Diário de uma teocracia suave
"Se proibissem o sacerdócio a negros, ou a ciganos, acaso isso não seria considerado evidentemente inconstitucional?" A pergunta é da professora catedrática da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Teresa Pizarro Beleza, e li-a esta semana no seu Facebook. Uma pergunta tão simples e óbvia que me perguntei por que raio não me tinha ainda ocorrido.
Não ser religiosa, e portanto não me interessar pelo funcionamento interno de uma igreja, é um dos motivos que poderia invocar. Mas já fiz vários trabalhos sobre a exclusão das mulheres e homossexuais do sacerdócio e os pronunciamentos papais e vaticanos sobre o papel das mulheres (como a Carta aos Bispos da Igreja Católica Sobre a Colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo, de 2004, da autoria de Ratzinger quando ainda Prefeito da Doutrina da Fé sob o papa João Paulo II). Ou seja, conheço os argumentos "oficiais" e os contra-argumentos daqueles que, dentro da igreja, contestam estas regras. Como o teólogo alemão Hans Küng, que fala numa "difamação fundamental das mulheres" e afirma que "não há razões teológicas sérias contra as mulheres como sacerdotisas", e as teólogas portuguesas Teresa Toldy e Julieta Dias, esta última freira da Ordem do Sagrado Coração de Maria. Toldy vê como "insultuoso" um dos argumentos do Vaticano para vedar o sacerdócio às mulheres, o de que "Jesus Cristo era homem e portanto não pode ser representado por uma mulher no altar"; Julieta Dias cita a Carta de São Paulo aos Gálatas - "Em Jesus Cristo não há homem nem mulher, senhor nem servo..." - e, acusando o Vaticano de "um proverbial medo das mulheres, derivado da ideia da mulher como um mal", aponta a contradição do papa João Paulo II (e de Bento XVI e Francisco): "Fala das mulheres como sendo muito melhores que os homens em tudo, para concluir que não podem ser ordenadas; é um total contrasenso."
Toldy desmonta também o segundo argumento vaticano, o da "tradição": "Dizem que os apóstolos eram só homens, que só havia homens na última ceia, e que os padres têm sido sempre homens. Mas se apóstolo é o que segue, acompanha e anuncia, que é Maria Madalena, que com outras mulheres acompanhava Jesus e é denominada, desde Santo Agostinho, como "a apóstola dos apóstolos", senão apóstola? E Ele contemplou-a com a coisa mais importante, assistir à ressurreição. Escolheu-a. Há aliás, num dos textos apócrifos [os textos que, na seleção para a coletânea que é a Bíblia, foram deixados de fora], o Evangelho de Maria, um diálogo entre Pedro e Maria Madalena em que este não percebe por que é que Jesus lhe apareceu a ela e não a ele". Além disso, lembra, foram as mulheres que ficaram com Jesus na crucificação: "Os homens desapareceram."
Paradoxalmente, foi talvez o ter-me interessado pelo debate interno, religioso, a impedir-me de fazer a tão límpida pergunta de Teresa Beleza. Como é que num país cuja Constituição proíbe a discriminação com base no género e na orientação sexual, que subscreveu uma Convenção Europeia com o mesmo princípio, se convive tão pacificamente com esta? Seria igualmente pacífica a convivência caso a interdição fosse "racial"? Se o papa dissesse "está fora de questão negros serem padres" a reação seria a mesma que ante o reiterar da interdição das mulheres? Por que é que o racismo parece ser tão mais inadmissível, como princípio proclamado, que o machismo? Por que é que a exclusão de não brancos de certas funções nos cultos, como sucedeu na Igreja Mórmon americana até ao final dos anos 1970 -- quando foi obrigada a proclamar uma "revelação divina" para mudar a regra -- parece muito mais chocante que a exclusão das mulheres ainda hoje?
Um dos motivos é que a existência de uma diferença "fundamental" entre homens e mulheres que lhes determina "funções diferentes" e uma hierarquia de poder é uma crença ainda profundamente arreigada e "naturalizada", mesmo nas sociedades ocidentais. Aliás o próprio Estado português desrespeitou a Constituição ao decretar as Forças Armadas parcialmente interditas às mulheres até à última década do século XX. Outra razão é a ideia de que esta é "uma questão religiosa", na qual o Estado não pode nem deve interferir, pelo princípio da separação e pelo respeito pela liberdade religiosa. Mas pode uma discriminação tão flagrante e ofensiva ser só e apenas "uma questão religiosa"? Uma empresa pôr um anúncio a dizer que só contrata homens é ilegal, mas uma instituição religiosa estabelecer que mulheres não prestam para líderes espirituais não é? A religião é uma isenção das regras constitucionais?
O princípio da separação implica que o Estado não sabe - não conhece, não toma partido -- de religiões; não que as coloca acima de escrutínio legal. Permitir discriminações inconstitucionais invocando tratar-se de princípios religiosos é dizer que se considera existir uma ordem superior à constitucional - ou seja, submeter o Estado à religião, numa espécie de teocracia soft. A estreia em Portugal de Diário de uma serva, a série baseada no livro da canadiana Margaret Atwood que descreve uma sociedade dominada, por via de um golpe de Estado, pela literalidade bíblica e na qual as mulheres perderam todos os direitos, é um bom mote para este debate que nunca tivemos a coragem de fazer.
por Fernanda Câncio, a 25 de dezembro de 2017 no DN
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