Fui ver a primeira de sete récitas de Morte de Judas, que já tinha aconselhado no blogue. É uma peça muito adequada ao tempo litúrgico que vivemos e fala-nos da humanidade de Judas, do seu epírito racional, prático e "desenrascado", das suas razões e opiniões, dos sentimentos e sensações, das decisões e tomadas de posição, das ideias... enfim, de tantas realidades que nos são tão familiares enquanto seres humanos e que nos levam a pôr em causa o julgamento fácil e a condenação proferida pela boca de tantos cristãos que esquecem que a Moral é súbdita da humildade e inimiga do orgulho. Aqui cito uma crítica da peça:
"Morte de Judas": entre a liberdade e o medo de ser
É um Judas que fala depois da morte, ciente da sua posição, a começar pela posição vertical, de enforcado, segundo um eixo que une simbolicamente a terra ao céu - se bem que, no seu caso, apontando fortemente para a terra, de acordo com os mais elementares preceitos da gravidade. É o discurso de um homem que pretendeu levar a cabo uma missão simultaneamente humana e transcendente, a de entregar Cristo para que se cumprisse o desígnio de Deus.
«Este Judas quis resgatar a sua vida pelo espírito, embora um espírito contrário ao espírito religioso, como um pequenino Fausto, numa competição com Deus, e a competição com Deus é uma vontade de absoluto, e a vontade de ser absoluto corresponde a uma vontade de a Humanidade se ultrapassar a si própria», diz Luís Miguel Cintra deste monólogo, encenado com a colaboração essencial de Cristina Reis, que imaginou o espaço vertical e fechado de onde sai a cabeça de Dinarte Branco, para falar como o homem que trai.
É um Judas irónico, que usa mesmo o humor: «Perguntais-me se vi milagres. Claro que vi. Não fazíamos mais nada. Era a nossa especialidade. As pessoas não teriam vindo ter connosco se não fizéssemos milagres. A primeira vez, devo confessar, causa mesmo sensação, mas é espantoso como a gente se habitua.»
A este Judas não falta espírito racional, prático, e antes da grande justificação do seu ato de traição procede à elaboração de um magnífico autorretrato, falsamente simplório: «Eu era o que se chama um bom administrador, era a minha especialidade... Não se pode viver eternamente a encher os bolsos com as espigas à mão de semear. Os proprietários acabam por olhar de esguelha para a gente.»
Para Luís Miguel Cintra, e como no anterior “Miserere”, concebido a partir do “Auto da Alma”, de Gil Vicente, trata-se de mais uma peça que coloca questões ligadas com a religião, com «o que é isto de ser pessoa, com o que são os seres humanos, para uma religião que diz que Deus se tornou homem, se tornou carne». É também uma proposta de continuar a ler, de maneira crítica, os evangelhos, que «lidos por uma pessoa que não acredite que Cristo era Deus são livros extraordinários».
“Morte de Judas” nasceu de um contratempo, a reorganização da programação em função dos cortes orçamentais sofridos pelas companhias de teatro. Uma das peças previstas foi remetida para mais tarde, uma outra, de grandes exigências de produção, foi substituída por uma de menores dimensões. Assim nasceu esta espécie de extra, feito com poucos meios e com uma carreira curta, dados os compromissos já assumidos por Dinarte Branco.
«É um texto extraordinário do Paul Claudel. Um momento importante de pensamento da relação entre razão e fé, entre a profecia e a instituição, entre a liberdade de ser e o medo de ser», afirmou ao jornal “i”, o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, padre José Tolentino Mendonça.
"Morte de Judas" está em cena no Teatro da Cornucópia, em Lisboa, até 3 de abril.
João Carneiro (excepto último parágrafo)
In Expresso (Atual), 26.3.2011
Fotografia de Luís Santos
publicado in SNPC
Ler mais em Teatro da Cornucópia
Ler no blogue http://moradasdedeus.blogspot.com/2011/03/judas-ou-o-outro-morto.html
João Carneiro (excepto último parágrafo)
In Expresso (Atual), 26.3.2011
Fotografia de Luís Santos
publicado in SNPC
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