas da poetisa brasileira Adélia Prado.

“Ele tem uma capacidade de traduzir a Tradição da Igreja para a linguagem atual, para que a possamos entender hoje, que poucos têm. Ou seja, o conteúdo da Tradição é a verdade que a Igreja acredita ter sido revelada por Deus. Mas a formulação não pode ser sempre igual, muda consoante o destinatário, e o padre Tolentino é um fator de tradução importante, diz as coisas de sempre numa linguagem que é a nossa. E para isso é preciso ter uma vontade de se dedicar ao diálogo, de conhecer os seus destinatários e de estar diante do resto do mundo“, diz o capelão da Universidade Católica de Lisboa.

Esta abertura ao resto do mundo é outra das característica fundamentais de Tolentino Mendonça, que tem um discurso fundamentalmente dedicado aos não crentes. “Interessa-me a religião expressa de forma não-religiosa. Aprendo muito com os não-religiosos, ateus e indiferentes, pois os que não creem fazem perguntas aos que creem e é importante que estes as escutem e aprendam”, dizia o padre, numa entrevista ao Diário de Notícias em 2017.

“Acredito que a crença é um laboratório de descrença e que dentro de um crente há sempre um não crente. Mesmo quem vê Deus por todo o lado faz a experiência de que Ele não está em sítio algum e o contrário também é verdade”, afirmava na mesma entrevista. Antes, na entrevista ao Público, tinha mesmo assumido: “Não tenho um discurso para crentes“.

O poeta Pedro Mexia destaca esta dimensão do sacerdote, notando que “sempre foi claro que Tolentino Mendonça era uma pessoa particularmente cativante, que congregava pessoas que não eram muito obviamente interessadas em questões religiosas lato sensu, e que com ele as ouviam de outra maneira”. “Já tive oportunidade de apresentar dois livros dele e nas apresentações vi gente de todas as estirpes, do ponto de vista social e político“, recorda Mexia.

Na dicotomia padre-poeta, nenhuma das dimensões tem o protagonismo, apesar de uma não viver sem a outra. Segundo conta quem o conhece, nem o sacerdócio de Tolentino Mendonça pode ser entendido sem a poesia, nem os seus escritos podem ser lidos sem ser à luz da sua vocação de padre. João Pedro Vala destaca a dimensão pessoal da sua poesia e das suas crónicas. “Uma pessoa, quando lê as crónicas do padre Tolentino, sente-se sempre em contacto com ele. Sente que está a conhecer uma pessoa boa, é isso que me fascina”, explica o crítico. A posição é partilhada por Pedro Mexia, que sublinha que o padre “está muito atento à vida das pessoas e nos seus poemas aparece muito a relação com a intimidade, com as pessoas e com o segredo”.

A literatura no retiro do Papa

Precisamente por ser um teólogo diferente, um biblista experiente e um poeta contemporâneo, o Papa Francisco acabou por convidá-lo para orientar as meditações do retiro anual que faz com os membros da Cúria Romana, no início da Quaresma. “Quando o Santo Padre quis falar comigo para que colaborasse nos Exercícios da Quaresma, disse-lhe que eu sou apenas um pobre padre, e é a verdade. Ele encorajou-me a partilhar da minha pobreza. Veio então à minha mente propor um ciclo de meditações muito simples sobre a sede, intitulado ‘Elogio da Sede'”, contou Tolentino Mendonça num artigo publicado no jornal italiano Avvenire, aqui numa tradução para português do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

“Não tenho dúvidas de que as suas qualidades artísticas, além das teológicas, contribuíram para a escolha do Papa”, diz Francisco José Viegas, garantindo que “ele é uma pessoa em ascensão na hierarquia da Igreja, a quem a hierarquia presta cada vez mais atenção”. “Ele arrasta multidões. Durante o processo de lançamento do livro anterior, que já saiu na Quetzal, percebi o interesse com que as pessoas o ouvem. O discurso dele é inovador para muita gente que não é católica, nem sequer cristã”, conta o editor.

A hierarquia da Igreja já tem, na verdade, o padre Tolentino Mendonça debaixo de olho há vários anos. O sacerdote, que hoje é o capelão da Capela do Rato, em Lisboa, foi o primeiro diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, um organismo da Conferência Episcopal Portuguesa criado em 2004, destinado a promover o diálogo entre a Igreja e a esfera cultural. Pelo meio, em 2011, foi nomeado consultor do Conselho Pontifício da Cultura, um órgão da Cúria Romana destinado a fazer a ponte entre o Papa e o mundo da cultura — nomeação que viria a ser renovada em 2016.

“Não posso imaginar os critérios que levaram à escolha do padre Tolentino, mas sei que ele é conselheiro do Conselho Pontifício para a Cultura, portanto é levado muito a sério por quem organiza estas coisas. Certamente, o percurso biográfico e teológico, em termos de estudos bíblicos, faz dele capaz do que lhe foi pedido”, diz o padre Miguel Vasconcelos.

Durante esta semana, Tolentino Mendonça presidiu a meditações diárias — uma de manhã e uma à tarde — perante o Papa e os seus colaboradores mais próximos. Nessas meditações, a literatura e a poesia estiveram sempre em cima da mesa. Logo na primeira, citou Fernando Pessoa e Lev Tolstoi para pedir aos participantes que “aprendam a desaprender”. Na segunda meditação, citou Clarice Lispector e Simone Weil para sublinhar a importância de não descurar os escritores e poetas no estudo da teologia.

Na sexta-feira, último dia do retiro, o Papa Francisco agradeceu a Tolentino Mendonça pelas meditações diferentes das tradicionais. “Obrigado, padre, por nos falar da Igreja, este pequeno rebanho. E também por nos ter avisado para não nos encolhermos no nosso mundanismo burocrático”, disse o Papa. “Obrigado por nos lembrar que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o Espírito também voa e trabalha fora dela”, acrescentou, terminando: “Com as citações e com as coisas que nos contou, mostrou-nos como ele [o Espírito Santo] trabalha nos não crentes, nos pagãos e em pessoas de outras confissões religiosas: é universal, é o Espírito de Deus, e é para todos.”

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Sinto-me privilegiado por ter encontrado na Igreja um lugar vazio, feito à minha medida. É certo que tê-lo encontrado (ou encontrá-lo renovadamente, pois não é dado adquirido) foi também mérito da minha sede, do meu empenho, de não baixar os braços e achar, passivamente, que não seria possível. Passo a contextualizar: a comunidade onde vou à missa é pequena e acolhedora, e podia bem não o ser. Ao mesmo tempo, sentia um desejo grande de reflexão de vida cristã e encontrei um casal (heterosexual) que tinha a mesma vontade. Começámo-nos a reunir semanalmente numa pequena comunidade de oração e reflexão que, apesar de crítica, nos tem ajudado a sermos Igreja e a nela nos revermos. Paralelamente, face ao contínuo desencanto em relação a algumas posturas e pontos de vista de uma Igreja mais institucional e hierárquica, tive a graça de encontrar um grupo de cristãos homossexuais, que se reuniam com um padre regularmente, sem terem de se esconder ou de ocultar parte de si.

Sei que muitos cristãos homossexuais nunca pensaram sequer na eventualidade de existirem grupos cristãos em que se pudessem apresentar inteiros, quanto mais pensarem poder tomar parte e pôr em comum fé, questões, procuras, afectos e vidas.

Por tudo isto me sinto grato a Deus e me sinto responsável para tentar chegar a quem não teve, até agora, uma experiência tão feliz como a minha.

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