Angelus Novus, Paul Klee |
O anjo que nos resiste
«Todo o anjo é terrível. Mesmo assim - ai de mim -/vos invoco, pássaros (...) da alma/ sabendo quem sois». Este verso de Rainer Maria Rilke, que a Modernidade tem relido tantas vezes, está construído sobre um aparente paradoxo: primeiro define o anjo como “o terrível”, isto é, inscreve-o no território transcendente do divino, mas depois diz saber quem ele é. A primeira afirmação, porém, tem uma intensidade tal que condiciona a leitura a fazer da segunda. Que concluir? Que apesar do conhecimento que possamos ter, o Anjo permanecesse um enigma, uma espécie de pergunta que nunca se desfaz.
É interessante constatar que mesmo na tradição judaico-cristã a figura do Anjo surge esboçada numa espécie de penumbra categorial, mantendo-se sempre como que indistinta, indefinível, e morfologicamente mutante. Na cena da luta noturna com Jacob, por exemplo, o anjo depois de lutar por muito tempo com ele, pede-lhe: «Deixa-me partir, porque já rompe a aurora» (Gen 32,27). É como se a luz pudesse, de alguma maneira, perturbar aquela evidência que na escuridão se dá tão palpável. A presença angélica revela-se sempre pontual face à narrativa da história (é uma espécie de manifestação extraordinária) e não se deixa fixar. Analisando os textos bíblicos percebe-se como o mecanismo textual conspira para, a propósito do Anjo, fazer isso: mostrar sem desvendar, dizer sem prender, tornar maximamente visível sem ferir minimamente o invisível.
Uma história recente pode ajudar-nos a perceber aquela de sempre. Em 1921, o filósofo Walter Benjamin adquiriu uma pintura de Paul Klee, intitulada Angelus Novus. Benjamin ficou com o quadro até ao fim da vida, como referência espiritual e objeto privilegiado do seu pensamento. Ao jornal de ideias que queria fundar deu, por exemplo, o nome de Angelus Novus. Walter Bejamin construiu uma fortíssima amizade epistolar com outro grande pensador de extração hebraica, Gershom Scholem, e ambos trocaram muitas impressões sobre a figura do Anjo. Numa carta datada de 19 de setembro de 1933, Scholem junta um poema intitulado “Saudações do Angelus”. A última quadra é particularmente precisa:
Sou uma coisa antissimbólica
Que só significa o que eu sou.
Giras em vão o anel mágico,
Não tenho nenhum sentido.
O crítico Robert Alter, que estudou esta ampla correspondência à luz do motivo do Anjo, escreve: «O anjo “antissimbólico” de Scholem resiste a qualquer tentativa de traduzir aquilo que ele é…». O mistério permanece intacto, portanto. Mas não deixa de ser relevante o facto de dois pensadores contemporâneos, com a dimensão de Scholem e Benjamin, acreditarem que não há substituto moderno adequado para o profundo léxico espiritual que a tradição coloca como pedras da sua busca de verdade.
José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias da Madeira, publicado por SNPC
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