Poesia reunida de Adília Lopes
Título: Dobra - Poesia reunida
Autora: Adília Lopes
Editora: Assírio & Alvim
Ano: 2009
Páginas: 688
ISBN: 978-972-371-349-7
Dir-se-ia que na poesia de Adília Lopes tudo se passa à superfície, mas uma superfície de onde se avista o abismo. (...)
A sua poesia é uma estação fundamental e singular no percurso da poesia portuguesa desde os anos 80. O seu grande triunfo consistiu em renunciar completamente ao lirismo e às suas tonalidades afectivas, mantendo uma densidade que advém da exploração linguística, em todos os níveis. (António Guerreiro, in Expresso, 7 de Novembro de 2009)
S. João da Cruz
Mesmo que pudesse
dizer tudo
não podia dizer tudo
e é bom assim
Deus é um boomerang
Deus é um boomerang
e eu sou a sua filha pródiga
Deus é a nossa mulher-a-dias
Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta
Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa
O tempo é sagrado
O tempo
é sagrado
O tempo
é templo
Deixa o dia de ontem
Deixa
o dia de ontem
com Deus
E vive
em paz
a espera
A cada dia
basta
a sua pena
E
o amanhã
é
como o arco-íris
Um anjo
está contigo
quando desanimas
Um anjo
está contigo
quando te alegras
Sempre
um anjo
está contigo
E
o arco-íris
brilha
como a água
que corre
O poema não deve ser raciocinado
O poema
não deve ser
raciocinado
deve ser
extasiado
É tudo tão novo
É tudo
tão novo
para mim
Novo
como um ovo
Novo
como um noivo
José
noivo de Maria
é novo
Um ovo
de serpente
um ovo
de Eva
um ovo
de Maria
A ti tudo te foi dado
A ti tudo
te foi dado
e não tratas
os outros
com doçura
És um nababo
e és um nabo
(quem te dera
seres um nabo)
Textos ensanguentados
Textos
ensanguentados
como feridas
Gralhas
ensanguentadas
Textos
gelados
como árvores
no Inverno
Textos
como árvores
cortadas
aos bocados
Textos
como lenha
Textos
como linho
Textos
brancos
como a noite
Textos
brancos
como a neve
Textos
sagrados
Textos
bifurcados
como ramos
Textos
unos
como troncos
A hera escreve
A hera
escreve
sobre a era
os nomes
e os números
vegetais
A escrita
de Deus
de súbito
matéria
A pedra
transcendente
a lagartixa
anjo
O opaco
transparente
como água
boa para beber
A escrita
de Deus
não pode
ser descrita
Ficar à escuta
Ficar
à escuta
À escuta
do silêncio
Nota 4
Se tu amas por causa da beleza, então não me ames!
Ama o Sol que tem cabelos doirados!
Se tu amas por causa da juventude, então não me ames!
Ama a Primavera que fica nova todos os anos!
Se tu amas por causa dos tesouros, então não me ames!
Ama a Mulher do Mar: ela tem muitas pérolas claras!
Se tu amas por causa da inteligência, então não me ames!
Ama Isaac Newton: ele escreveu os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural!
Mas se tu amas por causa do amor, então sim, ama-me!
Ama-me sempre: amo-te para sempre!
Sur la croix
Sur la croix
on gémit
et on prie
Adília Lopes
Nota: Estes poemas integram o livro «Sur La Croix», edição do SNPC limitada a 60 exemplares para assinalar a 2.ª Jornada da Pastoral da Cultura (2006).
In SNPC
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