PINA BAUSCH (1940-2009): o método e o amor
Viktor. 1986
Em 1982, algum tempo antes de Dezembro, no estúdio de Wuppertal onde concebia as suas obras, é certo que Pina Bausch se sentou com os seus colaboradores e bailarinos e lhes perguntou: digam ou façam ”qualquer coisa sobre o primeiro amor”; “como imaginavam o amor quando eram crianças?”; “duas frases sobre o amor”; “como imaginam o amor?”; “se alguém vos quer obrigar a fazer amor, como reagem?”; destas questões saíram os gestos, movimentos, cenas, situações, narrativas ou micronarrativas de Nelken, como de muitas outras questões nasceram muitas outras obras.
Trata-se, ou tratava-se, como se sabe, do método de trabalho criativo coreográfico de Pina Bausch. Para cada obra, tinha a autora um sortido de palavras, palavras soltas, que depois se combinavam em expressões, questões, frases – por exemplo, se se partia da palavra “ternura”, podia-se ir parar à necessidade de “seres terno contigo mesmo”, e daí para uma sucessão de ocorrências que geravam uma obra de teatro ou de dança ou de teatro-dança.
Todas as obras de Pina Bausch assim começavam: na relação entre questões e improvisação, das questões e a partir das questões, era necessário fazer dezenas, centenas, milhares (como a autora referia) de perguntas aos bailarinos, era, consequentemente, necessário em absoluto ficar suspenso naquele impressivo fio da navalha e naquela angústia de estar “dependente” dos outros para fazer nascer a obra própria, os movimentos despegados da coesão clássica do próprio movimento (e da sua narratividade), chegar à história para aportar ao fragmento. Ora, a angústia resultava do facto de, “por vezes, não sair nada”. Inevitavelmente.
Nunca é pois demais sublinhar que em Bausch a palavra antecedia o movimento, a conversa, o diálogo, aquela estranha comunhão autoral colectiva (sim, porque não?), antecedia a decisão autoral individual que aproximava, quando aproximava, a obra daquilo que ainda, apesar de tudo se chamava “Dança” (e note-se que todos os seus bailarinos tinham – têm – rigorosa formação clássica). Este método é interessantíssimo no actual contexto da produção e da valorização, digamos, capitalista, pois daqui não só poderia sair “nada” (uma “improdução” absoluta e estética), como, a sair, saía muito lentamente, Bausch falava sempre do tempo largo que necessitava para criar (juntamente com os “seus”). Temos, portanto, primeiro o nada, depois o fragmento, depois a pergunta, a resposta, a frase e a arte de uma cerzideira de restos ou “totalidades” que embatiam noutras “totalidades” sem formar UMA “totalidade”.
É extremamente interessante também ler relatos de alguns bailarinos(as) de formação clássica que precisavam de trabalhar o corpo em exercícios regulares técnicos e, em vez disso, tinham de se sujeitar a estes jogos de perguntas/respostas ou, acima de tudo, creio-o bem, sessões de contenção corporal, de, como diria Alain Badiou noutro contexto, gestos de “negação da obediência imediata a impulsos”. A dança era uma espécie de negação de si mesma, isto se entendêssemos a dança como a arte de “obedecer ao impulso”, que aqui era banida, pois tratava-se antes de “guardar”, “esperar”, habitar o tempo sem limite de tempo (se fosse caso disso).
Maurice Nadeau, em 1958, falava do surrealismo como de um cruzamento entre o maravilhoso, o inconsciente, o sonho e a loucura, e os estados alucinatórios. Será este o contexto da obra de Pina Bausch? Muitos ligam-na ao surrealismo, outros ao dadaísmo, outros a ambos (o Routledge Companion to Theatre and Performance), recordando não apenas o contexto da dança expressionista, mas também autores como Alfred Jarry ou Artaud.
Quanto a mim, recordo-me de me ter “zangado” com este universo ao ver, pela primeira vez (depois de ter visto várias peças), a obra Viktor, realizada a partir de uma estadia em Roma (que inauguraria uma série de obras que resultavam das famosas relações entre a companhia de Bausch e cidades em particular, por onde passaria também Lisboa, na obra Mazurca Fogo). Porque vi ali um registo de pessimismo e de incomunicabilidade que se me afigurava demasiado insistente. Mas, pouco depois, li correctamente tudo ao contrário, e, em Café Müller, de 1978, tornara-se claro que um dos temas da autora era o amor. Neste lúgubre café há um inesquecível “encontro” entre o bailarino eleito de Bausch, Dominique Mercy, e uma mulher: ela sobe para o colo de Mercy, abraça-o, ele aparentemente nada faz (apesar de ser “ensinado” por um terceiro) e ela cai ao chão – tudo se repete infinitas vezes. Pode não parecer, mas Mercy é o paradigma ou símbolo do amor, nesta situação aflitiva. Porque o amor não é um contrato fechado, completo e pelo menos desde S. Paulo sabemos que só o ser incompleto pode amar. Mercy, assim, nunca se “completa” com a mulher que se lança infindas vezes aos seus braços – por isso, o infinito pode repetir-se até ao infinito. É este o retrato da infinitude e da imperfeição do amor.
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