«A Lourdes e eu andamos vários anos até encontrarmos essa dança comum, ou seja vários anos até percebermos como nos relacionarmos perante a câmara e o filme. Porque uma coisa é a relação por detrás da câmara, outra a relação que a câmara depois traduz.»
Em entrevista ao Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura e Agência Ecclesia, Catarina Mourão, realizadora de “Pelas sombras”, sobre a vida e obra da artista plástica Lourdes Castro, descreve a relação com a protagonista do seu documentário, fala da exibição recente na Capela do Rato, em Lisboa, partilha a sua visão acerca da relação entre cinema e transcendência e critica o panorama da sétima arte em Portugal.
O cinema domina, hoje, a sua vida profissional. Tornar-se realizadora foi uma escolha evidente desde cedo?
Desde cedo que o cinema me fascinou. Tornar-me realizadora foi uma escolha tardia. Licenciei-me em direito, embora nunca tenha gostado do curso. Ao longo do curso estudei música e comecei a trabalhar em cinema, sobretudo como tradutora de guiões e sinopses e, mais tarde, como assistente de produção e realização. Só depois da licenciatura em direito é que fui estudar cinema.
Como surgiu Lourdes Castro e a ideia de a filmar?
A ideia de filmar o trabalho e vida da Lourdes Castro surgiu em 1997. A Valentim de Carvalho Televisão estava na altura a pensar desenvolver um catálogo de documentários sobre artistas plásticos e desafiou-me a escolher uma artista. Eu escolhi a Lourdes Castro. Conhecia o trabalho da Lourdes, de que sempre gostei e, sobretudo, tinha visto uma performance/peça de teatro de sombras em 1985 no CAM que me marcou completamente. E, se calhar, inconscientemente, influenciou o meu cinema hoje. O cinema feito de pequenos gestos, de situações aparentemente invísiveis e anónimas.
À medida que “Pelas Sombras” se desenrola, há uma tal harmonia e fluidez narrativas, nos gestos de Lourdes Castro, na sua intimidade, o que partilha, que dá a sensação de que a vossa afinidade foi automática, de que as coisas surgiram tão claras e evidentes como a própria Lourdes. Foi assim?
Eu acho que houve logo de início uma grande empatia entre as duas, mas isso não quer dizer sintonia. É como uma dança, é preciso perceber os ritmos de cada um. A Lourdes e eu andamos vários anos até encontrarmos essa dança comum, ou seja vários anos até percebermos como nos relacionarmos perante a câmara e o filme. Porque uma coisa é a relação por detrás da câmara, outra a relação que a câmara depois traduz. É evidente que andam as duas muito próximas mas houve obviamente um trabalho de “mise en scène” e ajuste para permitir que os vários encontros entre a Lourdes e eu, o quotidiano e o trabalho, o som e a imagem provocassem qualquer coisa nova. É isso que faz o cinema: não é um mero registo mas a invenção de uma nova realidade a partir da realidade filmada e anteriormente observada.
Quanto tempo durou a rodagem do filme?
As primeiras filmagens datam de 2003, mas de uma forma mais sistemática e com a certeza que estávamos a fazer um filme, a partir de 2007. De 2007 a 2010 filmámos uma semana por estação do ano.
De que forma participou Lourdes na conceção do filme?
A Lourdes participou no filme não só como personagem que se expõe ao longo de todo o filme mas também na medida em que o seu trabalho presente, o quotidiano no jardim e na casa, tomam forma através do filme. Ou seja, é de certa forma no filme que a Lourdes verbaliza de forma mais assumida como a sua obra está em total fusão com a sua vida. Nesse sentido o filme e a sua obra confundem-se um bocado. Ao tornar visível através do filme, uma obra que é aparentemente invisível “por ser grande demais ou pequena demais” (palavras da Lourdes) o filme acaba por participar da obra da Lourdes assim como a obra da Lourdes participa do filme, embora essa construção, representação do trabalho da Lourdes seja feita por mim, através do meu olhar. Mas há como que uma fusão muito grande entre o meu olhar e a construção do filme e a construção da obra da Lourdes através do filme.
Teve a preocupação de se preparar muito bem para filmar Lourdes ou optou por descobri-la à medida da rodagem (pelo menos numa fase inicial)?
Preparei-me conhecendo a obra da Lourdes, lendo textos sobre o trabalho dela, textos do Manuel Zimbro, textos do João Fernandes. Mas tudo isto é apenas uma contextualização. Uma relação faz-se no terreno, no dia a dia. Uma pessoa tem sempre muito mais dimensões que transcendem a sua obra. Foi na preparação e na rodagem que fui descobrindo a Lourdes e ela a mim. Essa relação e descoberta continua hoje.
Que impacto teve o filme em Lourdes? Teve a perceção se a transformou, de algum modo?...
Acho que qualquer experiência onde nos envolvemos com maior profundidade nos transforma. Neste caso, acho que o tempo da Lourdes e a sua opção de não ter pressa e de valorizar o momento presente foi muito importante para mim, influenciou o filme e influenciou o meu olhar. Permitiu-me relativizar muita coisa e perceber o que é importante. Às vezes esquecemo-nos de que a vida se conjuga no presente e estamos sempre a projetar para a frente. Isso não quer dizer que não se planeie e antecipe algumas coisas mas tudo no sentido de melhor desfrutar a vida presente, o lado sensorial da vida também. Hoje em dia tendemos a ser cada vez mais cérebro e pouco corpo.
O que lhe suscitou este convite para apresentar o seu filme numa capela?
Gostei muito da experiência. Acho que os filmes só ganham em ser mostrados em contextos diferentes, com públicos diferentes. De certa forma a atenção e concentração que se tem numa igreja pode ter pontes de contacto com a atenção que se tem no cinema.
Em que medida considera a importância do cinema como via de transcendência?
O cinema e as artes em geral podem ser uma via de transcendência. Para mim, transcendência é aquilo que nos transporta para uma dimensão diferente, mais espiritual e emocional. É de certa forma aquilo que nos permite aceder a zonas do nosso inconsciente que não exploramos normalmente, mas também a qualquer coisa que nem sempre conseguimos explicar racionalmente. E a arte tem um papel fundamental nisto. É através dela que podemos organizar emocionalmente aquilo que nos rodeia. O cinema pela sua dimensão onírica é facilmente uma janela para essa transcendência, nele jogam a subjetividade, a poesia, a metáfora, e o sublime também.
E o seu papel na sociedade atual - como motor de reflexão e debate?...
O cinema tem também uma dimensão política, pedagógica. Sobretudo, o cinema documental que convoca a realidade e a transforma, é, sem dúvida, um motor para reflexão e debate. O documentário que me interessa é aquele que não procura dar respostas mas sim levantar questões, acordar o espectador para novas problemáticas e, sobretudo, novos pontos de vista sobre a sociedade em que vivemos. Nesse aspeto acho que o filme “Pelas Sombras” é também um filme político, na medida em que nos chama a atenção para a necessidade de mudarmos um pouco de paradigma na forma como muitos de nós vivemos, numa sociedade demasiado capitalista e orientada para o consumo.
Que balanço faz da sua carreira cinematográfica?
É difícil responder a essa pergunta. A minha carreira tem quase 14 anos. Acho que é um momento de balanço. Em cada filme que faço sinto que estou a sempre a experimentar novas abordagens e acho que o meu percurso será sempre o da experiência. Embora consiga identificar uma continuidade no meu trabalho, há rimas claras de uns filmes para os outros. No entanto, em Portugal aposta-se muito pouco numa continuidade dos artistas, e fazer um filme de quatro em quatro anos é muito pouco.
E projetos?
Neste momento estou a desenvolver um novo projeto na Índia, mas ainda não tenho financiamento, por isso tenho de ir devagar. Estou a escrever e a trabalhar para um projeto de doutoramento sobre a representação do sonho no cinema. Mas dou aulas de cinema, é isso que me permite continuar.
Que comentário faz ao momento atual do cinema em Portugal?
É um momento muito difícil, mas não tenhamos ilusões: nunca foi fácil fazer cinema em Portugal. Talvez essa dificuldade se reflita na identidade do cinema português para o bem e para o mal. De qualquer forma existe uma certa esquizofrenia no sentido em que o cinema português é muito bem recebido fora de Portugal e depois em Portugal há pouco apoio para a sua divulgação. Este filme “Pelas Sombras” deveria ter tido o percurso natural de um filme e passar com regularidade numa sala de cinema. No entanto, não houve nenhuma distribuidora que quisesse arriscar. Há um preconceito muito grande ainda em relação a este tipo de cinema que não trabalha com atores profissionais e que opta por um modelo de produção diferente do da ficção. Até mesmo nos júris do Instituto de Cinema, onde deveria haver maior informação e abertura, um realizador como eu é sempre classificado de forma inferior ao de um realizador de ficção. Nesse aspeto, o cinema em Portugal ainda é recebido com uma arte muito formatada, sempre sujeita a tipologias e classificações e isso prende-se com a tentativa de aproximar o cinema da indústria; torná-lo rentável economicamente. Só que, às vezes, há muita falta de visão e, filmes aparentemente menos convencionais, podem encontrar o seu público. Acho que os públicos se estão a transformar, não há um público mas sim vários públicos. Por alguma razão este filme, quando consegue ultrapassar o crivo de uma primeira seleção (em festivais por exemplo...), acaba por ser premiado e ter uma grande adesão do público.
Se dispusesse de todos os meios para tal, o que escolheria fazer nos próximos tempos?
Escolheria fazer exatamente o que faço, mas gostaria de ter financiamento para realizar o meu próximo filme na India.
Escolheria fazer exatamente o que faço, mas gostaria de ter financiamento para realizar o meu próximo filme na India.
“Pelas sombras” ganhou o prémio Signis Portugal-Árvore da Vida, da Igreja Católica, na edição de 2010 do IndieLisboa, festival internacional de cinema independente.
Por Margarida Ataíde, in SNPC
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